*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, Puc-Rio. "Hora e vez da esquerda democrática", 9/8/2020.
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
*Luiz Werneck Vianna, Sociólogo, Puc-Rio. "Hora e vez da esquerda democrática", 9/8/2020.
- Folha de S. Paulo
A redução da
expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente
“Is Brazil a
fascist state?” Este é o título do último capítulo de “Brazil
Under Vargas” (1942), de Karl Loewenstein. A pergunta não poderia vir de
alguém mais qualificado: o ex-pupilo de Max Weber havia publicado “Hitler’s
Germany” (1939) e trabalhos pioneiros sobre movimentos autoritários na década
de 30. O autor não falava apenas de cátedra: ele próprio fugira de Hitler para
tornar-se acadêmico nos EUA e influenciou ativamente a elaboração da
Constituição alemã de 1949.
Loewenstein concluiu que os
rótulos comuns para o regime de Vargas não eram apropriados: “o regime não é
nem democrático nem ‘democracia disciplinada’; nem totalitário nem fascista; é
uma ditadura autoritária para o que os franceses cunharam um termo adequado:
‘régime personnel’, mas que exerce poderes teoricamente ilimitados com moderação
dado o habitat liberal-democrático brasileiro”.
O Brasil não era totalitário, e
a mobilização política oficial era cosmética: “não há a mística de Estado como
na Alemanha nem nos primeiros anos do fascismo na Itália”. Mas importante é sua
conclusão que, enquanto esses dois países são casos de Estados de partido
único, o Brasil representava uma situação peculiar de Estado sem partido: os
partidos políticos não existiam nem no papel nem na prática.
Com base em ampla base
empírica, Loewenstein analisou o funcionamento das instituições brasileiras
(sistema de justiça, mídia etc.) —em comparação com a Alemanha nazista e outros
países—, concluindo que no Brasil o arbítrio aplicava-se de forma muito mais
restrita. Especulava que “a persistência da regra da lei no Brasil de hoje,
mesmo sob pressão de um regime autoritário, o qual em termos constitucionais é
materialmente ilimitado, pode ser creditada à tradição enraizada e forjada no
marco da monarquia constitucional no Império”.
Revisitar Loewenstein é urgente
porque o Estado Novo na nossa experiência histórica foi o regime político que
mais se pareceu com o fascismo. E ele próprio é a um só tempo testemunha e
pesquisador pioneiro do assunto. Sua análise deixa claro que a redução da
expressão fascismo a autoritarismo é pobre analiticamente.
No debate público americano
atual, Jason Stanley e Timothy Snyder têm insistido que sob Trump os EUA teria
se tornado fascista. Samuel Moyn retruca, como escrevi neste espaço, que é irônico que a
maior oportunidade para implementar o fascismo (a pandemia) produziu inação, e
não um ditador.
E adverte que mostrar o que
situações tem em comum é banal; há similaridades em quaisquer fenômenos: “a
comparação sem o reconhecimento de diferenças é puro partidarismo”. Como
amplamente demonstrado por Loewenstein!
*Marcus André Melo, Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).
- Folha de S. Paulo
Durante a pandemia, presidente tentou autogolpe e aparelhar a Polícia Federal
A edição da revista piauí deste
mês traz uma matéria, assinada por Monica Gugliano, com o título “Vou Intervir!”. Ela conta a
história de uma reunião de 22 de maio, no Palácio do Planalto, em que Bolsonaro
teria decidido mandar tropas para fechar o STF.
O plano seria substituir os 11
ministros por 11 puxa-sacos de Bolsonaro, por tempo indeterminado. Uma
quartelada vagabunda raiz, nada dessas sutilezas de lenta corrosão democrática
“Steven Levitsky” de que eu vivo falando aqui. O presidente teria
sido dissuadido pelo general Heleno, que, para apaziguá-lo, soltou uma nota
ameaçando o STF.
A princípio, o governo poderia
ter desmentido a matéria, que é baseada em depoimentos concedidos off the
record. Nessa situação, cabe ao leitor decidir se confia na reputação da
revista —que, no caso da piauí, é impecável.
Entretanto, entre os
bolsonaristas a desconfiança com relação à imprensa é generalizada. Se o governo
quisesse desmentir a matéria, poderia tê-lo feito e considerado o assunto
encerrado dentro da bolha que o elegeu.
Não desmentiu.
Houve quem interpretasse que o
conteúdo da reunião vazou por interesse do governo, para avisar que o golpismo
ainda está vivo. Se for, foi desnecessário: era só mandar o pessoal ler minha
coluna, sempre digo isso.
Houve quem suspeitasse que o general Heleno vazou para
parecer moderado. Houve ainda uma suspeita de que o governo teria vazado o
conteúdo da reunião de propósito, para depois desmoralizar a imprensa com um
desmentido (uma gravação, por exemplo). É triste viver em um país em que essa
suspeita não é absurda.
De qualquer forma, a revelação
da piauí não teve repercussão política nenhuma. E a explicação é simples: em
geral, só se admite em voz alta aquilo de cujas consequências práticas se está
disposto a arcar.
Muito antes da matéria da
piauí, todo mundo já tinha visto Bolsonaro tentar o autogolpe em 2020. Mas, se
você disser em voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe, a solução é impeachment e cadeia. Se você
não puder e/ou não quiser fazer impeachment e cadeia, é mais fácil não dizer em
voz alta que Bolsonaro tentou um autogolpe.
Ainda não parece haver
correlação de forças para impeachment e cadeia: o centrão está no bolso do
governo, o auxílio emergencial ainda deve durar alguns meses. Enquanto for
assim, a turma vai fingir que não viu o golpe, os 100 mil mortos, o aparelhamento na Polícia
Federal.
Talvez essa correlação de
forças não mude nunca. Nesse caso, a fraqueza natural humana fará com que muita
gente racionalize que não foi tão ruim assim, “olha só como ele era democrata,
até comprou o Roberto Jefferson, todos nós aqui sempre
dissemos que isso era a marca do democrata, ninguém aqui nunca reclamou de quem
comprava o Roberto Jefferson”.
Eu, aqui, não vou racionalizar
isso, não.
O dia de trabalho de Bolsonaro
durante a pandemia de 2020 se dividiu entre organizar um golpe de manhã,
aparelhar a Polícia Federal de tarde e demitir o ministro da Saúde no
telejornal da noite.
