segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

“O governo brasileiro cometeu um erro grave”

Entrevista: Rubens Ricupero, ex-embaixador do Brasil na Itália
Carolina Bahia Brasília
DEU NO ZERO HORA (RS)

Ele já frequentou as principais mesas de debates da diplomacia internacional. Nomeado embaixador do Brasil nos Estados Unidos, em 1991, e na Itália, em 1995, o ex-ministro da Fazenda no governo Itamar Franco Rubens Ricupero é um crítico da forma como o ministro da Justiça, Tarso Genro, vem conduzindo o caso do italiano Cesare Battisti. Para Ricupero, o ministro interferiu em uma decisão técnica do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), causando uma crise diplomática entre Brasil e Itália.

Atualmente em São Paulo, Ricupero é diretor da Faculdade de Economia e Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Pelo telefone, o ex-embaixador deu a seguinte entrevista a Zero Hora:

Zero Hora – O governo italiano tem razão de estar ofendido com a concessão pelo Brasil de refúgio a Cesare Battisti?

Rubens Ricupero – O governo brasileiro cometeu um erro grave, desnecessário e precipitado. O ministro da Justiça interferiu em um assunto que normalmente seria submetido ao Supremo Tribunal Federal. O assunto continua com o Supremo, mas antes de tudo isso ocorrer as condições eram outras.

ZH – Tarso argumenta que tomou uma decisão técnica, com base legal. O senhor discorda?

Ricupero – Não há fundamento legal para isso. O ministro foi contra a opinião do Conare, que negou o pedido de refúgio a Battisti. O Conare é o órgão técnico responsável pelos julgamentos dos pedidos de asilo no ministério. Só se pode conceder esse tipo de pedido quando estiver evidente que o país de origem vai perseguir, por razões políticas, ideológicas ou religiosas a pessoa. Infelizmente, neste episódio, o Itamaraty não foi ouvido ou foi marginalizado.

ZH – Tarso interferiu em um assunto do Itamaraty?

Ricupero – Tenho apreço pelo ministro Tarso Genro, acho que ele é uma pessoa de valor. Mas acho terrível a falta de coordenação do governo. O ministro da Justiça se mete em uma questão de outra pasta e cria um problema que agora fica nas mãos do Itamaraty. Nessas matérias que envolvem outros países, sobretudo uma nação importante, ele deveria ter ouvido o Ministério das Relações Exteriores. O Itamaraty está embaraçado porque era contra, todo mundo sabe.

ZH – Interferir nesse caso foi um erro do ministro?

Ricupero – Há pessoas que atravessam a rua para pisar em uma casca de banana na outra calçada. Essa casca de banana não estava na calçada do ministro. Ele atravessou a rua para criar um problema.

ZH – A conclusão seria diferentes se o Itamaraty fosse ouvido?

Ricupero – Em episódios semelhantes, os governos de outros países alegam razões humanitárias para negar a extradição. Na França, Battisti era tolerado, mas não conseguiu asilo. Em um caso como esse, embora as razões humanitárias não tenham peso político, é mais fácil o país de origem aceitar, porque a rejeição é baseada na piedade, na compaixão.

ZH – Por que esse caso gera tanta polêmica?

Ricupero – Ao conceder a Battisti o refúgio político, o ministro está, em nome do governo brasileiro, fazendo um julgamento da situação política italiana. O que se está dizendo, de outra maneira, é que o outro país é uma ditadura, não é um Estado de direito.

ZH – O fato de Battisti ter sido condenado à revelia não influencia no caso?

Ricupero – Ele fugiu. Por isso, foi condenado à revelia em quatro homicídios. Os cúmplices de Battisti já cumpriram pena e foram liberados.

ZH – O que o Brasil tem a perder nessa briga com a Itália?

Ricupero – Esse caso afeta o comércio, os investimentos estrangeiros e o próprio prestígio do Brasil. Um país que é candidato ao Conselho de Segurança da ONU não pode ter esse tipo de atitude. Os outros países podem julgar que o comportamento foi ideológico ou amador. Vão dizer que somos um país de incompetentes, onde a chancelaria não é ouvida, onde o ministro da Justiça se mete na diplomacia. Não é de interesse da Itália esse mal-estar com o Brasil. Mas o governo italiano é pressionado. Esse caso mexe em um ponto muito sensível, porque esses movimentos terroristas fizeram muitas vítimas na Itália. Há centenas de parentes de policiais e professores que foram mortos por esses grupos. Nas manifestações contra a embaixada do Brasil há filhos de vítimas que foram assassinados, viúvas.

ZH – O caso pode afetar as relações do Brasil com o G-8 (sete países mais ricos e a Rússia)?

Ricupero – A Itália preside o G-8 neste momento. É claro que ela não vai deixar de convidar o Brasil por causa disso, mas é desagradável. Não haverá mais boa vontade em relação ao Brasil.

ZH – Como fica a imagem do Brasil no Exterior?

Ricupero – O Brasil pode ficar com a imagem de país que tem simpatia pelo terrorismo justo em um momento em que há uma luta mundial contra o terrorismo.

Lula salvou o PMDB

Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Lula completa hoje uma obra relevante de seu mandato na área política: o renascimento do PMDB. De lambuja, aprofundará o processo de submissão e irrelevância do PT. Quando o petista assumiu o Planalto, há seis anos, os peemedebistas estavam no limbo, divididos e com pouco poder.

Agora, o PMDB está prestes a mandar no Congresso inteiro.

Comportado, o PT assiste de camarote e aplaude o patrocínio lulista para as possíveis vitórias de José Sarney (favorito na eleição de presidente do Senado) e de Michel Temer (nome forte na Câmara).

Desde os tempos de Fernando Collor de Mello os peemedebistas não mandavam tanto. Não custa lembrar que o PMDB no comando do Congresso resultou trágico em 1991-1992 para o ocupante do Planalto. A Câmara aprovou e o Senado referendou o impeachment do presidente da República.

O PMDB atual é igualzinho ao de 16 anos atrás. Está apenas anabolizado e com mais apetite, salivando.

Como diz o ditado espanhol, talvez ignorado por Lula, "cria cuervos y te comen los ojos" (crie corvos e eles te comem os olhos).

Se tudo se confirmar hoje no Congresso, com a taxa de traição nos padrões usuais, as vitórias de Sarney e de Temer serão o ápice do processo de reabilitação do PMDB.

Na Esplanada, o partido já tem seis ministros indicados politicamente.

São sete quando se considera a filiação do chanceler Celso Amorim.

