sexta-feira, 3 de abril de 2020

Opinião do dia – Keynes* (recado)

"Denominei este livro A Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda, dando especial ênfase ao termo geral. O objetivo deste título é contrastar a natureza de meus argumentos e conclusões com os da teoria clássica, (1) na qual me formei, que domina o pensamento econômico, tanto prático quanto teórico, dos meios acadêmicos e dirigentes desta geração, tal como vem acontecendo nos últimos cem anos. Argumentarei que os postulados da teoria clássica se aplicam apenas a um caso especial e não ao caso geral, pois a situação que ela supõe acha-se no limite das possíveis situações de equilíbrio. Ademais, as características desse caso especial não são as da sociedade econômica em que realmente vivemos, de modo que os ensinamentos daquela teoria seriam ilusórios e desastrosos se tentássemos aplicar as suas conclusões aos fatos da experiência."

(1) “Os economistas clássicos” é uma denominação inventada por Marx para designar Ricardo e James Mill e seus predecessores, isto é, os fundadores da teoria que culminou em Ricardo. Acostumei-me, talvez perpetrando um solecismo, a incluir na “escola clássica” os seguidores de Ricardo, ou seja, os que adotaram e aperfeiçoaram sua teoria, compreendendo (por exemplo) J. S. Mill, Marshall e o Prof. Pigou.

*John Maynard Keynes (1883-1946). A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, p. 15. Nova Cultura, S. Paulo, 1985.

Fernando Gabeira - O vírus da guerra cultural

- O Estado de S.Paulo

Se debatemos medidas sanitárias, alguém logo dirá: por que não combater o Bolsonaro?

De certa forma, uma epidemia como esta do coronavírus já estava prevista por estudiosos. O que não estava ainda no nosso radar era o impacto da ignorância humana em aceitá-la para realizar o combate frontal contra ela.

À pequena capa gordurosa do vírus foram acrescidos os fluidos da ideologia, tornando-o ainda mais perigoso e letal. Agora que aconteceu, constatamos que essa reação não era de todo imprevisível. Um movimento moderno de descrédito da ciência, do conhecimento, da imprensa facilmente desaguaria nesta oposição a uma ululante realidade sanitária.

A eleição de Donald Trump e a de Jair Bolsonaro são um marco destes tempos modernos. Ambos viram o surgimento do coronavírus como ameaça a seus governos e passaram aos seguidores a impressão de que todo o debate sobre o tema era manobra de oposição. A emergência do corona transformou-se, então, para eles numa guerra cultural contra os inimigos de sempre.

Ao transfigurar uma realidade sanitária num confronto político, usaram com naturalidade sua arma comum, fake news, para vencer a batalha. Nos Estados Unidos, por exemplo, a extrema direita travou uma luta direta contra a principal autoridade sanitária, Anthony S. Fauci, cobrindo-o de ofensas gratuitas.

Preocupado com sua reeleição, Trump tentou corrigir o rumo. Bolsonaro resistiu mais, de forma desagregadora. Seguidores usaram a mesma tática de fake news para desacreditar as mortes e classificar os mensageiros da realidade como uma torcida pelo vírus.

Merval Pereira - Um presidente cercado

- O Globo

Vivemos situação impar na história recente, a de um presidente que para sobreviver precisa desmontar o próprio governo. Para seu desespero, Bolsonaro hoje tem pelo menos três ministros indemissíveis. Aos superministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, juntou-se nessa crise do Covid-19 o ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.

Guedes, porque representa a garantia de um caminho seguro na Economia, por mais que possam haver discordâncias pontuais sobre sua atuação. Nossa economia não resistiria à demissão do Posto Ipiranga, cuja presença na equipe do candidato Bolsonaro certamente foi fundamental para o apoio de uma classe de eleitores que normalmente não escolheria o capitão sem saber que estaria no comando da economia.

Se não tivesse anunciado com antecedência a presença de Paulo Guedes em sua equipe, o candidato do PSDB Geraldo Alckmin, com Arminio Fraga a apoiá-lo, teria mais chances.

O ministro da Justiça Sérgio Moro tem outra razão para ser indemissível: desde que foi escolhido, com Bolsonaro já eleito, transformou-se na garantia de que o novo governo combateria a corrupção na linha da Operação Lava Jato. De lá para cá, mesmo tendo recuado em alguns momentos do confronto com uma linha mais radical de Bolsonaro, e de ter sido exposto a uma campanha de descrédito claramente política, Moro conseguiu manter-se símbolo do combate à corrupção, mais popular do que Bolsonaro, o que incomoda sobremaneira um presidente inseguro.