Se esses crimes ficarem
impunes, prefiro viver com o incômodo dessa injustiça e esperar a maré virar.
Se não virar, levo o incômodo comigo até o fim. Não tenho como fazer acontecer,
mas deixo registrado para os leitores do futuro: em 2020, nós sabíamos que
Bolsonaro merecia ser preso. Todos nós sabíamos.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra)
- Folha de S. Paulo
Parlamento não
reage ao descalabro do governo na pandemia e ao caso Queiroz
O Brasil atinge a desoladora marca de 100 mil
mortos pelo Covid-19 ao mesmo tempo em que novos elementos
surgem sobre as ligações entre
Fabrício Queiroz e Jair Bolsonaro.
Dois temas distintos que dividiram casualmente o noticiário
da semana que findou. Eles coincidem em um ponto: o silêncio do presidente da
República.
Bolsonaro se cala sobre a montanha de dinheiro que pingou
várias vezes na conta de Michelle e tergiversa em relação à responsabilidade na
catástrofe do coronavírus.
Não há explicação plausível para os 27 depósitos feitos
por Queiroz e sua mulher entre 2011 e 2016. Um total de R$ 89 mil repassados
por meio de cheques para a primeira-dama.
Não fica em pé a versão inicial dada pelo presidente de que
parte disso, R$ 40 mil, era pagamento de empréstimo que fez a Queiroz.
Empréstimo jamais declarado no Imposto de Renda.
A defesa capenga e a falta de esclarecimentos sobre os novos
fatos reforçam as suspeitas de que Michelle foi elo do esquema das
"rachadinhas" da Assembleia do Rio. É muito grave.
Em um país um pouco mais sério, o Congresso cobraria resposta
de Bolsonaro e investigaria o caso. Em um país que tem o centrão dando as
cartas, isso não vai acontecer.
Da mesma maneira o Parlamento se omite no comportamento
doloso do governo na pandemia.
Ignora a narrativa criminosa do presidente em defesa da
hidroxicloroquina e assiste silenciosamente ao naufrágio da gestão militar no
Ministério da Saúde.
São 100 mil mortos.
Sobram notas oficiais de lideranças e repúdios de opositores em redes sociais,
além de outros gestos inúteis que não fazem cócegas no morador do Palácio do
Alvorada.
"Vamos tocar a vida", disse Bolsonaro na
véspera de o país atingir a marca dos 100 mil.
O presidente não precisa se preocupar muito. Pode continuar omisso e tocando sua própria vida enquanto não houver uma reação decente por parte de quem deveria fazê-lo.
- Blog do Noblat | Veja
De volta ao passado
Cresce o número de vozes nas cercanias do presidente Jair
Bolsonaro que não achariam nada mal que seu principal adversário nas eleições
de 2022 fosse Lula. Para isso, o Supremo Tribunal Federal teria de concluir que
o ex-juiz Sergio Moro foi parcial ao condenar Lula no processo do tríplex do
Guarujá.
Talvez ainda este ano, a Segunda Turma do tribunal julgue um
pedido de habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente que levanta a
suspeição de Moro. Se concedê-lo, a segunda condenação de Lula, no caso do
sítio de Atibaia, poderá cair, uma vez que Moro participou de algumas fases do
processo.
Com o eventual desmanche das duas condenações, Lula
recuperaria seus direitos políticos e estaria livre para ser outra vez
candidato a presidente. O medo de Lula se eleger e a falta de outros nomes
capazes de derrotá-lo fortaleceria Bolsonaro e inflaria suas chances de
conseguir o segundo mandato.
Recentemente, Lula obteve duas importantes vitórias na
Segundo Turma do Supremo. A primeira: finalmente, sua defesa vai poder acessar
todos os documentos usados no acordo de leniência fechado pela Odebrecht com o
Ministério Público Federal, inclusive os que se encontram nos Estados Unidos e
na Suíça.
A segunda vitória: a delação do ex-ministro Antonio Palocci
não pode ser utilizada nesta ação em que Lula é acusado de ter supostamente
recebido R$ 12 milhões da Odebrecht. Moro passou recibo dos dois sérios reveses
que colheu. Em silêncio, o governo celebrou as decisões da Segunda Turma do
Supremo.
No momento, são convergentes os interesses do governo
Bolsonaro e do PT de Lula. Com vantagem para Bolsonaro que terá dois anos pela
frente para penetrar mais fundo na principal base eleitoral de Lula, o
Nordeste. O que ele tinha a perder com o fracasso do combate ao coronavírus, já
perdeu. Jogo jogado.
O que pode vir a ganhar com o pagamento do auxílio emergencial e com a substituição do programa Bolsa Família pelo mais generoso programa Renda Brasil ainda está por ser calculado, mas não será pouca coisa. Cuide-se Paulo Guedes, ministro da Economia, que será obrigado a arranjar dinheiro para obras de infraestrutura.
Ministro nega dossiê, mas
confirma relatório sobre servidores antifascista
Que diferença faz? Nenhuma
Está em qualquer dicionário da língua portuguesa que “dossiê
é uma coleção de documentos relativos a um processo, a um indivíduo ou a
qualquer assunto”. E que relatório “é uma exposição escrita, minuciosa e
circunstanciada relativa a um assunto ou fato ocorrido. O objetivo de
um relatório é comunicar uma atividade desenvolvida ou ainda em
desenvolvimento durante uma missão.”
Como o jornalista Rubens Valente, no seu blog do portal UOL,
chamou de dossiê a coleção de documentos produzidos por uma secretaria do
Ministério da Justiça sobre quase 600 servidores federais que se declararam
antifascistas nas redes sociais, o ministro André Mendonça negou a existência
do tal dossiê. Negou até em comunicado enviado ao Supremo Tribunal Federal.
Mas apertado por deputados federais e senadores em sessão
secreta na última sexta-feira, ele confirmou que a secretaria produziu, sim, um
relatório sobre os servidores monitorados. Por monitorados, entenda-se:
espionados. Porque é disso que se trata. Não faz diferença se foi dossiê ou
relatório. O que se discute é se a secretaria poderia fazer o que de fato fez,
e por que.