Tudo para uma legenda que nunca elegeu um presidente da República e há quase 20 anos não ganha o governo de São Paulo.

Pragmático, Lula nunca economizou energias para paparicar o PMDB. Agora, finaliza a missão de revitalizar a sigla cuja vocação atávica é ser a madame de Pompadour da República. Assim como a amante do rei francês Luís 15, os peemedebistas querem manipular e influir. Com o PT no Planalto, quem diria, encontraram terreno fértil.

A cultura do desemprego anunciado

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

Os sinais de que a crise econômica resultante da especulação financeira está chegando aqui nos vêm através do desemprego anunciado,uma relativa novidade no funcionamento do mercado de trabalho. Relativa novidade se comparada com o modo como, há meio século, o desemprego alcançava os trabalhadores. Ontem, havia uma cultura do trabalho, de que a perda do emprego, e não propriamente o desemprego, era um capítulo menor. O trabalhador chegava à empresa de manhã cedo e não encontrava na chapeira o seu cartão de ponto. Ficava amarelo, pois já sabia que ia receber o bilhete azul, a demissão. Ser demitido era um drama, pois era como receber uma marca depreciativa na biografia profissional, demissão que tinha que ser explicada ao novo potencial empregador.O desemprego aparecia como questão pessoal e não como questão social,que é o que ocorre hoje.

Não era natural ficar desempregado. Em boa parte porque o chamado mercado de trabalho era no Brasil um mercado dual: um setor urbano, industrial e moderno,em que tinham vigência as leis trabalhistas desde os anos 40; e um setor agrícola, rural e atrasado em que tinham vigência os costumes de formas semisservis de trabalho, resquícios de como se deu o fim da escravidão e a implantação do trabalho livre sem adoção do trabalho assalariado. Uma anomalia bem brasileira que assegurou a imensa acumulação de capital que empurrou o Brasil para o mundo moderno.

Entre os dois Brasis,a mão de obra escoava devagar do Brasil agrícola para o Brasil industrial,de modo que o atraso funcionava como um regulador do mercado de trabalho urbano, assegurando uma espécie de falso regime de pleno emprego que se expressava na estabilidade do trabalhador na ocupação, não raro várias gerações de uma mesma família trabalhando para os mesmos patrões durante décadas. Criou-se uma cultura laboral a partir dessa realidade semicapitalista que, de certo modo, norteia ainda hoje a mentalidade do trabalhador, sua concepção de emprego e trabalho e suas aspirações. Havia desempregados, mas não propriamente desemprego como estado social, como praga,como doença de paciente em UTI, cuja febre é medida regularmente pelo chamado índice de desemprego.

Já nos anos 50, com o boom da indústria automobilística e as secas no Nordeste, fluxos intermináveis de trabalhadores deixaram a roça pela fábrica. Falou-se muito na seca como causa das migrações internas, o que ajudou a criar nas grandes cidades um estado de espírito favorável ao acolhimento dos migrantes que chegavam em grandes grupos. Ao mesmo tempo emergia o preconceito contra o “baiano”, pelas tensões decorrentes da degradação urbana representada por favelas e cortiços, expressões da degradação salarial e do descompasso entre a oferta e a demanda de mão-de-obra. Praticamente não se falou nos efeitos perversos da acelerada modernização no campo, promovida e financiada pelo governo, que teve como imediata consequência a expulsão de milhares de trabalhadores da agricultura, a mão de obra substituída por máquinas,herbicidas e fertilizantes e terras inúteis para a agricultura comercial, usadas na subsistência dos trabalhadores, convertidas em terras economicamente aproveitáveis. O que outros países viveram cem anos antes, vivemos aqui tardiamente, numa prolongada agonia.Foi nosso recurso substitutivo para a chamada acumulação originária. A falta de uma reforma agrária que acompanhasse e compensasse o desemprego rural,num momento em que poderia ter sido feita justamente para atender ao aumento da demanda de alimentos pelo mercado interno, despejou nas grandes cidades os induzidos excedentes de mão de obra da agricultura. Até hoje, o desemprego urbano e industrial é em boa parte disfarce do desemprego rural. O Bolsa-Família é apenas o remendo que atenua para 11 milhões de famílias os efeitos da inserção econômica defeituosa.

Terminado o período de euforia econômica dos anos70, disseminou-se o desemprego como estado permanente e problema social, como novo conceito no lugar do mero conceito de desempregado, os custos das oscilações da economia transferidos para os trabalhadores, bem como a responsabilidade pelo problema. No fundo,a nova mentalidade laboral diz a todos que o trabalhador é o responsável pela falta de trabalho. O desempregado individual passou a ser a vítima do desemprego social, cabendo lhe definir as estratégias para superar ou contornar essa interiorização de um problema coletivo, que não causou. Hoje,um número extenso de famílias da classe trabalhadora e da classe média já experimentou ou tem experimentado continuamente a presença de ao menos um membro desempregado, subempregado, empregado precariamente ou à procura de emprego. Num momento da história social em que a independência pessoal é uma aspiração própria da modernidade, o desemprego reforça a dependência em relação à família e faz da família uma espécie de trabalhador coletivo substituto do trabalhador individual e da contratualidade do trabalho. Uma tensão entre tendências opostas da realidade,que justamente define a modernidade como a impossibilidade plena do moderno – no direito social, no direito econômico, na conduta pessoal e na vida social. De certo modo, nesses casos, é a família que, ao socializar as perdas do desemprego de um de seus membros, subsidia as empresas beneficiárias da redução dos custos do trabalho e mascara o que o desemprego efetivamente é.

De fato,o desemprego secundariza as pessoas, não só o desempregado, e dissemina a cultura dessa secundarização, que é uma cultura de medo, incerteza e conformismo. Mesmo que a perda do emprego não se confirme para a maioria, a cultura do desemprego anunciado chega a todos.Uma cultura que afeta todas as instituições, da família à religião, muda padrões de comportamento, reforça a dependência material de uns em relação aos outros, fragiliza a coesão social, promove o descrédito dos valores de referência da conduta de cada um e de todos.

*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

Trabalho de luto

Ricardo Antunes
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / +MAIS!

Relatório da OIT sobre a América Latina e anúncios de demissões nos EUA, na Europa e no Japão apontam para o derretimento dos níveis de emprego em escala global

Começam a ficar mais claros os contornos e as primeiras consequências da crise que vem liquefazendo o sistema do capital em escala global. O Fórum de Davos (Suíça) "começa com executivos em pânico" (Dinheiro, 28/1).