Para cúmulo do azar de um presidente paranóico, em plena crise do novo coronavírus surge como guardião da saúde pública o ministro da Saúde Luis Henrique Mandetta, em contraposição involuntária ao próprio presidente, que tomou para si o papel de inimigo da ciência, relativizando a maior crise que o mundo já enfrentou em décadas recentes.

Eliane Cantanhêde - A guerra continua

- O Estado de S.Paulo

Com ministros e generais divididos, Bolsonaro ainda só pensa nisso: o fim do isolamento

Está redondamente enganado quem acha que, depois de todas as evidências, do novo pronunciamento e do telefonema para Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro enfim se rendeu à importância vital do isolamento social. Não, ele recuou só na forma e na TV, mas continua firmemente a favor de liberar o comércio e o trabalho das pessoas. E não tem apenas apoio do filho Carlos e do “gabinete do ódio” do Planalto, mas de influentes generais à sua volta.

Estudo da PUC-RJ e da Fiocruz jogou lenha na fogueira e reforçou no Planalto a implicância contra o isolamento, ao apontar uma evolução mais controlada do coronavírus no Brasil diante de EUA, China, Itália e Espanha. O estudo tem parâmetros científicos, óbvio, mas com base nos casos e mortes confirmados, quando as autoridades de saúde alertam que, entre os números oficiais e a realidade, há um fosso gigantesco.

Os relatos de parentes de vítimas abaixo dos 60 anos são contundentes: elas vão aos hospitais, radiografias e tomografias que não confirmam nada, tomam um remedinho para febre e voltam para casa. Sem o teste! Quando enfim são internadas, é tarde demais, os pulmões já estão parando, elas são entubadas e morrem em horas. Antes do resultado dos exames.

Sem contar as sabe-se lá quantas pessoas que tossem, têm febre e dor de cabeça, mas não conseguem fazer o teste nem mesmo em hospitais particulares, quanto mais nos sobrecarregados hospitais públicos. Logo, os números de infectados e mortos são muitíssimo maiores do que os oficiais.

Bernardo Mello Franco - A humilhação de Mandetta

- O Globo

É cada vez mais ingrata a situação de Mandetta no governo. Um aliado conta que ele está “louco para ir embora”, mas quer que Bolsonaro assuma o desgaste de demiti-lo

É cada vez mais ingrata a situação de Luiz Henrique Mandetta no governo. Responsável pelo combate ao coronavírus, o ministro da Saúde já vinha sendo desautorizado pelo chefe. Ontem sua fritura alcançou um grau inédito, com direito a ameaça de demissão pelo rádio.

Em entrevista à Jovem Pan, Jair Bolsonaro voltou a atacar as medidas de isolamento defendidas pelo auxiliar. Ele disse ainda que o Ministério da Saúde teria sido tomado por um “clima de pânico” com a pandemia.

Questionado sobre o futuro do ministro, o presidente afirmou que não pretende demiti-lo “no meio da guerra”. Em seguida, ressaltou que “todo mundo pode ser demitido”. Mais Bolsonaro, impossível.

Foram três minutos de artilharia ininterrupta. “O Mandetta já sabe que a gente tá se bicando há muito tempo”, disse o capitão. “Ele é uma pessoa que em algum momento extrapolou”, prosseguiu. “Tá faltando um pouco mais de humildade para ele”, arrematou.

Míriam Leitão - Redução de salário e mais recessão

- O Globo

Redução de jornada com corte de salário vai agravar a recessão. Governo e economistas dizem que a alternativa seria o fechamento das empresas

O Brasil aprofunda a recessão e os primeiros cálculos começaram a aparecer. Dependendo da dimensão da pandemia, pode ser a maior queda do PIB da nossa história. A proposta do governo sobre a redução dos salários produzirá uma diminuição forte na renda dos trabalhadores do mercado formal e, consequentemente, do consumo. Alguns economistas lembram que a alternativa seria o desemprego e que essa flexibilidade é a única saída.

