domingo, 18 de outubro de 2020

Luiz Sérgio Henriques* - O duplo ataque à democracia

- O Estado de S.Paulo

A grande aposta é que as sociedades nunca se deixam aprisionar por muito tempo.

Reza a sabedoria dos políticos de Minas que no tempo das cédulas de papel, dos cabos eleitorais e fiscais de urna, com a contagem de votos seguindo lenta e sinuosamente por dias a fio, era necessário vencer não só a eleição propriamente dita, como também a apuração, não sendo impossível ter êxito na primeira e fracassar na segunda dessas empreitadas. Pois é de tal ordem o ataque desferido contra as democracias, incluída a aparentemente mais sólida delas, que aquela sabedoria saiu dos limites do folclore local e passou a rondar a vida de muitas nações. Não podemos dar por certo e decidido que daqui a duas semanas, nos Estados Unidos, se faça rotineiramente a contagem eleitoral, se proclame o vencedor e se providenciem as formalidades de praxe, especialmente em caso de vitória de Joe Biden, o desafiante.

A globalização da economia, que não é propriamente o resultado de ação consciente, sem dúvida desorganizou arranjos produtivos nacionais e deixou livre o cenário para a ofensiva contra os pilares da ordem democrática e os compromissos que ela implica. Um ataque em pinça, diríamos, tomando de empréstimo uma expressão do léxico militar, a que tantas vezes se recorre para entender a política. Sociedade civil e sociedade política constituíram, respectivamente, os alvos da dupla ação destrutiva, levada a cabo com regularidade e constância nestes últimos tempos. Portanto, há método nesta ação aparentemente anárquica, mas claramente voltada para o estabelecimento de padrões autocráticos de mando.

Tomemos a sociedade civil, o lugar por excelência de encontro e confronto entre opiniões e valores, visões e concepções de mundo próximas ou concorrentes entre si. O lugar da hegemonia, em suma, entendida como capacidade de persuasão, não de imposição ou força. Há muito essa esfera decisiva da vida social vem sendo atingida por uma escalada crescente de descrença, barbárie, irracionalismo. Não há nostalgia romântica quando se observa a contínua degradação da linguagem pública, de suas imagens e seus signos. É possível, por exemplo, que ainda não nos tenhamos dado conta plenamente da violência simbólica explicitada nas mãos que imitavam armas e simulavam rajadas de tiros, “desferidos” em meio ao deboche. Pois foram essas mãos a marca principal das eleições de 2018 – comparativamente, a vetusta vassoura de Jânio Quadros, outro político irresponsável da direita nacional, vem à memória como sinal inocente e até bem-humorado de uma época com índices relativamente menores de desfaçatez.

Luciano Huck* – Bússola

- Folha de S. Paulo

Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha

Sigo achando que no espaço de uma geração não iremos produzir tênis mais baratos que a China, tampouco componentes eletrônicos mais competitivos que Taiwan. Mas sigo também acreditando que nenhum outro país no planeta tem o potencial natural que o nosso.

Somos um país rico por natureza, e pobre por escolha. Assim sendo, já está mais do que na hora de entendermos que pensar verde, além de fazer bem para nossa consciência, fará ainda mais pelos nossos bolsos. Já cheguei a tratar deste tema em outro artigo aqui nesta Folha, mas o noticiário e a conjuntura exigem que o debate vá adiante.

Minha curiosidade se divide entre os dois séculos e de tudo o que o mundo passou nestas últimas décadas.

Acabo de ler o livro “Brasil, Paraíso Restaurável”, de Jorge Caldeira, Julia Marisa Sekula e Luana Schabib. Ele traz posições que permitem ampliar ainda mais o pensamento do futuro do Brasil como potência verde.

Está claro que a bússola mudou depressa na virada do milênio.

Duas décadas atrás, as nações guiavam-se pelas metas de crescimento da produção. Aprendemos a medir sucesso ou insucesso na economia por meio das taxas de crescimento do PIB.