Lá, onde estão reunidos representantes das "classes verdadeiramente perigosas", os executivos globais contabilizam o que já é incontável e mergulham numa crise de proporções alarmantes.

Enquanto isso, no outro canto do mundo, em Belém, o Fórum Social Mundial ganha uma impulsão extra.

Isso porque ele vem, desde 2001, denunciando a lógica destrutiva dominante. Se ainda não foi capaz de oferecer um projeto societal alternativo e global para o mundo, contrário aos imperativos do capital, muitos de seus partícipes sabem que o capitalismo é o responsável pela (des)sociabilidade vigente e suas mazelas. Esse sistema poderá até ser ainda mais longevo, mas será sempre empurrado no tranco.

Ora definhando o Estado ao mínimo (no que tange à sua dimensão pública), ora tendo surtos intervencionistas, como este que se abateu no governo de George W. Bush e de seus epígonos.

Mas a crise vive um ciclo prolongado, datado do início dos anos 1970.Começou destroçando os países do Terceiro Mundo. Um a um, Brasil, Argentina, México, Uruguai, Colômbia, para ficarmos somente em alguns exemplos da América Latina, foram mergulhados no estancamento e na recessão, o que fez desmoronar o pouco que esses países construíram no capítulo dos direitos sociais do trabalho.

Mas isso foi só o começo: depois foi a vez, no fim dos anos 1980, de levar à bancarrota o chamado "socialismo real" (União Soviética e o restante do Leste Europeu). Menos do que expressão do "fim do socialismo", esse fato antecipava uma nova etapa da crise do próprio capital.

No olho do furacão

No presente, depois do seu epicentro ter passado pelos principais países capitalistas (Japão, Alemanha, Inglaterra e França), chegou ao coração do sistema: os EUA estão agora no olho do furacão.

E, com isso, uma vez mais se acentua o caráter pendular do trabalho.Nos países que vivenciaram traços do Estado de Bem-Estar Social, especialmente na Europa social-democrática, o dilema se colocou (ainda que sem tocar na raiz do problema) entre trabalhar menos e viver as benesses do ócio, curtindo o "tempo livre" (vale a indagação: será mesmo tempo livre, sem aspas?).

Trabalhar menos, para todos viverem uma vida melhor, tornou-se consigna forte.Mas na América Latina (e o mesmo vale para a Ásia e a África) a dilemática tem uma profundidade ainda maior.

Neste verdadeiro continente do labor, o pêndulo é ainda mais ingrato em seus dois polos opostos: ele oscila entre trabalhar ou não trabalhar; entre encontrar labor ou soçobrar no desemprego.

Mais precisamente, entre sobreviver ou experimentar a barbárie, pois o Estado de Bem-Estar Social sempre andou muito longe daqui.

Migalhas

No meio do caminho, uma massa monumental de assalariados vivenciando uma precarização estrutural do trabalho em escala continental. Crianças, negros, índios, homens e mulheres trabalhando no fio da navalha.

Conforme recordou Mike Davis, em seu "Planeta Favela" [ed. Boitempo], "não é raro encontrar [na América Central] empregadas domésticas de sete ou oito anos com jornadas semanais de 90 horas e um dia de folga por mês" ("Child Domestics", Domésticas Infantis, relatório da Human Rights Watch de 10/6/2004).

Com a crise, o quadro se agrava: no recentíssimo "Panorama Laboral para América Latina e Caribe - 2008" (Organização Internacional do Trabalho, 27/1), o cenário social apresentado é de tal gravidade que beira a devastação.

Se o desemprego diminuiu nos últimos cinco anos, o relatório da OIT antecipa que, "devido à crise, até 2,4 milhões de pessoas poderão entrar nas filas do desemprego regional em 2009", somando-se aos quase 16 milhões já desempregados (sem falar no "desemprego oculto", nem sempre captado pelas estatísticas oficiais).

Ou seja, o que se conquistou em migalhas, a crise derreteu no último trimestre de 2008.

Se, no centro do sistema, têm-se as maiores taxas de desemprego das últimas décadas, no continente latino-americano esse quadro se agudiza.

Na maioria dos países houve retração salarial; as mulheres trabalhadoras têm sido mais afetadas, com taxa de desemprego 1,6 vez maior que os homens, e o desemprego juvenil, em 2008, em nove países, foi 2,2 vezes maior do que a taxa de desemprego total. A informalidade, que era exceção no passado, torna-se a regra.

Flexibilidade

No Brasil, a "marolinha" já desempregou milhares de trabalhadores na indústria, nos serviços e na agroindústria (atingindo até o etanol do trabalho semiescravo).

O país, que o governo Lula afirmou ter uma economia estável e refratária à crise, está vendo a cada dia a corrosão dos níveis de emprego. O empresariado pressiona mais uma vez para aumentar a "flexibilidade" da legislação trabalhista, com a falácia de que assim se preservam empregos.

Nos EUA, na Inglaterra, na Espanha e na Argentina, entre tantos outros exemplos, flexibilizou-se muito. Fica a indagação: por que então o desemprego vem se ampliando tanto nesses países?

Para concluir, vale adicionar mais uma contradição vital em que o mundo mergulhou, quando o olhar vai além do cenário televisivo oferecido pelo contagiante "big brother" global: quando se reduzem as taxas de emprego, aumentam os níveis de degradação e barbárie em amplitude global.

Se, em contrapartida, o mundo produtivo retomar os níveis altos de crescimento, esquentando a produção e seu modo de vida fundado na superfluidade e no desperdício, aquecerá ainda mais o universo, o que é mais um passo certo para uma outra tragédia já bastante anunciada.

Ricardo Antunes é professor titular de sociologia na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Adeus ao Trabalho?" (Cortez).

Crise terá de ser paga pelos ricos, não pelos pobres, diz Fórum Social

Soraya Aggege e Maiá Menezes
DEU EM O GLOBO

Participantes fazem agenda de protestos em cúpulas de Otan, G-8 e G-20

BELÉM. A fatura da crise econômica terá de ser paga pelos ricos. Os pobres vão resistir e protestar. Esses foram os principais consensos do Fórum Social Mundial (FSM), que encerrou ontem a sua nona edição. As articulações, que incluíram 5.808 entidades de 142 países - a maioria (4.193) latinas -, resultaram em um longo cronograma de protestos mundiais a serem feitos no futuro. O conjunto de mobilizações une os dois temas que prevaleceram durante o encontro: crise econômica e preservação da Amazônia.

O calendário foi lido por representantes de 22 grupos setoriais e fechado por consenso entre os participantes.