A bola – ou melhor: o comunicado despachado por Mendonça ao Supremo – está nas mãos da ministra Carmen Lúcia, autora de um pedido de explicações. Dossiê ou relatório, à ministra caberá dizer se o Ministério da Justiça pode espionar um grupo de pessoas por pensaram de um jeito ou de outro. Ou porque o governo simplesmente não gosta do jeito que elas pensam.
Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, mas uma atitude rígida demais pode paralisar serviços públicos, sem enfrentar a expansão dos gastos obrigatórios
O
cenário para as contas públicas em 2021 está marcado por incertezas. Há pressão
para mudanças no teto de gastos, o mecanismo que limita o crescimento de
despesas não financeiras da União. O movimento vem tanto de fora quanto de
dentro do governo, como lembra Ricardo Ribeiro, analista político da MCM
Consultores. Para ele, “a flexibilização do teto não é certa, embora a probabilidade
seja crescente”.
O desejo de políticos e ministros fora
da equipe econômica de destinar mais recursos para obras públicas e para
programas sociais alimenta a pressão. Além disso, há também os problemas
causados pelo desenho do teto e por uma correção muito baixa do limite de
despesas para 2021.
A situação fiscal é delicada. Com o aumento de despesas para combater os
efeitos da pandemia e a perda de receitas devido ao tombo da atividade, a
dívida bruta subirá neste ano para a casa de 95% do PIB, tendo partido de 75,8%
do PIB em 2019, um nível que já era muito mais elevado do que o da média dos
emergentes.
Para grande parte dos especialistas em
contas públicas, é preciso começar um processo de ajuste fiscal mais forte já
em 2021. Sem isso, argumentam, os juros baixos não vão se sustentar. O risco
país pode subir, o câmbio pode se desvalorizar muito e os juros futuros podem
aumentar, tornando inviável manter baixa a Selic. Cumprir o teto seria decisivo
para reforçar o compromisso fiscal.
No meio político, porém, crescem as pressões pela flexibilização. Em entrevista para “O Globo”, o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, defendeu mais investimentos em infraestrutura básica, principalmente no Norte e no Nordeste. Para Ribeiro, da MCM, “levar água, saneamento e moradia ao Nordeste e engordar o Bolsa Família, transformando-o no Renda Brasil, são argumentos poderosos a favor dos apelos” destinados ao ministro da Economia, Paulo Guedes, por Marinho e pelo senador Flavio Bolsonaro - em entrevista a “O Globo”, o filho do presidente disse “Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações [obras paradas] que têm impacto social e na infraestrutura
Para Ribeiro, “a pressão pelo ‘dinheirinho’ adicional é crescente e tende a ficar mais volumosa quando, ao fim de agosto, o projeto de lei orçamentária da União for enviado ao Congresso”. O envio da proposta “provocará, muito provavelmente, uma chiadeira generalizada no Congresso e dentro do governo, pois o aperto orçamentário de 2021 ficará escancarado”, diz ele. “Há evidente apoio político à ideia, dentro e fora do governo. E se Jair Bolsonaro fosse totalmente avesso à ideia já teria enquadrado Rogério Marinho”, escreve Ribeiro, observando, porém, que “Paulo Guedes, Rodrigo Maia [o presidente da Câmara dos Deputados] e o receio da reação negativa do mercado ainda são barreiras poderosas à flexibilização”.
A pressão, como se vê, não é pequena.
Além disso, problemas do teto colaboram para o questionamento do mecanismo. A
regra tem méritos, tendo sido fundamental para melhorar as expectativas quanto
à trajetória das contas públicas de longo prazo. Ele permitiu um ajuste
gradual, sem que fosse necessário uma consolidação fiscal abrupta. Mas o teto
também tem defeitos. O principal problema fiscal do país é a rigidez do
Orçamento, marcado pelo crescimento contínuo de despesas obrigatórias, como
aposentadorias e gastos de pessoal. O governo tem liberdade para manejar menos
de 10% dos gastos. A reforma da Previdência reduz o ritmo de expansão dos
gastos com aposentadorias, mas não o interrompe. Também é crucial enfrentar a
elevação das despesas de pessoal.
Na emenda do teto, estão previstos
gatilhos a serem acionados em caso de descumprimento do mecanismo, com medidas
que impedem reajuste dos salários dos servidores e restringem a criação de
cargos, por exemplo. A questão é que, por um erro de redação, não se consegue
acioná-los. O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) não pode conter despesas
que ultrapassem os limites do teto, como lembra Felipe Salto, diretor-executivo
da Instituição Fiscal Independente (IFI). Os gatilhos não podem entrar em vigor
pelo envio de um projeto que preveja o estouro do teto, ainda que isso leve à
elaboração de um orçamento irrealista, com um corte muito expressivo de
despesas discricionárias (como custeio da máquina e investimentos).
Para 2021, o teto aumentará apenas 2,13%, porque essa foi a variação do Índice
Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) nos 12 meses até junho de 2020.
Para cumpri-lo, será necessário espremer mais os gastos discricionários. O
problema é que essas despesas poderão ficar abaixo do limite que compromete o
funcionamento da máquina pública, estimado em R$ 89,9 bilhões pela IFI. Com
isso, pode haver uma paralisação de atividades do setor público, além de um
corte ainda mais drástico dos investimentos, sem a adoção de medidas
verdadeiramente necessárias para controlar a expansão de despesas obrigatórias,
como os gastos com pessoal.
Para Salto, é preciso encontrar uma
saída para descumprir o teto e fazer com que os gatilhos sejam acionados,
preservando a regra. Há dois anos, o governo Michel Temer, em conversas com o
Tribunal de Contas da União (TCU), chegou a uma saída para o descumprimento da
“regra de ouro”, que impede a emissão de dívida para pagar despesas correntes.
“Esse precedente permite imaginar uma saída similar para o teto que possibilite
não jogar no lixo os gatilhos ali previstos”, diz ele. Salto estima que acionar
os gatilhos previstos na emenda do teto garantiria um ajuste de algo como 0,5
ponto percentual do PIB em dois anos, “dando tempo e fôlego para o Executivo e
o Congresso encontrarem uma solução definitiva”. Para ele, “o essencial é ter
claro que o problema do crescimento da despesa continua posto e precisará ser
sanado”.
A Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) Emergencial do governo contempla o disparo dos gatilhos no caso de
descumprimento da “regra de ouro”, mas a aprovação demandaria tempo e capital
político, num momento em que as discussões tendem a se concentrar na reforma
tributária.