Hoje muito se discute se esta métrica já não deveria ter ficado no século passado. Ainda não temos algo confiável e aceito por todas as economias do planeta como um marcador mais moderno, mais conectado com os anseios e necessidades das sociedades, países e do planeta como um todo. Mas vale registrar o que já esta acontecendo —e refletir sobre isso.

Na Alemanha, por exemplo, o rumo mudou de norte em 2005, quando o governo passou a perseguir o objetivo central de transitar para uma economia limpa. Desde então, todo o planejamento estratégico do país é montado para cumprir metas quantitativas relacionadas a combater o aquecimento global. A União Europeia passou a seguir o modelo a partir de 2007.

Em vitória histórica, Jacinda Ardern é reeleita primeira-ministra na Nova Zelândia

Governante ficou conhecida internacionalmente por combate à pandemia; esta é a maior conquista nas urnas de seu partido em quase meio século

 Wellington (Nova Zelândia) | Reuters / Folha de S. Paulo

A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, foi reeleita neste sábado (17), dando ao seu Partido Trabalhista a maior vitória eleitoral em meio século.

Com 95% da apuração concluída, a sigla de centro-esquerda contava com 49% dos votos, muito à frente do Partido Nacional, com 27%, segundo a Comissão Eleitoral.

A legenda da primeira-ministra pode sair das eleições com 64 das 120 cadeiras no Parlamento, o recorde de qualquer partido desde que o país adotou o sistema de votação proporcional, em 1996. Será também o primeiro governo de partido único sob o sistema.

“Estamos vivendo em um mundo cada vez mais polarizado”, disse Jacinda, ao reconhecer sua vitória. "Um lugar onde mais e mais pessoas perderam a capacidade de ver o ponto de vista uns dos outros. Espero que, com esta eleição, a Nova Zelândia tenha mostrado que não somos assim."

Cientista político alerta para erosão gradual e silenciosa da democracia

Polonês Adam Przeworski afirma que sociedade precisa reagir a autoritarismo furtivo antes que seja tarde demais

Patrícia Campos Mello – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - No prefácio da edição brasileira de “Crises da Democracia”, o polonês Adam Przeworski lamenta não ter incluído o Brasil na obra. “O Brasil não aparece neste livro como um país onde a democracia possa estar em crise. Isso acontece porque, quando redigi sua versão original, eu acreditava firmemente na solidez das instituições políticas brasileiras.”

O livro foi publicado nos EUA em setembro de 2019. Fosse hoje, o respeitado cientista político da New York University, autor de importantes estudos sobre a democracia, teria inserido o país no rol dos que enfrentam o que ele chama de “autoritarismo furtivo”, ao lado de Hungria, Índia, PolôniaVenezuela, Turquia, e, em menor grau, Estados Unidos.

No autoritarismo furtivo, tal como em qualquer governo autocrático, os governantes tentam “incapacitar possíveis resistências, que variam caso a caso, mas costumam incluir os partidos de oposição, o sistema judicial e a mídia, bem como as ruas”.

Nesse autoritarismo dissimulado, no entanto, não há mudanças abruptas, não se destacam “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo Tribunal Federal, não se cassam direitos políticos de opositores nem se planta um censor nas Redações dos jornais.

Em vez disso, os aspirantes a autocratas tentam se perpetuar no poder usando instrumentos do próprio regime democrático, o que confere a eles verniz de legitimidade.

Merval Pereira - A favor do coletivo

- O Globo

O episódio polêmico do habeas corpus dado pelo ministro Marco Aurélio Mello ao traficante André do Rap serviu para levantar diversas questões que há muito distorcem a atuação do Supremo Tribunal Federal.  

Para começo de conversa, não é razoável que um caso como esse tenha chegado à última instância da Justiça, numa Corte que deveria ser apenas constitucional e cada vez mais se vê às voltas com crimes, de colarinho branco a tráfico internacional de drogas.    

Transferir para o colegiado do Supremo o poder decisório que hoje pode ficar com um ministro em julgamento monocrático é o objetivo da proposta do presidente, ministro Luis Fux, que será apresentada em reunião administrativa do STF.  