Uma das ações globais será a semana contra a guerra e o capitalismo, de 28 de março a 2 de abril. O objetivo é fazer protestos em todos encontros de cúpula que envolvam a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), o G-8 (grupo dos sete países mais industrializados do mundo mais a Rússia) e o G-20 (grupo que abrange também economias emergentes).

Também foram lançadas datas globais de ações contra a destruição da Amazônia, no dia 12 de outubro, e em defesa da Palestina, em 30 de março.

Apesar das convergências, a multiplicidade de discussões impediu a formulação de um documento único:

- Este não é um Fórum para decidir nada homogeneamente. Não queremos fazer a velha política. Queremos uma nova cultura política. Não é para ninguém ser dirigente de ninguém - avalia Cândido Grzybowski, um dos fundadores do FSM, que vê como desafio para o Fórum a "revolução de mentalidades".

Para Oded Grajew, também fundador do FSM, o papel do que os organizadores chamam de "processo do Fórum Social" é disseminar as mensagens extraídas na última assembleia do encontro, ontem à tarde:

- Temos que reforçar articulações e continuar ousando.

Fórum temático discutirá questões de povos indígenas

A ativista italiana Rafaela Bolini, do conselho internacional do FSM, viu maturidade na nona edição do encontro:

- Tivemos um período em que o debate era se iríamos dialogar com a política ou seríamos autônomos. Quem é autônomo não tem condição de dialogar com ninguém. O Fórum demonstrou que cresceu: é mais forte e pode dialogar - afirmou Rafaela.

Os índios presentes no Fórum decidiram pela organização de um fórum social temático sobre povos indígenas.

- Somos atores políticos vivos. Não parte do folclore - disse Miguel Palacin, da coordenação andina dos povos indígenas.

O FSM se organizou em 22 reuniões setoriais ontem de manhã e, no fim da tarde, fechou suas propostas em assembleia geral. O enfoque que ganhou a adesão de todos partiu dos principais braços de mobilização do FSM, os movimentos sociais e sindicais: "Não vamos pagar pela crise.

Que paguem os ricos", anunciaram na chamada "assembleia das assembleias" do FSM.

As discussões sobre a realização do próximo FSM continuam até quarta-feira. Há várias propostas, mas vem ganhando força a ideia de que a próxima edição centralizada acontecerá apenas em 2011, na África. Há ainda a possibilidade de o FSM se basear nos Estados Unidos ou no Oriente Médio. Para 2010, o debate é se o Fórum será um dia de ação global ou se terá "filhotes temáticos" em alguns continentes.

Davos faz chamado à cooperação contra crise

Fernando Dantas, DAVOS
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Teste de novo modelo vai ser em abril, na próxima reunião do G-20

O Fórum Econômico Mundial de 2009, que se encerrou ontem, em Davos, começou em tons de quase desespero com a virulência da crise financeira e econômica, e terminou com um chamado à cooperação internacional como forma de encarar os tempos dificílimos à frente. Se na área de comércio internacional permanece o impasse em relação à Rodada Doha, agravado agora pela tentação de cada país de restringir importações para tentar proteger os produtores domésticos, a reunião de Davos mostrou que há, no mínimo, uma clara consciência da parte das lideranças econômicas e políticas de que é preciso agir de forma rápida, ambiciosa e ampla para tentar conter a crise.

O primeiro grande teste dessa renovada aposta na cooperação multilateral será a reunião de chefes de governo do G-20, em 2 de abril em Londres. Ao contrário da primeira cúpula do G-20, realizada em novembro em Washington, e esvaziada por ter como anfitrião um presidente George W. Bush em melancólico final de mandato, a reunião de Londres será vitaminada pela presença do carismático novo presidente americano, Barack Obama, no esplendor da força política do início de mandato. O G-20, que inclui o Brasil, reúne as principais economias desenvolvidas e emergentes, responsáveis por cerca de 90% do PIB global.

Ainda em abril, na esteira do G-20, o Fórum Econômico Mundial realiza uma reunião regional no Rio de Janeiro, que será beneficiada pela alta voltagem do momento econômico e político global. O Fórum do Rio pode ser uma ótima oportunidade para o Brasil reforçar a sua posição de importante economia emergente que atravessa a crise até agora de maneira relativamente menos catastrófica do que a da média dos países.

Um tema que deve ter itens razoavelmente bem preparados para a tomada de decisão na reunião do G-20 é o da regulação financeira. Segundo o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, que participou do Fórum em Davos, uma proposta que deve chegar à mesa dos chefes de governo é a de se criar um colegiado mundial de reguladores, uma instituição de base mais permanente, "onde as informações possam ser trocadas a cada dia, e não a cada mês".

Na área fiscal, a orientação de se promover o maior número possível de pacotes de estímulo deve ser mantida na reunião do G-20. Até o momento, os planos de impulso fiscal do G-20 já somam algo como 1,5% a 2% do PIB dos países do grupo. Uma questão que certamente será abordada é a contaminação dos países pobres e emergentes pela crise iniciada nos países ricos, e o que fazer para contê-la. Há um consenso de que o Fundo Monetário Internacional (FMI) deve ser maciçamente fortalecido em sua capacidade de empréstimo.

Os movimentos naquele sentido até agora, porém, são tímidos. John Lipsky, vice-diretor-gerente do FMI disse que gostaria que o Fundo pelo menos dobrasse a sua capacidade atual de empréstimo, de US$ 250 bilhões. Ele lembrou que o Japão já se propôs a emprestar US$ 100 bilhões ao FMI, e que assim faltaria equacionar os restantes US$ 150 bilhões. Numa espécie de painel conclusivo sobre o futuro da economia global realizado no sábado, Montek Ahluwalia, vice-chairman da Comissão de Planejamento da Índia, deixou claro que os US$ 250 bilhões para o FMI propostos por Lipsky são muito modestos: "As reservas da Índia são mais do que isso", alfinetou Montek.

O economista Martin Wolf, colunista do Financial Times, lembrou no mesmo debate que, exatamente por não confiarem nem no cacife nem na disposição do FMI de ser um emprestador em momentos de trava no crédito global, é que os emergentes em conjunto acumularam trilhões de dólares de reservas. Wolf vê essa questão como causa dos atuais desequilíbrios da economia global, já que o excesso de poupança dos emergentes, para acumular reservas, é canalizado para os ricos, onde comprime e juros e gera bolhas especulativas.