Mexer no teto pode piorar a percepção de risco fiscal, colocando em xeque os juros baixos. Uma atitude rígida demais, porém, pode paralisar serviços públicos essenciais e jogar o investimento para níveis ainda mais baixos, sem que o crescimento das despesas obrigatórias seja de fato enfrentado. Escapar dessas armadilhas será crucial para garantir a sustentabilidade fiscal e permitir a recuperação da atividade, num país que registra desde 2014 um desempenho econômico horroroso.
- O Estado de S.Paulo
Com um governo melhor, o Brasil enfrentaria também melhor o
desastre sanitário
Nesse final de semana o
noticiário dá conta de que o Brasil ultrapassou a trágica marca de cem
mil mortes pelo novo coronavírus.
O maior impacto dessa tragédia humanitária tem sido os mais vulneráveis, tanto
do ponto de vista das condições de saúde, como socioeconômicas. São pessoas
idosas, de classes sociais mais baixas, negros e pardos e portadoras de doenças
pré-existentes. A covid-19 expôs de forma cristalina e seletiva a enorme
desigualdade social e de renda do país.
Para muitos essa hecatombe
sanitária seria evidência de que as instituições brasileiras não apenas não
estariam funcionando, mas também de que estariam completamente falidas. Esse
diagnóstico, entretanto, peca por atribuir às instituições o que seria
consequência das políticas governamentais escolhidas.
Daren Acemoglu e James Robinson
argumentam em seu último livro Narrow Corridor: State, Societies,
and the Fate of Liberty que desenvolvimento com preservação de
liberdades requer equilíbrio entre Estado e a sociedade. O Estado precisa ser
forte e poderoso para proteger as pessoas, garantir direitos e proporcionar
serviços para seus cidadãos. Mas a sociedade também precisa ser forte,
vigilante e atuante, para impedir que o Estado faça mal uso de seus poderes.
Para os autores, o “corredor estreito”, gerado pelo equilíbrio dinâmico entre
sociedade e Estado, proporcionaria as condições para a emergência virtuosa de uma
espécie de “Leviatã algemado”.
O desenho institucional
brasileiro que emergiu na Constituição de 1988 criou um Estado forte, dotado de
um executivo poderoso, com uma burocracia profissionalizada e meritocrática e
organizações de controle (i.e., judiciário, ministério público etc.)
independentes. Ao mesmo tempo, preservou um sistema político inclusivo e representativo,
capaz de acomodar praticamente todos os interesses da sociedade. Ninguém fica
de fora do jogo político no Brasil. Ainda por cima, estimulou o desenvolvimento
de uma sociedade livre, complexa e, acima de tudo, vigilante para conter
potenciais desvios ou arroubos iliberais de governos de plantão.
O resultante dessa combinação
tem sido o desenvolvimento de instituições nitidamente inclusivas, mas não
necessariamente eficientes. No livro Brazil in Transition:
Beliefs, Leadership and Institutional Change eu e
meus coautores argumentamos que o perfil de inclusão, na realidade, tem sido
dissipativo, em que a estabilidade democrática seguida de redistribuição e
inclusão social são efetivamente alcançadas, mas também esse processo é
acompanhado por distorções e ineficiências. É importante lembrar que esse
perfil é o comum em países em desenvolvimento, e não apenas no Brasil.
Mas a existência de dissipação
não cancela a natureza transformadora das mudanças que o Brasil tem vivido com
o desenho institucional atual. Ou seja, dissipação não significa
necessariamente ausência de funcionalidade institucional. Como esse processo
ainda está em curso, é muito difícil identificar a parcela que é inclusão
efetiva daquela que é dissipação. Depende, essencialmente, do viés da lente do
observador. Se favorável ao governo de plantão, enfatizará aspectos que
confirmem a inclusão. Já observadores de oposição tenderão a encontrar mais
dissipação.
O arcabouço institucional não é
uma “camisa de força” que aprisiona os atores políticos. Mas dá os limites.
Existe espaço para escolhas de como governar e das políticas que serão
implementadas. As dissipações podem ser minoradas ou maximizadas a partir
dessas escolhas.
Dizer que as instituições não
funcionam é tão ingênuo quanto o seu oposto, ou seja, que as instituições
funcionam perfeitamente. As mazelas que o Brasil tem vivido são decorrências de
falhas de governo, mas não necessariamente evidenciam uma falha institucional.
- O Globo
Resposta à pandemia nos convida a repensar o país
Desde o início da quarentena escrevo um diário.
Nele, apesar da pressa, incorreções e algumas bobagens, analiso os fatos desses
meses de coronavírus.
Não sinto tanta necessidade de escrever sobre isto,
mais do que faço diariamente. Mas, no momento em que alcançamos a marca de 100
mil mortos, é importante dizer algo fora dos limites. O número redondo
lembra-me dos anos 60, quando marchávamos orgulhosamente contra o governo
militar.
Os 100 mil de hoje representam também um protesto,
só que desta vez contra o descaso e retumbante fracasso de nossa política
nacional contra a Covid-19.
O ideal seria sairmos às ruas, os sobreviventes,
para protestar por eles. A natureza da pandemia nos obrigou a uma quarentena.
Escrevi no diário algumas vezes como isso não apenas entorpeceu nossos
músculos, mas mudou a maneira como nos vemos.
O país se transformou num imenso centro espírita, e
nós baixamos nos computadores para sessões de conversa que chamamos de lives,
mas poderiam também ser chamadas de deads.
Parece que muitos de nós vivem numa parte mal
iluminada da eternidade, aparecemos para a conversa, desligamos o aparelho e
evaporamos. Não se acaba mais em pizza como antigamente, quer dizer, num descontraído
jantar após a reunião, o debate ou conferência.
Leio no livro de Churchill que os piores momentos
de nossa vida são aqueles que não aconteceram, aqueles que nos mantiveram
preocupados, levaram nosso sono e nunca se apresentaram de fato em nossas
vidas.
Isso corresponde ao que diz um personagem de Borges
diante da morte: é menos duro enfrentar um perigo do que imaginá-lo e
aguardá-lo durante muito tempo.
A Covid-19, nesse sentido, é a pior doença que
nunca tive. Certamente há outras mais graves e devastadoras, mas nunca perdi um
minuto preocupado com elas.
Os índios no Amapá a consideram uma espécie de
doença espiritual, por causa da invisibilidade do vírus. Mas nem por isso deixam
de temê-la.