É preciso, contudo, ver todo o impacto dessa proposta de redução da jornada de trabalho, porque a queda dos salários pode ser quase de 60%. Em simulações feitas por Alvaro Gribel e publicados ontem no blog (veja aqui), os cortes no salário de um trabalhador que recebe até três salários mínimos, R$ 3.135, podem ser de 10%, 21% ou 29%, dependendo do percentual acertado com o empregador. Ou seja, a parcela do seguro-desemprego não cobre a renda diminuída mesmo nos salários mais baixos. Para quem ganha R$ 10.000 pode ser de 20%, 40% ou 57%.
A grande pergunta é se haveria uma saída menos indolor. Ricardo Paes de Barros disse que a alternativa do desemprego é pior:

–Certamente não é o melhor cenário, mas perder as empresas, se elas falirem, pode ser pior. Se elas perderem o caixa e o capital produtivo e não conseguirem se manter, esses trabalhadores formais ficarão sem emprego.

Flávia de Oliveira - A medida da precarização

- O Globo

Parece mentira. É o avesso do estímulo

No conjunto de medidas que denominou Programa Emergencial de Manutenção do Emprego, a equipe econômica vai produzir mais recessão e precarização do mercado de trabalho que bem-estar. Inédito. Sob o pretexto de preservar vínculo empregatício, a Medida Provisória 936, publicada no 1º de abril, fragiliza o grupo mais numeroso e indefeso da mão de obra, reduz salários e, em consequência, desidrata a massa salarial com efeitos nefastos no consumo das famílias. Parece mentira. É o avesso do estímulo.

Desde 2016, o IBGE divulga uma série de estatísticas que, juntamente com a taxa de desemprego (11,6% no trimestre dezembro-fevereiro, equivalentes a 12,3 milhões de pessoas), ajuda a compreender as deficiências do mercado de trabalho contemporâneo. Uma delas é a subocupação por insuficiência de horas, formada por profissionais que trabalham menos de 40 horas semanais, têm tempo e gostariam de uma jornada maior — certamente, para ganhar mais. Essa forma de ocupação alcança muitos autônomos (notadamente os prestadores de serviços), empregados sem carteira assinada e aqueles submetidos ao contrato intermitente, novidade da reforma do governo Michel Temer/Henrique Meirelles.

Com as regras recém-anunciadas, Paulo Guedes e equipe permitem via acordo individual — ou seja, sem participação de sindicatos — a redução de 25% em jornada e salário de trabalhadores formais de todos os níveis de rendimento. E autoriza o corte de 50% e 70% de carga horária e remuneração de qualquer celetista que ganhe até três salários mínimos. Empurra, portanto, o com carteira para a subocupação. “Se evita demissão no curtíssimo prazo (90 dias), por outro lado reduz a renda, impacta o consumo das famílias e afeta até a capacidade de os informais ganharem dinheiro, porque boa parte deles atende os empregados formais”, analisa o economista Fabio Bentes, da Confederação Nacional do Comércio (CNC).

Rogério L. Furquim Werneck* - Não é hora de brincar com a sorte

- O Estado de S. Paulo / O Globo

É alarmante a desarticulação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise

Prestes a ser colhido em cheio por uma pandemia devastadora, com desdobramentos econômicos e sociais de proporções dramáticas, o País assiste, perplexo, ao desenrolar, no Planalto, de uma extemporânea e deprimente ópera-bufa que a cada dois dias volta a alimentar o temor de que, a qualquer momento, o ministro da Saúde venha a ser demitido pelo presidente da República. Por duas falhas imperdoáveis: ter insistido numa linha clara e bem fundamentada de combate à epidemia e, pior, ter mostrado mais sucesso do que deveria no desempenho do cargo.

Essa é só uma das evidências mais gritantes da alarmante desarticulação com que o governo federal vem preparando o País para o impacto da crise. Em contraste com países que enfrentam a pandemia em formação cerrada, entre nós a cúpula do governo ainda não conseguiu se mobilizar para levar adiante uma ação nacional concertada de resposta à crise.

Diante da complexidade do que terá de ser enfrentado, as graves limitações do presidente já não podem mais ser disfarçadas. Têm sido escancaradas, a cada dia, à luz do sol. Já não há mais espaço para autoengano. Permito-me reproduzir a seguir o que afirmei sobre Bolsonaro quando pela primeira vez o mencionei em artigo aqui, cinco meses e meio antes das eleições, em 20/4/2018: “A verdade verdadeira é que Bolsonaro, tomado pelo que de fato é, e não por fantasias do que poderia vir a ser, não tem nem estatura nem preparo para ser presidente”. E, tendo dito isso, concluí o artigo com uma frase que se revelou tristemente premonitória: “A esta altura, em meio ao atoleiro em que foi metido, o País já deveria ter aprendido, de uma vez por todas, quão desastroso pode ser entregar a Presidência da República a uma pessoa patentemente despreparada para o exercício do cargo”.