Davos 2009 teve um tom mais sóbrio que o habitual, com menos celebridades ligadas ao showbiz. Não houve a presença nem mesmo de Bono, da banda irlandesa U2, que compareceu por vários anos seguidos.

Estados terroristas

José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO /+MAIS!

Combates na faixa de Gaza sugerem que negociações de paz só serão possíveis após forte pressão internacional

Não me sinto à vontade escrevendo sobre a horrenda situação do Oriente Médio; não acompanho os acontecimentos nos pormenores nem conheço os meandros da luta que ali se desenvolve.

Mas me sinto moralmente obrigado a deixar público meu claro repúdio aos horrores que ali têm ocorrido e meu temor de que seus agentes estão se chafurdando num pântano que poderá engolir o que nos resta de humanidade e de confiança na democracia.

Não posso continuar calado, mergulhado em minhas obsessões, como se fundamentalistas palestinos e israelenses não estivessem se matando e emporcalhando a dignidade de dois povos. Nessas condições o silêncio é conivente.

Há 60 anos, graças a uma resolução da ONU, foi criado o Estado de Israel. Uma forte reação árabe e palestina era esperada, e só poderia haver perspectiva de paz e progresso na região se os dois maiores contendores tirassem vantagens da nova situação, separando a luta pelo Estado nacional da questão religiosa e cultural.

Aconteceu, porém, o contrário. Desde o início Israel se firma como Estado judeu. Enfrentando resistências, os sionistas de esquerda lutaram por um Estado leigo, e o confronto somente amaina quando se chega a uma situação de compromisso. Israel não conta com uma Constituição escrita, isto é, um acordo articulado em que vários grupos cedem para configurar um fundamento legal a partir do qual possam resolver suas contendas. É regido por um sistema de leis parecido com a Common Law, obviamente sem a tradição inglesa, que flexibiliza a norma jurídica para que um grupo politicamente dominante possa mais facilmente impor a legitimidade de seu ponto de vista. Nos últimos anos o Estado israelense de Direito está cada vez mais sendo sufocado pela intolerância dos fundamentalistas.Nesse contexto, a extensão do território nacional se torna uma questão religiosa. Sabe-se que o Estado nacional exerce o monopólio da violência num determinado território, que, na sua essência é público, a propriedade privada sendo conformada por ele. Quando o Estado é religioso, a terra é dádiva divina, cabe ao Estado conservá-la tal como o povo eleito a recebeu de Deus.

No lugar da "res publica" impera a "res divina". Não são mais o Estado e os cidadãos que possuem a terra, esta é que os passa a possuir como manifestação de sua divindade. Há mais de 40 anos a esquerda israelense propõe trocar terra pela paz, mas, até agora, o território palestino continua a ser comido pelas bordas, a fim de que o Grande Israel renasça de suas cinzas, como se outros povos nunca tivessem tido direito sobre esse território.

O Estado judeu não pode conceder plena cidadania a seus membros. Os palestinos israelenses foram proibidos de votar nas próximas eleições porque podem estar colaborando com o inimigo. E, como a taxa de natalidade deles é superior à dos israelenses judeus, é de esperar que seus direitos democráticos sejam cada vez mais restringidos.

Jerusalém é uma cidade multirracial e multicultural. Sagrada para três religiões.

Mas desde 30 de julho de 1980 foi decretada capital indivisa do Estado de Israel, indiferente às demandas da população árabe que ali habita e dos acordos internacionais que asseguraram a fundação desse Estado.Infelizmente o lado palestino seguiu na mesma direção.

Não se pode colocar no mesmo saco movimentos nacionalistas do Oriente Médio e a renovação fundamentalista do islã, a despeito de estarem cada vez mais trançados.

Essa confusão é uma triste herança da era Bush e da revolução iraniana, que cobriu o verdadeiro conflito político com o véu ético-religioso da oposição entre o bem e o mal.

Mas a luta pela instalação de um Estado palestino é antiga.

Em 1917 os ingleses conquistaram a Palestina do Império Otomano. E assim começou o jogo entre aqueles que desejavam independência do novo território ou sua transformação num novo Estado judeu, proposto pelos sionistas. Desde o início a guerrilha se instalou dos dois lados, sendo hoje inútil procurar quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha.

Atrocidades foram cometidas pelos dois lados. Não deixo de me indignar, de tomar partido segundo as circunstâncias, mas agora me importa salientar a farsa jurídica que Israel e as organizações palestinas estão praticando para encobrir o massacre dos povos que representam.

Na guerra contemporânea não existe mais clara distinção entre o soldado e o civil. O primeiro não sobrevive sem um fantástico esforço produtivo do segundo. Não é à toa que, já na Segunda Guerra, cidades foram arrasadas para enfraquecer o esforço produtivo do inimigo.

Essa indistinção se avoluma quando a guerrilha se transforma em cruzada, ou intifada, que converte o martírio no caminho de salvação.

Acuados por todos os lados, pela violência israelense e pelo jogo desleal dos Estados árabes, cada vez mais os palestinos desacreditam nas soluções políticas e se empenham numa reconquista religiosa das terras perdidas.

Para eles a existência de um Estado palestino implica aniquilação do Estado de Israel, o qual por sua vez responde tentando aniquilar o Hamas.

Mas, de um lado e do outro, a política continua sendo praticada, mesmo quando, como nos mostram os últimos episódios, a guerra se faz como a negação dela. Creio que aqui está um dos pontos nevrálgicos da questão.

Os movimentos nacionalistas palestino e israelense são empurrados para o terror. O inimigo é tanto o soldado como o civil que o apoia mesmo sem querer. O voto favorável à guerra ou a indiferença são forças mais destrutivas do que as armas de combate.

Trava-se uma guerra entre um Estado constituído e um Estado em via de constituição.

Israel se orgulha de possuir um excelente código de ética para suas Forças Armadas, mas, como declarou o major Jacob Dalla (Folha, suplemento "New York Times", 26/1), "as pessoas perdem de vista o contexto de uma guerra numa área densamente povoada, onde, a cada vez que uma porta é aberta, um soldado se pergunta quem pode estar atrás dela".

Mesmo usando a cabeça, creio eu, é natural atirar no outro indiferenciado. O irracional é entrar numa guerra desse tipo. E, quando alguém denuncia o absurdo, posto que os dois lados vestem o manto da religião, a denúncia é tachada de antissemitismo ou anti-islamismo.

Mas a luta é sobretudo política, embora às vezes se assemelhe a um extermínio tribal. O direito está servindo sobretudo para encobrir o uso de métodos terroristas. O que define a prática jurídico-moral não é o código, mas sua prática. Israel se nega como Estado ao massacrar civis indefesos.