A idéia é fazer com que toda decisão individual seja levada ao plenário virtual imediatamente. Está sendo criado um espaço especial para votações rápidas, provavelmente em 48 horas, sobre decisões monocráticas, incluindo habeas corpus.  

A chamada “desmonocratização” do Supremo, anunciada pelo novo presidente tem o objetivo de que as decisões do tribunal "sejam sempre colegiadas, em uma voz uníssona daquilo que a Corte entende sobre as razões e os valores constitucionais". Os ministros perderão poder individualmente, mas o plenário do Supremo ganhará relevância.  

Esse debate está sendo feito nos bastidores, mas o ministro Gilmar Mendes já reagiu publicamente, dizendo que se trata de uma medida demagógica, citando “telhado de vidro” dos que propõem a medida. Ele se referia indiretamente ao ministro Fux, lembrando que “a liminar mais longa que conheço” é a do auxílio moradia, dada pelo hoje presidente do Supremo em 2014, que nunca foi a plenário, revogada por ele mesmo quatro anos depois devido a um reajuste salarial dado aos juízes federais pelo presidente Michel Temer.  

Míriam Leitão - Plano para a economia

- O Globo

A economia brasileira vive uma crise gravíssima. O PIB está tendo a sua maior queda em um ano, o número de pobres aumentou, o desemprego aflige milhões de famílias, a dívida pública se aproxima do insustentável. Não há um plano para enfrentar esses flagelos. O comando da política econômica é errático e alienado. Em que mundo vive a pessoa que diz que a economia está se recuperando em “ritmo alucinante”? Paulo Guedes, quando fala, assusta pelo seu desapego à realidade.

Em um evento na semana passada no Instituto Brasiliense de Direito Público, Guedes discorreu sobre os erros cometidos na colônia, no Império, pelo “Estado hobbesiano” em mais uma daquelas repetitivas dissertações sobre o tudo e o nada. Em dado momento, defende os bancos estaduais que o governo de Fernando Henrique fechou, mas deveria ter deixado abertos, na visão dele. Em qualquer fala, Guedes precisa achar alguma decisão em que os economistas do real teriam errado. Há um quarto de século.

Luiz Carlos Azedo - Dinheiro na cueca pode?

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

A verdade pode ser distorcida para obter vantagem política, aproveitar o momento mais conveniente, obter a resposta desejada, favorecer pessoas, priorizar fatos e reescrever a História

Coluna boi com abóbora, como diria meu querido Noca da Portela, rende polêmicas inesperadas. Foi o que aconteceu na sexta-feira, comigo, por causa da grana na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado pela Polícia Federal, supostamente, tentando ocultar provas e obstruir a ação da Justiça durante uma operação de busca e apreensão em sua residência, em Boa Vista. Vice-líder do governo Bolsonaro no Senado, a notícia se espalhou pelo mundo e virou meme nas redes sociais, porque o parlamentar governista tentara esconder R$ 33,1 mil no calção do pijama, uma parte nas nádegas, dentro da cueca. Havia pedido para ir ao banheiro, e o delegado desconfiou do grande volume dentro do pijama. A versão vazada era de que o senador se borrou todo, nervoso, quando sofreu a revista íntima.

Diz um velho jargão das redações: um homem ser mordido por um cachorro não é notícia (não é bem assim), ela só existe quando o homem morde o cachorro, fato que nunca vi registrado nos jornais. Já vi atirar ou espancar um animal. Era óbvio que a história do senador Chico Rodrigues seria o assunto político do dia, a ponto de ofuscar o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do polêmico habeas corpus do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, que havia sido concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), e fora suspenso pelo presidente daquela Corte, ministro Luiz Fux. Como vinha acompanhando o julgamento, tive de tratar dos dois assuntos na mesma coluna, intitulada “O traficante e o senador”.