Celso Ming - O que não será como antes

- O Estado de S.Paulo

Certos comportamentos econômicos devem mudar ainda mais depois de ultrapassadas as agruras da hora

Depois que tudo tiver passado, nada será como antes. Será?

Na TV, nas redes sociais e nas outras mídias, veem-se os apelos para mudança, radical e definitiva, dos padrões de consumo e de conduta, em direção ao mais simples, à revalorização do natural, da amizade, da ternura e da compaixão.

Tantas e tantas vezes no passado o mundo atravessou grandes turbulências, até mais dolorosas do que as de agora. A cada período de guerra prolongada, a cada devastação produzida pela peste ou pelo cholera morbus, a cada grande catástrofe, o propósito geral também foi esse, o de que, uma vez enterrados os mortos e cicatrizadas as feridas, as mudanças seriam inevitáveis e para sempre.

Alguma coisa pode de fato ter mudado nessas ocasiões, mas, passada a abominação da desolação, tudo o que era antes tendeu a se repetir, como se sabe desde os tempos do Êxodo e da caminhada pelo deserto, quando os hebreus repentinamente se esqueceram do valor da liberdade, voltaram a adorar o bezerro de ouro e sentiram saudades das cebolas do Egito.

Mas o esquecimento dos propósitos de superação e a volta ao barro de onde viemos não é tudo. Muita coisa vem mudando, um tanto lentamente, mas vem mudando, até para melhor. No tempo da peste, por exemplo, que exterminou metade da população da Europa, nem mesmo os estudiosos sabiam o que era aquilo. Há apenas 116 anos, o Rio esteve entregue à Revolta da Vacina, porque ninguém aceitava o tratamento proposto por Oswaldo Cruz para erradicar a febre amarela.

Luiz Carlos Azedo - A epidemia pelas ventas

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

”É genocida a ideia de que a epidemia tem baixa letalidade e, por isso, é preferível que tenha um ciclo curto, para que a economia se recupere rápido”

Todo velejador sabe que diante da tempestade é melhor prevenir do que remediar. Quando não é possível chegar a um porto seguro antes da borrasca, isso significa rizar bem as velas, ou seja, diminuir a área vélica proporcionalmente à força do vento, e enfrentar as ondas longe da costa. Em situações limites, pôr o barco em capa, aquartelando as velas no sentido contrário ao leme, até o mau tempo passar; ou correr com o tempo, em árvore seca, isto é, sem as velas, firme no leme para manter o barco longe dos arrecifes. No desespero, muitas vezes, a saída é encalhar o barco numa praia.

Em quaisquer circunstâncias, o timoneiro tem que saber posicionar o barco corretamente em meio às ondas, para não naufragar. Em capa, é preciso aguentar o aguaceiro pelas ventas, ou seja, a onda batendo na proa da embarcação, sem deixar o barco virar. Em árvore seca, ou seja, sem as velas, com a onda batendo na popa, o risco de virar também existe, a saída é reduzir a velocidade e não deixar o barco atravessar. Mesmo os grandes navios estão sujeitos a ter que fazer essas manobras nas grandes tempestades.

É válida a analogia das manobras de mau tempo com o combate à epidemia de coronavírus, que parece uma mistura de tsunami com tempestade tropical. O presidente Jair Bolsonaro não é um velho marujo. Não consegue entender o risco de seu próprio naufrágio. A pandemia começou como uma pequena ondulação, mas está crescendo como um tsunami que se aproxima da costa; para piorar, vem acompanhada de ventos equivalentes a uma tempestade tropical, a recessão da economia mundial. São dois fenômenos conjugados, sem precedentes desde a gripe espanhola, em 1918, e a Grande Depressão de 1929, sem esse intervalo de tempo.