O Hamas ou o Hizbollah se negam como movimentos nacionalistas insistindo na guerra do terror e se recusando a participar de negociações políticas. Não vale negar-lhes o caráter de interlocutores porque têm inscrito no programa a destruição do Estado de Israel.

O fato de se sentarem numa mesa de negociação implica o reconhecimento do outro como interlocutor político.

Não sejamos porém ingênuos. Tal como a guerra está se desenvolvendo, uma negociação política somente será possível mediante forte pressão internacional.

A ONU pouco poderá fazer sem o apoio decidido dos Estados Unidos. E para que isso se torne possível, é preciso que se compreenda que essa guerra é mais do que um conflito de civilizações, porquanto, além de pôr em choque diferentes formas de vida, faz com que o Estado de Direito finja existir para encobrir práticas de aniquilação do outro simplesmente porque é outro.

José Arthur Giannotti é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.

Evento termina sem texto final

Roldão Arruda, BELÉM
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Participantes também não deram sugestões para enfrentar crise, muito debatida em Belém

O Fórum Social Mundial foi encerrado ontem em Belém, no Pará, sem nenhum documento final com as conclusões do encontro ou qualquer sugestão a respeito da crise econômica mundial - exaustivamente debatida durante os sete dias do evento. Na assembleia geral, realizada ontem ao ar livre, no fim da tarde, foram lidos documentos sobre um conjunto de 22 questões pontuais, variando da preservação da Amazônia aos problemas enfrentados por migrantes ao redor do mundo, a demarcação de terras indígenas, a questão palestina e outros.

Apesar da ausência de um documento global, os comentários dos organizadores e participantes ao final do evento tinham quase sempre dois pontos comuns. O primeiro é a ideia de que o fórum aponta na direção certa com seu lema "um outro mundo é possível". Ideia que a crise econômica mundial serviu para fortalecer. O segundo ponto é que o fórum precisa ampliar seu raio de ação, atraindo mais entidades da Ásia, Leste Europeu, África e de outras regiões do mundo. Neste ano, das 5.808 entidades participantes, 4.193 eram da América do Sul.

"Davos acabou. Nós somos o futuro", comentou Candido Grzybowski, do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial e diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), referindo-se à cidade suíça que abriga anualmente um fórum com a elite do pensamento capitalista.

"A crise global é a demonstração científica de que o sistema em vigor, o sistema de Davos, não é sustentável", ecoou a italiana Rafaella Bolini, outra integrante do conselho internacional e dirigente de uma ONG que atua na área de cultura.

Por toda parte ouviam-se expressões desse tipo. A francesa Jeanne Singer, pesquisadora da área da saúde e militante marxista, de 82 anos, disse: "Ou mudamos o rumo do mundo, ou vamos direto para barbárie".

Não é fácil entender o encontro, que neste ano reuniu 115 mil pessoas, a maioria delas jovem.

Nos debates sobre a crise econômica, a maior parte dos especialistas convidados, de diferentes áreas do conhecimento, apresentaram o pior dos cenários - algo parecido a um apocalipse, que estaria no seu início. Mas, por outro lado, não se consegue extrair do fórum nenhum documento que aponte um caminho a seguir contra a crise.

Segundo os seus idealizadores, essa é a tradição do evento: estimular o debate e o encontro, sem definir caminhos.

Não se deve pensar, porém, que ele seja inócuo em termos de ação. Oded Grajew, diretor do Instituto Ethos e um dos criadores do fórum, observou que ele tem permitido articulações cada vez maiores e mais eficientes de associações da sociedade civil e movimentos sociais aos redor do mundo. Elas podem definir ações e documentos globais, à parte do evento.

No próximo ano o fórum será descentralizado, com vários encontros ao redor do mundo. Em 2011, porém, ele volta a concentrar todas as entidades e regiões num só local - que poderá ser definido amanhã, durante o encontro do conselho internacional, em Belém. A África do Sul está interessada em ser a sede do evento. Mas alguns conselheiros defendem a transferência para a Ásia. Existe a possibilidade de realizá-lo no México, em alguma área da fronteira com os Estados Unidos.

Os organizadores não sabem ao certo qual foi o custo do fórum, nem qual foi a participação das entidades - que pagam pelas inscrições. Sabe-se que cerca de R$ 850 milhões vieram de quatro estatais (Caixa Econômica, Banco do Brasil e Eletronorte). Os governos federal e estadual, por sua vez, fizeram investimentos de R$ 338 milhões - nas áreas de saúde, segurança e infraestrutura, para que a capital paraense pudesse abrigar o evento.

Os esqueletos do governo Lula

Carlos Alberto Sardenberg
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Lendo o relatório do Tesouro sobre as contas do governo federal em 2008, divulgado na semana passada, fica-se com a impressão de que a administração acelerou de maneira notável os investimentos. Diz lá que as despesas de custeio tiveram aumento de 7,2% sobre 2007, enquanto o dispêndio com capital subiu nada menos que 27,9%. Bom, não é mesmo?

Mas olhe para outros números: as despesas totais com custeio, em 2008, alcançaram R$ 136 bilhões, isso incluindo alguns programas sociais, como o pagamento de seguro-desemprego e de auxílio aos idosos. Sem isso, o custeio - funcionamento da máquina - ficou em R$ 92,7 bilhões.

E os investimentos? Apenas R$ 28,2 bilhões. Isso foi o equivalente a 1% do produto interno bruto (PIB). Comparando com 2007, o grande esforço do governo em turbinar os investimentos, com PAC e tudo, resultou num aumento de 0,2% do PIB. Já as despesas de custeio equivaleram a 4,68% do PIB - o que mostra um quadro bem diferente.

E para completar: em 2008, o governo federal gastou com Previdência o total de R$ 199,5 bilhões (6,9% do PIB) e com pessoal, R$ 130,8 bilhões (4,5%).

Eis por que o governo não pode fazer neste momento a chamada política contracíclica, ou seja, disparar investimentos em obras, para aumentar a demanda e assim combater a desaceleração da economia. Não pode porque fez a política pró-cíclica durante a bonança: aumentou as despesas quando a arrecadação subiu espetacularmente em consequência do aquecimento econômico. E, como mostram os números, os gastos continuam concentrados em tudo o que não é investimento.

Acrescente-se que o governo pretendia gastar em investimentos o dobro do que efetivamente aplicou. Como em anos anteriores, não conseguiu.