O julgamento do caso de André do Rap terminou 9 a 1, a favor da excepcionalidade da suspensão do habeas corpus, mas gerou muita discussão entre os ministros sobre: a) o poder de Fux no comando do tribunal para sustar liminares dos pares, contestado pela maioria; b) as fragilidades do sistema de distribuição de processos (o advogado entrou com nove habeas corpus sucessivos e os retirava sempre que julgava que o ministro escolhido não o concederia, até ser distribuído para Marco Aurélio, que já havia concedido mais de 70 liminares com a mesma interpretação literal da lei); c) a sucessão de omissões da Justiça, do Ministério Público e das autoridades policiais quanto ao caso de André do Rap; e d) a libertação automática dos presos preventivamente, caso o juiz não faça a revisão a cada 90 dias, que, no entendimento da maioria, com exceção de Marco Aurélio, não deve ocorrer mais.

Vera Magalhães - Atrás do próprio rabo

- O Estado de S.Paulo

Esquerda se perde entre pulverização de candidaturas e tribunal de 2016 e 2018

O panorama das disputas municipais mostra uma constante de Norte a Sul do País: depois de 2018, a esquerda segue dividida, com o PT insistindo em transformar a sua estratégia eleitoral de agora e de daqui a dois anos num tribunal sobre as culpas pelo impeachment de Dilma Rousseff e a posterior eleição de Jair Bolsonaro – partindo da premissa, é claro, que nem uma coisa nem outra são sua própria responsabilidade.

Por conta dessa divisão, cidades como Fortaleza e Recife assistem a uma autofagia do chamado campo progressista, abrindo espaço para o crescimento, ao menos temporário, como mostram as pesquisas, de nomes de centro-direita e direita.

Outras, como São Paulo e Rio de Janeiro, assistem à possibilidade de a esquerda simplesmente ficar de fora da disputa final por conta dessa dificuldade de unir propósitos e agendas.

O candidato petista em São Paulo, Jilmar Tatto, começa a sair do pelotão dos últimos colocados justamente quando se iniciava um movimento interno para que desistisse da candidatura para apoiar Guilherme Boulos, do PSOL.

Era evidente que um candidato petista em São Paulo não amargaria índices tão baixos quando se tornasse conhecido. Mas a questão é outra: qual o teto para o partido na cidade depois de ter perdido no primeiro turno quando governava a capital e, dois anos depois, Fernando Haddad também ter sido derrotado em terras paulistanas?

Isso deveria ter levado o PT a uma reflexão profunda de seu próprio legado nacional e local, e a propor uma candidatura que pudesse ser uma resposta a essas derrotas, e não uma reafirmação de tudo que levou a elas, como a de Tatto.

Eliane Cantanhêde - Quem pode pode!

- O Estado de S.Paulo

Em vez de batom, é dinheiro na cueca, mas o senador Chico Rodrigues não será afastado pelo Senado nem pelo STF

A semana passada começou com a canetada do ministro Marco Aurélio, que soltou o líder do PCC André do Rap, e terminou com uma outra liminar monocrática, do ministro Luís Roberto Barroso, afastando o “senador da cueca” do mandato e abrindo uma crise entre Judiciário e Legislativo. O presidente do STF, Luiz Fux, tem ou não razão em mirar o excesso de decisões individuais?

Marco Aurélio já beneficiou 79 presos com base na mesma lei que usou para André do Rap e, segundo levantamento do Estadão, o governo e os cidadãos brasileiros estão consumindo fortunas para recapturar 21 desses presos soltos na leva marcoaureliana. O governador João Doria (SP) calcula gastos de R$ 2 milhões só para André do Rap e desabafa: “Dá vontade de mandar a conta para o ministro!” E não é que dá mesmo?

Aliás, o traficante ofereceu R$ 8 milhões de propina para os policiais que o prenderam, o que é um agravante. Imaginem a irritação desses policiais com todo seu esforço jogado fora e um sujeito deste tipo solto por aí, no bem-bom.