Desde o princípio, luta-se contra a negação do
governo. Era apenas uma gripezinha e afirmávamos que, ao contrário, era uma
perigosa pandemia. Surgiram os mortos, e o governo achou que seu número estava
superdimensionado, diante de todas as evidências de que havia subnotificacão.
Um dos luminares do governo calculou que morreram
apenas 800 pessoas e continuou duvidando dos fatos, mesmo quando os mortos já
eram 80 mil.
Duvidaram dos caixões, que para eles estavam vazios
ou cheios de pedras. Duvidaram do número de covas, vetaram uma dezena de
artigos na lei de proteção aos povos indígenas.
Seguimos fazendo lives como ectoplasmas que
reaparecem no território virtual para puxar a perna dos vivos que, sem máscara,
montados a cavalo, celebravam seu escandaloso idílio com a morte. E daí?
Os tribunais de dentro e de fora do Brasil terão
material por muito tempo. A suposição de que essas coisas acontecem e são
esquecidas é falsa. Uma política de negação que produziu milhares de mortos,
índios, grávidas, é algo que ficará na história e acabará desabando sobre seus
autores, por mais velhos e combalidos que estejam no momento em que forem
alcançados.
Vivemos num país de curandeiros. Bolsonaro passa
seus dias mostrando a cloroquina para todos os seres humanos e animais que
encontra pela frente. O ministro da Ciência e Tecnologia gasta 8 milhões para
pesquisar um vermífugo chamado Annita, e até audiências foram anunciadas para
discutir o poder do alho cru.
E se você perde a paciência, elegância, e pergunta:
e naquele lugar, não vai nada? Eles responderão com tranquilidade:
— Algumas doses de ozônio e um cateter bem fino.
Aos poucos vamos saindo da toca, meio ressabiados,
contentes em ver quem sobreviveu. Mas a maneira como tratamos a pandemia, as
condições de desigualdade em que a vivemos, uns com água e esgoto, outros não,
uns com casa confortável, outros espremidos nos barracos, tudo isso coloca em
questão o próprio sentido da sobrevivência.
Apesar da solidariedade, do desprendimento dos
trabalhadores em saúde, a resposta brasileira à pandemia nos convida a repensar
o país.
E responder em conjunto a essa fúnebre marcha dos 100 mil.
- O Globo
A polarização
política contaminou as discussões sobre a crise sanitária
‘Já
enfrentávamos uma crise de ensino anterior à pandemia. Agora, estamos diante de
uma catástrofe de toda uma geração que pode desperdiçar potencial humano e
levar a décadas de atraso, exacerbando a desigualdade.’ António Guterres,
secretário-geral da ONU, concluiu dizendo que a educação merece o qualificativo
de atividade essencial: “Colocar os alunos de volta às escolas da forma mais
segura possível precisa ser a maior prioridade”. No Brasil, porém, o debate
sobre o tema foi virtualmente interditado.
As escolas particulares de Manaus reabriram há 35
dias, colocando 60 mil alunos em aulas presenciais. A cidade vive nítido
declínio da transmissão do vírus, mas está longe de erradicar o contágio. A
maioria dos modelos epidemiológicos e dos estudos em países que retomaram aulas
revelam riscos muito baixos. Nada, porém, parece capaz de evitar que as redes
públicas de ensino brasileiras sigam fechadas indefinidamente.
Um fator relevante é psicossocial: os pais temem
por seus filhos. Quando adotados padrões sanitários e de testagem apropriados,
é muito reduzida a probabilidade estatística de contágio entre professores e
funcionários e, especialmente, de complicações sérias em crianças. Obviamente,
o risco não é nulo — como, aliás, no caso de outras doenças contagiosas. E se
meu filho for o ponto fora da curva?
O medo tem um contexto. A polarização política
contaminou as discussões sobre a crise sanitária. O negacionismo bolsonarista
provocou uma reação dogmática, que domina a imprensa e a parcela mais
esclarecida da opinião pública: “Se Bolsonaro fala em abrir, exigimos fechar”.
No lugar do debate racional de custos e benefícios de cada restrição sanitária
específica, as vozes indignadas com a criminosa negligência do governo federal
refugiam-se no clamor genérico por lockdowns. Nesse passo, o pensamento
supostamente progressista limita-se a reproduzir a cartilha bolsonarista —
apenas virando-a pelo avesso.
Na prática, como quarentenas prolongadas são
insustentáveis, o clamor só contribui para moldar o ritmo e as formas da
reabertura inevitável. Os governos autorizam a retomada dos setores
politicamente organizados, capazes de exercer pressão eficiente, como templos,
escritórios, indústrias e shoppings. Escolas? As crianças não têm associações
de classe — e não votam. A política, não a epidemiologia, decide a sorte de
“toda uma geração” de brasileiros sem voz.
Fora do Brasil, há negacionistas de direita, como
Trump, e de esquerda, como o sandinista nicaraguense Daniel Ortega e o
nacionalista mexicano López Obrador. No Brasil, porém, a esquerda cavou sua
trincheira no quadrante mais extremo do fundamentalismo epidemiológico. O medo
elege: a bandeira da irredutível “defesa da vida” descortina caminhos oportunos
para a denúncia geral de governadores e prefeitos que, ao longo do tempo,
flexibilizam quarentenas. É nessa moldura que se inscreve a exigência da
manutenção de escolas fechadas “até a vacina”, já explicitada pelo candidato do
PT à prefeitura de São Paulo.
Os alunos não têm voz, mas os sindicatos de
professores têm — e utilizam poderosos megafones para sabotar o mero debate
sobre reabertura escolar. Manaus é mais um indício de que é possível reabrir
escolas com segurança nas cidades que descem a ladeira da curva pandêmica. Daí
surge a palavra de ordem “Não antes da vacina!” — que, nas condições atuais,
equivale a aguardar a descoberta do genuíno Santo Graal ou do mapa da Serra das
Esmeraldas. Escolas, só depois da Segunda Vinda de Cristo, diriam os chefões
sindicais, se empregassem a linguagem dos bispos.