Não é fácil tocar uma obra. Projeto, licenciamentos, licitações, instalação de canteiros, tudo isso requer competência, sobretudo com a kafkiana legislação brasileira.

Quer ver um resultado? Na sexta-feira, o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima, prometia apertar as empreiteiras envolvidas nas obras da transposição do Rio São Francisco.

Disse que não toleraria mais atrasos e tal. Reagia à desistência de algumas construtoras. E olha que essa obra era "a realização" do governo Lula.

Além disso, não basta investir. É preciso ter bons projetos que movimentem a economia enquanto são implementados e, quando prontos, representem ganhos de produtividade. Por exemplo, uma ferrovia que diminua o tempo e os custos de levar soja ao porto.

Na década de 1990, o governo japonês gastou rios de dinheiro em obras, também no esforço para tirar o país da recessão. Deu em nada. Com a influência dos políticos na escolha dos projetos, tudo resultou em pontes que iam do nada para nenhum lugar.

Nos EUA, a equipe econômica de Barack Obama, que se prepara para gastar uns 5% do PIB em obras, comentava outro dia que o maior problema estava sendo encontrar bons projetos.

E os bancos públicos? - O governo Lula está empenhado também em outra frente para estimular a economia. Pressionou os bancos públicos para que reduzam os juros e emprestem mais a pessoas e empresas, de modo a combater a crise do crédito.

A propósito, convém lembrar desta história: em meados de 1999, o governo Bill Clinton pressionou as agências hipotecárias Fannie Mae e Freddie Mac para que flexibilizassem as regras de concessão de empréstimos e reduzissem juros. O objetivo: estender os financiamentos da casa própria às famílias de baixa renda, então classificadas no grupo subprime.

Eis como começou a crise do setor imobiliário, que só iria aparecer em 2007, de sua vez dando
origem à derrocada de todo o sistema financeiro.

As famílias mais pobres, majoritariamente formadas por negros e hispânicos, só conseguiam financiamento se pagassem taxas de juros de 3 a 4 pontos porcentuais acima das cobradas em negócios convencionais. Negócio muito arriscado, era evitado por todas as partes. Assim, essas famílias ficavam de fora do boom imobiliário dos anos 90.

Por isso o governo Clinton apertou as duas grandes agências hipotecárias, para ampliar a oferta de financiamentos aos mais pobres.

Podia fazer isso? Podia, as agências eram semiestatais - privadas, mas com seus títulos tendo garantia do governo.

As agências cumpriram o programa, cujo objetivo era fazer com que metade de seu portfolio fosse formado pelos financiamentos a famílias de média e baixa rendas. Funcionou. Milhões de casas de até US$ 250 mil foram financiadas. O programa foi considerado um êxito notável. Até que, a partir de 2007, as duas agências simplesmente quebraram, com uma carteira lotada de hipotecas podres. Eis o caso: o enorme desastre de um sistema financeiro desregulado - que empacotou, securitizou, financiou e refinanciou as hipotecas subprime - teve origem remota numa decisão política do governo. Bem-intencionada, claro, mas obviamente mal implementada.

Atenção, portanto, ao governo Lula, que está preparando um amplo programa para financiar 1 milhão de casas para famílias com renda mensal de até cinco salários mínimos.

Os especialistas mostram que as famílias de baixa renda não têm condições de pagar, de modo que precisam de subsídios. Se o governo der o subsídio diretamente ao mutuário, pode ser. Mas se resolver, por exemplo, mandar a Caixa Econômica Federal (CEF) e o Banco do Brasil (BB) concederem empréstimos com critérios mais frouxos, já sabemos aonde vai dar.

O governo já está pressionando os seus bancos para que concedam mais empréstimos, o que pode levá-los a tomar risco elevado, futuros esqueletos. Já aconteceu. No governo FHC, BB e CEF receberam bilhões de reais para não quebrarem.

Políticos adoram fazer isso. Concedem o empréstimos hoje e o banco quebra lá na frente, no outro governo.

*Carlos Alberto Sardenberg é jornalista

Crise, inércia e cutucadas

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

A aprovação inicial na Câmara dos Deputados dos Estados Unidos do plano de estímulo econômico de Barack Obama foi nitidamente partidária, apesar de alguns votos contrários de Democratas. Seja o que for que venha a ocorrer no Senado, a avaliação dos méritos do plano está longe de ser consensual. Matérias de Eamon Javers e Jim Vandehei no site "Político", por exemplo ("The Case for Doing Nothing" e "Go Big or Go Home"), ressaltam o forte contraste entre os que se opõem pura e simplesmente a que haja intervenção governamental na crise e os que acham, bem ao contrário, que serão necessários muito mais recursos dos contribuintes para superá-la. Não obstante as acusações de Paul Krugman sobre uma "economia de má-fé", a turma dos "Fazer Nada", como a denominam Javers e Vandehei, invoca tanto razões "técnicas" (riscos supostamente altos de que o estímulo seja mal sucedido, como nos US$ 168 bilhões injetados na economia por Bush já em fevereiro do ano passado) quanto razões culturais e morais, incluindo a ideia de que uma recessão penosa seria bem-vinda para afastar o país da cultura corrente de irresponsabilidade e endividamento. Sem falar, a propósito de perspectivas divergentes sobre a crise em geral e questões correlatas, da ilustração trazida pelas reuniões simultâneas do Fórum Social Mundial em Belém do Pará e do Fórum Econômico Mundial de Davos, o primeiro algo triunfante e o segundo marcado pelo tom pessimista e penitente.

Naturalmente, a crise e a resposta a lhe ser dada recolocam acima de tudo a questão das relações entre mercado e Estado. Apesar dos muitos equívocos, a defesa que cabe fazer do mercado em termos valorativos tem fundamentos claros: se a autonomia dos cidadãos é um valor democrático incontestável, não haverá como garanti-la se começarmos por negá-la na decisiva esfera econômica. Isso não anula, do ponto de vista dos valores, o reconhecimento da necessidade de que o Estado venha a ser capaz de exercer um paternalismo benévolo. O Estado democrático não pode ser mero instrumento dos agentes ou interesses suficientemente poderosos para pressioná-lo em qualquer momento dado. Ele tem antes de compensar ou mitigar, em sua ação, os desequilíbrios de poder, em particular de poder econômico privado - o que resulta, de certa forma, em reafirmar o próprio princípio do mercado, contra oligopólios e monopólios.