Lourival Sant'Anna - Rumo à Casa Branca


- O Estado de S.Paulo

Trump pode se reeleger, mas algo dramático precisa ocorrer até o dia da eleição

Existem diversas formas de medir as chances de um candidato a presidente nos EUA: as pesquisas nos Estados que oscilam entre um partido e outro, as doações para as campanhas, o mercado de apostas e a audiência dos programas em que eles aparecem. Por todas as medidas, Joe Biden é o favorito, a duas semanas da eleição.

A sabatina de Biden com eleitores realizada pela rede de TV ABC, na noite de quinta-feira, teve média de 13,9 milhões de telespectadores, segundo a empresa Nielsen; a do presidente Donald Trump, ao mesmo tempo, na NBC, 13 milhões.

A campanha de Biden anunciou ter arrecadado em setembro US$ 383 milhões; a de Trump, US$ 248 milhões. Os valores individuais das doações para o democrata são menores. Considerando que cada doador representa potencialmente um voto, esse é mais um dado preocupante para o presidente. 

Na semana que passou, Biden estava vencendo em todas as casas de apostas americanas com dois terços das preferências, segundo o site Real Clear Politics. É a mesma estimativa do Instituto Ipsos.

Bernardo Mello Franco - Aquele abraço

- O Globo

A bola rolava pelas Eliminatórias da Copa quando o locutor parou de narrar o jogo para mandar um “abraço especial” ao presidente Jair Bolsonaro. Aconteceu duas vezes na terça-feira, durante a transmissão de Brasil x Peru. Foi mais um lance do aparelhamento da TV Brasil pelo governo que ameaçava fechá-la.

Na campanha de 2018, o capitão disse que não investiria mais dinheiro num canal com “traço de audiência”. Acrescentou que pretendia privatizar ou extinguir a Empresa Brasil de Comunicação, que controla a emissora. Em pouco tempo no poder, ele abandonou a ideia. Percebeu que poderia usar a rede de comunicação pública para empregar amigos e fazer promoção pessoal.

No mês passado, servidores da EBC produziram um dossiê sobre o uso político da estatal. Contabilizaram 138 episódios de censura e governismo desde a posse de Bolsonaro. O retorno da fome, o desmatamento na Amazônia e os cortes na educação deixaram de aparecer na telinha. As palavras “golpe” e “ditadura” foram proibidas em reportagens que citavam o regime militar.

Elio Gaspari - A filantropia de Ibaneis Rocha

- Folha de S. Paulo / O Globo

Governador de Brasília, Ibaneis Rocha, doou 22,5 mil equipamentos de proteção sanitária ao município piauiense de Corrente

Até agora, a pandemia parecia ter provocado só um caso exemplar de filantropia: o Itaú Unibanco doou R$ 1 bilhão do seu patrimônio entregando sua administração a um conselho de notáveis. Da outra ponta, veio outro exemplo de filantropia, com o dinheiro da Viúva. O governador de Brasília, Ibaneis Rocha, homem abonado, doou 22,5 mil equipamentos de proteção sanitária ao município piauiense de Corrente, situado a 860 quilômetros do Distrito Federal.

Em maio, o prefeito de Corrente havia pedido dez mil luvas, mil aventais impermeáveis, cinco mil máscaras e 240 litros de álcool ao governador. A rede pública de Brasília estava sobrecarregada, e o estoque de equipamentos de proteção entrara em colapso em pelo menos dois hospitais. No dia 17 de julho, o governador oficializou a doação, e no lote iriam 12.560 máscaras. O pedido havia sido de cinco mil.

Em agosto, sem relação com esse caso, foram presos o secretário de Saúde de Brasília e seis de seus colaboradores. Com relação, o Ministério Público de Contas representou contra Ibaneis para que se investigasse a regularidade da doação, até mesmo porque foi feita sem licitação e sem a avaliação de sua conveniência.

Ibaneis Rocha foi criado em Corrente, tem três fazendas em municípios vizinhos e boas relações com o prefeito local, que é candidato à reeleição.