Guterres não tem chance no Brasil. Bolsonaro, que
fingiu decretar a reabertura de quase tudo, nunca falou em abrir escolas. Aqui,
a elite segregou seus filhos em colégios-butique, cujas anuidades são mais bem
expressas em dólar, os governos de esquerda jamais se importaram com a tragédia
educacional retratada nas comparações internacionais do Pisa, e o governo da
extrema direita entregou o MEC a um analfabeto funcional malcriado.
Educação pública é bem supérfluo — eis o único consenso nacional.
- O Globo
Caetano é uma
hipótese de Brasil que gostaríamos que fosse a verdadeira
Para muitos brasileiros, o sol se levanta no fim da
tarde. Mas não por preguiça ou enfado da vida, mas porque é essa a hora em que
ferve a panela de uma cabeça privilegiada que só pensa em nós. Não por
caridade, mas por saber que a solidariedade é a única forma de amor que não
implica em propriedade do outro. E assim amamos e somos livres. Tudo o que ele
faz, escreve, diz e canta está sempre assinalado por essa ideia, à qual ele
parece dedicar vida e obra. Caetano Veloso é uma hipótese de Brasil que todos
nós gostaríamos que fosse a verdadeira.
Caetano é um homem de muitos amigos, sem nenhum
confidente especial. Não por falta de confiança, mas porque seus segredos estão
por aí, a boca larga e pequena, nas letras de suas canções, no que ele diz e
escreve. A poesia de Caetano não é nunca molenga, elegias ao que não importa.
Ela é sempre o resultado de uma mente em chamas, amorosa e combativa, que não
se deixa iludir pelo lugar-comum, mesmo que unanimemente vitorioso. Ele quer
sempre saber se o contrário não é melhor. Ou não.
Às vezes, quando penso em Caetano, penso em
conversas que já tive com Renata Magalhães (uma das produtoras de seu filme),
Antonio Cicero (grande poeta, amigo do peito) ou Susana de Moraes (ela faria 80
anos, no último dia 5, vizinha leonina de Caetano), seus amigos e eventuais
colaboradores. Os três adoram a hipótese de que o Brasil seja um ser cultural
de caminhos contraditórios e radicais.
Quando é moderno, o Brasil pode ser a vanguarda
experimental do mundo. Como foi com Tiradentes, um herói barroco do iluminismo
que acordava a humanidade; ou Santos Dumont, que se recusou a registrar a
invenção do avião, pois devia pertencer a todo mundo; ou Oscar Niemeyer, para
quem Brasília era a concretização em concreto de um modo de viver, em que todos
somos iguais. Mas, quando fica para trás, o Brasil é capaz de recuar à mais
selvagem Idade da Pedra, produzindo os mais nefastos e bárbaros costumes, além de
líderes equivalentes. Caetano foi sempre um dos primeiros, sem nunca resistir a
tentar convencer os segundos, já que tudo pode mudar um dia.
Com todo o respeito aos outros admiráveis artistas
e intelectuais do movimento, Caetano é seu líder ilustrado, o generoso criador
maior do Tropicalismo, praticando-o radicalmente e promovendo-o em que missão
estiver. Foi sua obra que o tornou o último estágio do nosso Modernismo, a
conclusão de uma operação nacional de criação tão bem-sucedida, a melhor em
nossa história, indo de Castro Alves a Roberto Carlos, dos Andrades de 22 aos
irmãos Campos do concretismo, de Sousândrade a Leminski, de Villa a Tom.
Tudo isso com extrema consciência (e, às vezes, um
certo pesar), como fica claro nesse trecho de seu livro de memórias “Verdade
tropical”, de 1997, sobre a canção “Tropicália”, batizada pelo produtor do
Cinema Novo, Luiz Carlos Barreto: “Brasília, sem ser nomeada, seria o centro da
canção-monumento aberrante que eu ergueria à nossa dor, à nossa delícia e ao
nosso ridículo”.
Conheci Caetano Veloso no início de 1966, às
vésperas do carnaval, no Mercado Modelo de Salvador. Éramos um grupo de cinema
que estava na Bahia para participar de um festival, numa época em que os
festivais ainda eram raros.
Lá para as tantas, já de madrugada, chegou ao
restaurante um menino com um violão embaixo do braço, parecendo muito mais moço
do que sua verdadeira idade. Alguém na mesa o conhecia, ele acabou sentando
conosco. Mas só se manifestou quando a conversa girou em torno da eterna
disputa, então na moda, sobre raízes culturais. Alguns dos nossos nacionalistas
do cinema arrasavam com a Jovem Guarda, quando Caetano pegou seu violão e
cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, num andamento mais lento, mais
rebuscado, cheio de descobertas inesperadas. O silêncio se impôs na mesa e ele
repetiu a canção muitas vezes. Quando terminou, eu estava aos prantos.
Caetano Veloso nunca mais saiu de minha vida, mesmo
quando parecia não estarmos de acordo. Sexta-feira passada, ele fez 78 anos de
idade e espero que, para nosso bem, ainda viva o dobro disso. Que nos lembre
sempre de que gente é pra brilhar e não pra morrer de fome.
Decisão sobre conflito entre Aras e Lava-Jato deve ser um julgamento balizador, definidor de limites
O fim do recesso do Judiciário acelera o conflito travado no
Ministério Público Federal em que, de um lado, está o procurador-geral da
República, Augusto Aras, e, do outro, a força-tarefa da Operação Lava-Jato.
Nesse confronto, o Supremo terá um papel decisivo. Logo no primeiro dia de
trabalho depois do recesso, o ministro Edson Fachin, relator da operação no
STF, revogou uma decisão do próprio presidente da Corte, Dias Toffoli, tomada
no plantão do Judiciário, que determinara que os procuradores de Curitiba
compartilhassem com a Procuradoria-Geral da República todas as informações
colhidas em suas operações.
Os procuradores alegam ser necessária autorização judicial para
fornecer as informações, que consideram protegidas por sigilo legal. Aras
despachara para Curitiba a subprocuradora Lindôra Araújo, na tentativa de
conseguir os dados. Sem sucesso, obteve a liminar no plantão Toffoli, sob o
argumento de que o Ministério Público se baseia no “princípio da unidade”,
segundo o qual os arquivos de todas as forças-tarefas são também da PGR. Alegou
ainda outro desvio das forças-tarefas: o acesso a informações de pessoas com
foro privilegiado. Fachin discordou.