Há várias complicações. Em primeiro lugar, a atuação dispersa dos agentes do mercado produz, no nível agregado, mecanismos objetivos de causação social que frequentemente se chocam com os desígnios dos agentes e comprometem, portanto, sua autonomia - mesmo na suposição de que cada agente seja individualmente "racional" na busca do interesse próprio (a "mão invisível" nem sempre é benigna). Além disso, porém, não cabe supor que os agentes de fato ajam racionalmente. As muitas constatações nesse sentido da psicologia social e da chamada economia comportamental são o objeto de revisão recente por Richard Thaler e Cass Sunstein (no volume "Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth, and Happiness", 2008), cuja mensagem geral é a da frequência espantosa, na ótica dos postulados da ciência econômica convencional, com que gente real se deixa levar por fragilidades e limitações que se revelam sobretudo justamente como fruto da interação com os outros, quer se trate do contato pessoal com gente próxima, quer da interação impessoal com os atores dispersos do mercado: a tendência a aderir, mesmo contra a evidência dos sentidos, à opinião supostamente dominante; a tendência ao comportamento de manada, a fazer o que "todo mundo" faz; a tendência à inércia, ou o viés em favor do status quo... E, vistas as coisas em termos de consumidores versus produtores, o fato importante de que, se os consumidores têm crenças pouco racionais, as empresas com frequência têm maiores incentivos para valer-se de tais crenças do que para tratar de erradicá-las.

O objetivo de Thaler e Sunstein é o de extrair dos fatos destacados a recomendação em favor de um "paternalismo libertário", em que as lideranças ou autoridades cuja posição lhes permita condicionar as escolhas (livres) dos demais se valham de estímulos ("nudges", algo como cutucadas) atentos àquelas limitações ou "irracionalidades". Do ponto de vista da crise atual, porém, o problema consiste em que a a indução suave que a perspectiva sugere pouco tem a ver com o supercutucão a que os governos em geral vêm tendo de recorrer. E fica, além disso, a questão de até que ponto as irracionalidades em questão não se mesclam com dificuldades no terreno propriamente moral que, por outro lado, podem redundar em comprometer a eficácia do cutucão: entregar dinheiro dos contribuintes a banqueiros para vê-los repartirem fartos bônus entre si?

Visão realista da dinâmica do capitalismo não tem como evitar, dada uma crise da natureza da atual, a ação governamental que socializa os prejuízos. Isso corresponde, afinal, à caracterização do Estado feita pelo próprio realismo marxista, em que aquele aparece como "capitalista ideal", a proteger o capitalismo dos capitalistas. A nuance crucial, porém, é que esse realismo não pode redundar em que se compre o pacote inteiro do discurso liberal há pouco dominante e se aceite a ideia do Estado como "o problema, não a solução". Ao invés disso, é preciso reconhecer que, além da proteção das pessoas em geral contra as asperezas e assimetrias do capitalismo, a proteção do próprio capitalismo como tal exige ação do Estado, exercida seletivamente, contra os capitalistas. Vale dizer, exige regulação, fiscalização e responsabilização por decisões erradas ou imprudentes. Como, aliás, Míriam Leitão andou lembrando por esses dias ter ocorrido no caso do nosso Proer, diferentemente do que, por enquanto, vemos agora nos EUA, à exceção de fraudes escandalosas ao estilo de Bernard Madoff.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

O pequeno herói

Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Estou hoje convencido de que há um pequeno e admirável herói na política mundial: o presidente Evo Morales

EXCEÇÃO feita das histórias juvenis, os heróis são raros. Em um mundo materialista no qual o neoliberalismo ensina que a única motivação humana é o autointeresse, ninguém está disposto a reconhecer os heróis -os homens e as mulheres que têm a coragem de agir de acordo com seus ideais humanos e cívicos arriscando sua vida para enfrentar a violência das forças naturais e principalmente a ganância dos poderosos. Quando os reconhecemos, isso decorre de uma ação isolada -de alguém que, em certo momento, salva uma criança da morte ou, como o piloto americano, amerissa com sucesso no rio Hudson e salva 150 passageiros.

Neste mundo desencantado em que vivemos, porém, a última coisa que nos dispomos a reconhecer é um político herói. Podemos até admitir que determinado político seja um estadista, mas um herói... Nosso modelo de herói é o de Davi enfrentando Golias, e é difícil pensar em um político -alguém dotado de poder- como um Davi.

Não obstante, eu estou hoje convencido de que há um pequeno e admirável herói na política mundial: o presidente da Bolívia, Evo Morales. Não estou seguro de que ele terá êxito em sua missão -a de criar uma democracia social na Bolívia- porque é muito difícil governar democraticamente países pobres e, ainda por cima, divididos em termos étnicos -e aquele país sofre dos dois males. Em países pré-industriais, como a Bolívia, a apropriação do excedente econômico não se realiza principalmente no mercado, mas por meio do controle direto do Estado, de forma que as oligarquias locais estão sempre dispostas a derrubar governantes que não se amoldem a elas. Para eles, a solução mais simples é aderir aos poderosos locais -aos proprietários de terras "brancos" de Santa Cruz e Beni- e aos países poderosos ao seu redor: o Brasil e os Estados Unidos. Com algumas exceções, foi isso o que os presidentes bolivianos fizeram no passado, esquecendo-se dos índios e dos pobres, que são a grande maioria. Assim, não promoveram nem o desenvolvimento econômico nem a diminuição da desigualdade, e vários nem sequer conseguiram evitar que fossem derrubados.

Morales não se deixa atemorizar.

É o primeiro presidente índio eleito na Bolívia e tem mostrado coragem para ser fiel ao seu mandato. Em seguida à sua eleição chegou a ser ameaçado pelas elites dos Departamentos mais ricos e menos povoados por índios, porque desejava definir uma nova Constituição para seu país. Em certo momento, avançou o sinal e tentou aprová-la com maioria simples -o que deu argumentos à oposição conservadora.

Para resolver o impasse, buscou negociar e aceitou arriscar a revogação de seu mandato presidencial em um referendo. Ganhou-o com 67% dos votos -o que não impediu que os governadores dos Departamentos mais ricos continuassem seu movimento separatista. Agora, a nova Constituição foi referendada por quase 60% dos eleitores, mas as elites locais já exigem sua revisão.

Morales teve também a coragem de nacionalizar a exploração e o refino de petróleo -o que causou a ira de nossas elites, que, de repente, tornaram-se nacionalistas. Felizmente, o presidente Lula as ignorou. Mas o nosso pequeno Galahad enfrentará ainda muitos obstáculos. O graal não existe a não ser para os heróis.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1227&portal=