Pelo menos nove unidades da Federação viram seus governos metidos em malfeitorias com o dinheiro da saúde pública. Descobriram-se irregularidades nos hospitais de campanha do Rio de Janeiro e até a compra de respiradores pelo país afora, mas doação do que faltava num estado para mimar amigo de outro é coisa que só se viu em Brasília.

Janio de Freitas – Um excesso indecente

- Folha de S. Paulo

Ministro considerou justificada a liberação de André do Rap, que requereu habeas corpus baseado em excesso de prisão

A indiferença da classe privilegiada pelo que se passa abaixo dela recebeu do próprio Supremo Tribunal Federal, instância quase divina da “Justiça”, mais uma autenticação. É o destino histórico, deliberado por quem pode, para a imensa maioria dos brasileiros.

Com intenção fora das exigências vigentes, o Congresso alterou o tal pacote anticrime com uma medida para reduzir o número indecente de mais de 250 mil detentos em prisão nominalmente provisória, mas de fato sem prazo. Uma população abandonada, inúmeros sem culpa constatada, resultado da falta de meios para pagar advogados eficientes. Em vigor desde o final de dezembro último, a nova medida determina o reexame da prisão a cada 90 dias, para verificação da necessidade de mantê-la ou não. É claro que os reexames não são comuns.

O ministro Marco Aurélio considerou justificada a liberação de um detento provisório, que requereu habeas corpus baseado em excesso de prisão, mais do que os 90 dias legais e sem o reexame que a avaliasse. Recém-empossado na presidência do STF, Luiz Fux atribuiu-se o inexistente poder de invalidar a decisão do colega. E o fez com o forte argumento de ser o detento um chefe de milícia que, solto, ameaçaria a sociedade.

Hélio Schwartsman - Problema de origem

- Folha de S. Paulo

A juíza Amy Coney Barrett se declarou originalista em sabatina para a vaga do Supremo nos EUA

Devo sofrer de alguma perversão, pois adoro assistir a julgamentos do STF e a sessões legislativas. Juntando as duas taras, vi bons pedaços da sabatina senatorial da juíza Amy Coney Barrett, indicada por Trump para ocupar uma vaga na Suprema Corte dos EUA.

Uma discussão interessante que surgiu ali é sobre como uma constituição deve ser interpretada. Barrett se declara originalista. Para ela, constituições são documentos estáticos que devem ser lidos textualmente e de acordo com o significado que os conceitos tinham na época em que foram escritos.

Contrapõem-se a essa corrente aqueles que acham que cartas são organismos vivos, cujo sentido é atualizado a cada nova geração de intérpretes.

Bruno Boghossian – A base do PT rachou

- Folha de S. Paulo

Sigla ainda patina no eleitorado que era uma de suas principais bases políticas

No início da última semana, Jilmar Tatto (PT) foi a uma igreja na zona sul de São Paulo, seu reduto eleitoral. Era um ato de campanha, mas não apareceram eleitores nem militantes na saída da missa. Horas depois, os dirigentes da sigla reclamaram da falta de apoio da base petista ao candidato, segundo relato da repórter Catia Seabra.

A vida não anda fácil para o PT a menos de um mês das eleições municipais. Em 15 das 21 capitais em que tem candidato, a legenda não chegou a 10% das intenções de voto nas últimas pesquisas. Só dois nomes disputam a liderança —Luizianne Lins (Fortaleza) e João Coser (Vitória).

Os dados do Ibope sugerem que o partido enfrenta uma barreira inicial naquela que havia se tornado uma das principais bases políticas da sigla: o eleitorado de baixa renda. Nesse grupo, a corrida começou marcada pelo desinteresse e pela ascensão de outras candidaturas.

Vinicius Torres Freire - Como vai a 'vacina chinesa' pelo mundo

- Folha de S. Paulo

Teste paulista é seguro, dizem cientistas; Brasil e EUA são maiores campos de prova

João Doria disse que a vacinação contra a Covid começa no dia 15 de dezembro em São Paulo, desde que seu governo tenha autorização da Anvisa. Em fins de março, a população paulista inteira estaria vacinada.

Até meados de dezembro, menos de dois meses, já será possível saber se a vacina é mesmo segura e funciona?