Aras mobilizou a corregedoria do MP e o Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP) para abrir o que chama de “caixa de segredos” das
forças-tarefas. Não esconde sua intenção de criar um órgão para coordenar todas
investigações, a Unidade Anticorrupção (Unac). Seria uma forma de o
procurador-geral controlar as forças-tarefas, em desafio à autonomia que sempre
rege o trabalho dos procuradores. No objetivo, tem o apoio expresso do
presidente da República, como deixou claro o senador Flávio Bolsonaro em
entrevista ao GLOBO.
O conflito deverá ser decidido no plenário do Supremo. Espera-se
que seja um desses julgamentos balizadores, para definir espaços e limites da
Procuradoria-Geral, de procuradores e forças-tarefas.
Não se deve ser maniqueista. Reconhecer excessos eventuais na
Operação Lava-Jato não significa levar à condenação um método de trabalho
eficaz no combate ao crime organizado. Em várias situações, forças-tarefas
compartilharam suas informações quando instadas. Tampouco é aceitável
desconsiderar a Lei de Organizações Criminosas, que consolidou a “colaboração
premiada”, essencial às investigações de corrupção.
Os choques em torno da Lava-Jato encontrarão em setembro o
ministro Luiz Fux na presidência da Corte, no lugar de Toffoli. O trânsito de
Aras com Fux, que comandará a pauta da Corte, não deverá ser tão desenvolto.
Fux é tido como um defensor intransigente da Lava-Jato. Está, de todo modo,
garantido um período de embates intensos.
Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de separar, os brasileiros se viram na pandemia em meio a um bate-boca estéril
A macabra contabilidade dos mortos pelo coronavírus e o
noticiário cotidiano sobre a míngua de milhões de cidadãos como consequência da
pandemia e da atuação errática do governo deveriam bastar para que o País
refletisse seriamente sobre como chegamos a essa triste e vergonhosa
situação.
É claro que a dimensão da crise pegou todos de surpresa, aqui
e no resto do mundo, mas é fato também que o Brasil foi um dos poucos países
que menosprezaram a pandemia até que esta se tornasse o pesadelo que é hoje. O
próprio presidente Jair Bolsonaro, como se sabe, continua a fazer pouco da
doença, ainda que ele mesmo seja uma de suas vítimas. O fato de que o Brasil
não tem ainda um ministro da Saúde efetivo e de que o governo trocou duas vezes
o titular da pasta durante a pandemia, por mero capricho do presidente, é
reflexo desse comportamento irresponsável. Restou aos Estados e municípios
agirem por conta própria, sem a necessária coordenação federal, gerando confusão
e em muitos casos agravando a crise.
Mas essa trajetória calamitosa foi construída também, ou
talvez principalmente, por uma crise bem mais ampla e longeva do que a da
pandemia: a da ignorância cívica.
O Brasil dispõe de todos os instrumentos para o bom
funcionamento da democracia. A Constituição estabelece a separação de Poderes e
um sistema de freios e contrapesos. Há eleições regulares e liberdade de
imprensa, e as instituições são apetrechadas para funcionar conforme o
ordenamento constitucional. Contudo, todo esse aparato não tem serventia se os
cidadãos dele não participam.
Essa participação obviamente não se esgota com o depósito do
voto nas urnas durante as eleições. Muito além disso, é preciso, em meio à
natural confusão de interesses, ter a capacidade de encontrar propósitos
comuns, objetivo capital da política. É isso o que gera o senso de
solidariedade que induz os cidadãos a aceitarem decisões difíceis – como, por
exemplo, ficar em casa para enfrentar a pandemia – sem que seja necessário recorrer
a medidas autoritárias.
Embora sempre seja eleito por apenas uma parte da população,
um governo terá muito mais chances de ser bem-sucedido se liderar esse processo
com disposição para ouvir as mais diversas opiniões e se os cidadãos se
organizarem para fazer chegar suas demandas ao governante.
A responsabilidade de governar, portanto, vai muito além da
capacidade de administrar os problemas do dia a dia: um bom governante não é
aquele que, agindo como um messias iluminado, dita o que acredita ser o melhor
para o País, e sim aquele que lidera seus concidadãos na discussão sobre as
melhores soluções para as crises e também sobre o futuro. Somente assim as
decisões governamentais terão o necessário verniz de legitimidade para serem
aceitas pela maioria.
Como parece claro a esta altura, Bolsonaro renunciou a esse
papel, crucial numa democracia. Deliberadamente negou-se a buscar o propósito
comum, agindo como se governasse apenas para seus eleitores.
Bolsonaro, contudo, é apenas uma consequência da incapacidade
de muitos brasileiros de compreender como funciona um governo e o que se deve
esperar de um presidente. Aqui prevalece a ideia de que o vencedor leva tudo.
Mesmo quem não votou em Bolsonaro parece não saber como explorar os mecanismos
da democracia, no seu nível mais básico, para superar esta crise de múltiplas
dimensões.
Na falta de uma liderança política capaz de unir em vez de
separar, os brasileiros se viram em meio a um bate-boca estéril sobre o que
deveria ser prioritário em meio à pandemia – salvar vidas ou preservar
empregos. Não há argumentação, apenas gritaria e intransigência, como se fossem
pontos de vista inconciliáveis.
Bolsonaro, portanto, é o sintoma de um mal muito maior. Há no
País uma enorme carência de educação cívica, que prepare os cidadãos não apenas
para entender os limites do poder, o funcionamento das instituições e o
espírito da Constituição, mas também para participar do debate político em
busca de compatibilidades e de consensos – enfim, do interesse comum. Sem essa
educação, será muito mais penoso sair desta ou de qualquer outra crise.
País é firme no pacto democrático, mas não abre caminho para o desenvolvimento
O desenvolvimento de uma nação é um processo paulatino,
determinado pelas escolhas organizacionais da sociedade ao longo de gerações,
impulsionado pela inventividade, avaliado pelos graus de prosperidade material
e de compartilhamento de riqueza e poder político e sujeito a paralisia e
reversão.
Por vias diversas, a investigação acadêmica nas últimas
décadas tem convergido para essas conclusões. Enfraqueceram-se teorias que enfatizavam
fatores geográficos, religiosos e culturais, as que enxergavam na riqueza de um
país a pobreza de outros e as que previam a decadência do capitalismo.
Dentre as obras mais bem-sucedidas na divulgação do resultado
dessa safra de pesquisas inovadoras está “Por Que as Nações Fracassam” (2012),
parceria entre o economista Daron Acemoglu e o cientista político James
Robinson.