Duas pessoas envolvidas nos trabalhos dos testes científicos da Coronavac, a “vacina chinesa”, da Sinovac, dizem que sim.

Pelo menos em uma avaliação de uso emergencial, será possível ter dados para aplicar a vacina com segurança, embora o estudo de seu grau de proteção ainda vá depender de acompanhamento mais demorado —pelo menos até meados de 2021.

Os efeitos colaterais da vacinação com a Coronavac seriam raros ou leves, como os de uma vacina de gripe ou ainda menos, dizem esses pesquisadores de São Paulo.

Na opinião dessas pessoas, que não têm cargo político ou de direção superior, o governador paulista não está atropelando a análise científica. Dizem que o pessoal da Sinovac obviamente também não quereria colocar em risco sua reputação comercial e o prestígio diplomático da China com um desastre em país como o Brasil.

Observam que Doria correria o mesmo risco, na raia política, se avançasse o sinal.

Em suma, o prazo seria bem apertado, mas não maluco. No entanto, ninguém quis explicar quais são os critérios desse calendário da responsabilidade.

Dorrit Harazim - Duelo à distância

- O Globo

Sabatinas conferiram a Trump derrota no quesito pelo qual é obcecado: a audiência

O site satírico The Babylon Bee tem por autodefinição divulgar “fake news em que você pode confiar”. Ele é inspirado no mais anárquico The Onion, venerado por pregar peças em incautos desavisados. Em 2012, o jornal do Comitê Central do Partido Comunista da China reproduziu na íntegra e a sério a escolha do camarada Kim Jong-un como Homem Mais Sexy do Mundo, competição inventada pelo Onion. Segundo os humoristas, o homem-forte da Coreia do Norte fazia jus ao título por uma soma de atributos: “Com suas feições arredondadas, charme juvenil e porte garboso, este crush nascido em Pyongyang é o sonho acabado de toda mulher. Dotado de uma aura de poder que esconde um lado carinhoso, Kim encantou nosso conselho editorial com seu impecável faro fashion, corte de cabelo ímpar e, é claro, seu famoso sorriso”.

O Babylon Bee consegue fazer humor republicano, conservador, com frequentes cutucadas no Partido Democrata. Exemplo recente: “Para prevenir incêndios florestais, o governador da Califórnia ordena o uso de máscara a todas as árvores do estado”.

Talvez por isso Donald Trump tenha baixado sua guarda e expôs-se ao ridículo de retransmitir como verdadeira uma “notícia-bomba” da turma do @The BabylonBee. A postagem anunciava que o CEO do Twitter, Jack Dorsey, havia simplesmente retirado do ar sua rede social, evitando, assim, a circulação de revelações danosas ao candidato democrata Joe Biden. “Dorsey quebrou a caixa de vidro instalada em seu escritório, para emergências de publicidade prejudicial aos Democratas, e acionou a marreta no interior da caixa destinada a destruir o servidor geral. Alerta vermelho, alerta vermelho”, dizia a postagem dos humoristas. Trump, talvez atarantado pelo duelo à distância com Biden da noite anterior, não só acolheu a “notícia-bomba”, como manifestou sua indignação, acrescentando que algo assim jamais havia sido feito na história das redes sociais.

Celso Lafer* - Diplomacia e conhecimento

- O Estado de S.Paulo

O negacionismo nos isola no mundo e compromete a nossa inserção internacional.

Robert Zoellick, ex-presidente do Banco Mundial, acaba de publicar o livro America in the World. Nele, com conhecimento e experiência diplomática, examina o papel da política externa na construção do poderio dos Estados Unidos no mundo. Um capítulo é dedicado a Vannevar Bush, por ele qualificado como o “inventor do futuro”.

Bush dirigiu o Escritório de Pesquisa e Desenvolvimento nos governos Roosevelt e Truman. Escreveu Science: The Endless Frontier, excepcional documento de 1945, que inspirou a criação da Fapesp. A Vannevar Bush se deve a concepção do sistema americano de ciência e tecnologia após a 2.ª Guerra Mundial, levando em conta a interdependência da ciência básica e aplicada e da complementariedade entre os distintos papéis do governo, de uma comunidade científica e universitária livre e independente, da indústria e dos empresários privados. 

A implementação das concepções de Bush criou um modelo de inovação que eclipsou o sistema soviético, estatal. Esse é um dos dados do sucesso americano na dinâmica da bipolaridade Leste/Oeste. O desafio do presente é a competição entre o modelo de pesquisa e inovação dos EUA e o que vem sendo construído com apreciável sucesso pela China.

Bush antecipou a velocidade com que a cultura científica da pesquisa expande vertiginosamente as fronteiras do conhecimento e vem trazendo mudanças significativas em todas as esferas e dimensões, alterando as condições da vida em escala planetária e impactando a dinâmica da ordem mundial. Henry Kissinger observou que a era digital colonizou o espaço físico e permitiu a ubiquidade do funcionamento das redes que operam na instantaneidade dos tempos. Isso vem induzindo grandes transformações, até na maneira de conduzir a política externa e de atuar no campo diplomático.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

A situação calamitosa dos presos provisórios – Opinião | O Globo

Caso do traficante solto pelo STF chama atenção para os 40% dos encarcerados sem condenação

Há um “estado de coisas inconstitucional” nas prisões brasileiras, disse recentemente o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A definição resume as contradições nos três Poderes sobre a política penal, postas a nu pela liberação do narcotraficante André do Rap, mesmo condenado em segunda instância a penas que superam 25 anos de cadeia.

A rigor, o Legislativo habituou-se a escrever leis sobre novos tipos penais em resposta à sociedade angustiada com as taxas de criminalidade. O Executivo reluta na necessária reforma da segurança pública e dos presídios. O Judiciário aplica o poder punitivo com uma seletividade que se tornou estrutural. Todos supõem que está tudo resolvido, até que se chocam com a realidade.

Evidência desse “estado de coisas inconstitucional” foi ressaltada pelo ministro Alexandre de Moraes no julgamento da semana passada: a situação de precariedade em que se encontram quatro em cada dez encarcerados, os presos provisórios.

A Justiça mantém 40% dos presos recolhidos sem condenação definitiva. Ou em razão de prisão em flagrante, ou prisão temporária à espera de pronúncia, ou ainda de sentença recorrível. É uma situação esdrúxula, reveladora do risco de deterioração do Estado resultante dos danos sistêmicos derivados da tendência ao encarceramento. Moraes lembrou, apropriadamente, que a média de presos provisórios no Brasil é o dobro da mundial (20%) e muito acima da europeia (9%).

Música | Ana Moura - Fado loucura

 

Poesia | Fernando Pessoa - Afinal


 
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.  
  Sentir tudo de todas as maneiras.  
  Sentir tudo excessivamente,  
  Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas  
  E toda a realidade é um excesso, uma violência,  
  Uma alucinação extraordinariamente nítida  
  Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,  
  O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas  
  Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.  
  
  Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,  
  Quanto mais personalidade eu tiver,  
  Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,  
  Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,  
  Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,  
  Estiver, sentir, viver, for,  
  Mais possuirei a existência total do universo,  
  Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.  
  Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,  
  Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,  
  E fora d'ele há só Ele, e Tudo para ele é pouco.  
  
  Cada alma é uma escada para Deus,  
  Cada alma é um corredor-Universo para Deus,  
  Cada alma é um rio correndo por margens de Externo  
  Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.  
  
  Sursum corda!  Erguei as almas!  Toda a matéria é espírito,  
  
  Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos  
  Dados à grande sombra que ensopa o exterior em sonho  
  E funde em noite e mistério o universo excessivo!  
  Sursum corda!  Na noite acordo, o silêncio é grande,  
  As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam  
  
  Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos  
  Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.  
  Sursum corda!  Acordo na noite e sinto-me diverso.  
  Todo o Mundo com a sua forma visível do costume  
  Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,  
  
  Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.