O livro continha apreciação positiva do Brasil. A ascensão do
Partido dos Trabalhadores, a redução da pobreza e o crescimento econômico foram
considerados indicadores da emancipação, de um padrão oligárquico de
apropriação do poder para um modelo aberto.
Oito anos depois, Acemoglu revela frustração. Em entrevista
ao jornal Valor Econômico, atribuiu a quebra de expectativas à corrupção
escancarada no governo petista, à gestão Michel Temer (MDB) e à ascensão de um
presidente com viés autoritário, Jair Bolsonaro.
A democracia próspera do livro teria agora o futuro ameaçado.
A solução do dilema parece assentar-se na correção do viés
excessivamente otimista da obra e, também, do demasiadamente pessimista da
entrevista. O Brasil não estava tão bem nem está tão mal —em que pese a
tragédia das 100 mil mortes pela Covid-19.
Problemas que remontam ao passado mais distante continuam
presentes. A produção por trabalhador tem sido praticamente a mesma há 40 anos.
A educação, apesar da injeção de recursos, condena a maioria da população à
baixa renda.
O apetite por privilégios mantém-se excitado, como se vê no
incipiente debate da reforma tributária.
De outro lado, o edifício da democracia consolidada no pacto constitucional de
1988, submetido a desafios, dá seguidos exemplo de solidez. Demonstra
cotidianamente aos incitadores da truculência que esse meio não terá guarida.
Perde-se tempo e dissipa-se energia cívica, é fato. A
facilidade com que presidentes põem-se a destruir consensos técnicos na
condução das finanças públicas, da educação e da saúde amplia o nosso atraso e
o fardo das gerações subsequentes.
Parado, no meio do caminho entre o grupo de nações pobres e o
clube dos ricos, mas firme no compromisso democrático —assim está o Brasil, e
não é de hoje.
O teto de juros deve ser sempre a última alternativa
O projeto de lei aprovado pelo
Senado que limita os juros do cheque especial e do cartão de crédito durante a
pandemia poderá causar mais mal do que bem. A reação mais provável dos bancos
será restringir a oferta de crédito. No caso do cheque especial, deverá afetar
particularmente clientes de baixa renda, que são os principais usuários desse
produto.
De fato, os juros bancários no
Brasil são muito altos e, no caso das linhas de crédito rotativas, chegam a
níveis absurdos. Vários estudos econômicos mostram, porém, que os altos juros
se devem a uma série de fatores estruturais, como custos administrativos e de
inadimplência e o baixo nível de competição. Os altos encargos trabalhistas,
insegurança jurídica e violência afetam os bancos como qualquer outro setor
econômico. Cinco bancos concentram mais de 80% do mercado. A queda dos juros
será duradoura apenas se o governo e o Congresso Nacional adotarem medidas que
lidam com essas mazelas.
Deveria servir de lição a
experiência no governo Dilma Rousseff, que, com voluntarismo, determinou que os
bancos federais baixassem artificialmente as suas taxas para forçar uma queda
dos preços do sistema como um todo. Durante algum tempo, os juros de fato
caíram, de cerca de 160% ao ano para cerca de 120% ao ano no caso do cheque
especial. Mas os bancos públicos perderam o fôlego financeiro com essa política
insustentável e tiveram que recuar. Com isso, a taxa voltou a subir e se
estabilizou num patamar ainda mais alto nos anos seguintes, em cerca de 270% ao
ano.
O governo Lula teve resultados
mais permanentes, ao atacar alguns dos principais componentes que encarecem o
spread bancário. Foram tomadas medidas que fortaleceram as garantias, como a
aprovação da nova Lei de Falências, a adoção da alienação fiduciária no
financiamento de imobiliário e a criação do crédito consignado. Não por acaso,
as linhas de crédito de veículos, consignado e imobiliário são as com juros
mais baixos no mercado
A partir de 2016, no governo
Temer, o Banco Central voltou a lidar de forma mais estrutural com os altos
custos do crédito rotativo. Uma das medidas foi limitar a 30 dias o tempo em
que os clientes podem ficar pendurados no crédito rotativo do cartão de
crédito. As taxas, que chegaram a perto de 500% ao ano, caíram a 300% ao ano.
Nesse percentual, ainda estão muito altas. Mas, para baixá-las mais, o caminho
mais seguro é mexer na complexa estrutura dessa linha de crédito. Há muito
poder de mercado nas mãos de alguns participantes da cadeia do produto, que aos
poucos está sendo desmontado. Um ponto central é o sistema de subsídios
cruzados criado pelo cartão com pagamento à vista, isento de juros.
No caso do cheque especial, o
Banco Central primeiro incentivou o próprio sistema bancário a adotar uma
autorregulação para fazer os clientes migrarem dessa linha de crédito
emergencial para outras mais baratas. Os resultados foram insuficientes, por
isso no ano passado o Banco Central adotou medidas adicionais.
Uma delas foi justamente a adoção
de um teto para os juros do cheque especial, de 150% ao ano. Embora não menos
polêmico, o processo de definição desse limite foi bem diferente do projeto
aprovado pelos senadores. O Banco Central fez estudos econômicos que mostraram
que os bancos têm um grande poder de mercado no cheque especial e que os
clientes, em geral de baixa renda, são pouco sensíveis a variações da taxa de
juros.
O fato de o Banco Central ter
identificado falhas de mercado, porém, não significa necessariamente que a
imposição de limites para os juros seja o melhor remédio. A ação preferencial
deve ser sempre na estrutura do mercado, derrubando barreiras que impedem maior
competição, e na educação financeira, para que os clientes façam as escolhas
adequadas na hora de contratar as operações de crédito.
O teto de juros deve ser sempre a
última alternativa e, se possível, apenas temporária, até que sejam corrigidos
problemas estruturas. Nesses casos, a definição de percentual adequado para o
limite de juros não é trivial. Depende de uma cuidadosa avaliação de custos e
benefícios. Uma taxa muito alta torna inócuo o limite e incentiva bancos que
cobravam mais barato a convergir a esse percentual. Um teto muito baixo - como
o definido pelos parlamentares, em 30% ao ano - provoca uma forte restrição de
crédito pelos bancos. Pior que crédito caro é não ter crédito nenhum.
Provisoriamente não cantaremos o amor,