O que o Ministério da Saúde, os governadores e os prefeitos fizeram até agora foi tentar preparar o Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto o tsunami não chega à praia, o que vai acontecer mais cedo ou mais tarde. A Saúde é um sistema federativo, financiado 40% pelo governo federal, 40% pelos estados e 20% pelos municípios, mas assimétrico no atendimento à população: 15% a cargo da União, 35% dos estados e 50% dos municípios. A União só gasta 5% com hospitais, 50% dos custos são arcados pelos estados e 45%, pelos municípios.

Bruno Boghossian – Rota de fuga

- Folha de S. Paulo

Presidente transfere culpa e joga para a plateia em busca de proteção

Jair Bolsonaro só pensa no próprio poder. O presidente ameaçou derrubar com uma canetada as medidas de isolamento para conter o avanço do coronavírus. Apesar de fingir coragem, ele sugere que não quer ser responsabilizado pela tragédia que essa ordem pode causar.

"O que os governadores mais querem é que eu tome uma decisão para trazer o problema para o meu colo. Dali para a frente, qualquer morte que acontecer, começar a me culpar", disse nesta quinta (2). "Essa que é a minha preocupação no momento."

Bolsonaro, como se vê, continua tratando com desdém os alertas das autoridades de saúde sobre os riscos de se lançar milhões de pessoas de volta ao trabalho. A única estratégia do presidente durante a crise é abrir mão de suas responsabilidades.

Hélio Schwartsman - Covid-19 vai vencendo a primeira batalha

- Folha de S. Paulo

Profissionais de saúde estão se contaminando aos borbotões

Eu, por ora, escapei da Covid-19, mas minha mulher não. Médica intensivista e cardiologista, Josiane começou a experimentar os sintomas da doença na semana passada. Ela está se recuperando e, em breve, deverá voltar para a linha de frente. Embora seu quadro tenha sido moderado, não foi nenhum "resfriadinho".

Ciente dos riscos que corria, Josiane já me banira, com os meninos e os cachorros, para o sítio, onde estamos há duas semanas —e ela só me deixou voltar uma vez para levá-la para fazer exames. Nosso isolamento ocorre em condições bucolicamente privilegiadas, mas devo confessar que é angustiante acompanhar a evolução dos sintomas à distância.

Escrevo isso para dizer que estamos perdendo a primeira batalha para a Covid-19. Profissionais de saúde estão se contaminando aos borbotões. No Brasil estamos apenas no início da epidemia, mas, em lugares em que ela está mais madura, os números impressionam.

Reinaldo Azevedo – Vírus traz à tona nosso ‘deep state’

- Folha de S. Paulo

À margem, Bolsonaro estimula os perdigotos da desordem e da tragédia

Nesta quinta, o presidente Jair Bolsonaro divulgou e pediu que se passasse adiante um vídeo em que uma senhora cobra que os militares saiam às ruas para pôr fim à quarentena. O público-alvo da exortação golpista —a de Bolsonaro— não são os brasileiros, mas os quartéis. Prega no vazio. Adequadas às suas particularidades, as Forças Armadas também aplicam medidas de isolamento social.

O presidente comete mais um crime de responsabilidade. Até a minha coluna passada, contavam-se 10. Agora, 12. Responderá por eles no tempo possível. À maneira cabocla, o coronavírus revelou a existência de um ‘deep state’ no Brasil. Pela Saúde, fala o ministro Luiz Henrique Mandetta. Pelo ordenamento geral, o general Braga Netto, da Casa Civil.

Governam o país. À margem, vitupera Bolsonaro, estimulando os perdigotos da desordem e da tragédia, prenhes de vírus. Governa o Bolsolavistão. Ademais, a Constituição reconhece a existência de um vice-presidente também eleito: general Hamilton Mourão. A Carta e a lei 1.079 trazem o regramento necessário para que a República sobreviva a vontades que a aniquilariam.

Entendo. Não é mesmo fácil a um presidente ter de vir a público para anunciar que, em alguns meses, de 100 mil a 240 mil cidadãos podem morrer vítimas da Covid-19, obrigando-se ainda a alertar que, sem medidas de distanciamento social, a cifra aponta para catastróficos 2,2 milhões.

Foi o que fez Donald Trump na terça. Pela primeira vez, o histrião pareceu um estadista. Economizou nos esgares. Terá de acertar contas com o povo americano. Até havia pouco, nos seus discursos, a doença era só uma gripe provocada pelo ‘vírus chinês’, e os riscos que corriam os EUA não passavam de um fantasma brandido por democratas para prejudicar sua campanha à reeleição.

Vinicius Torres Freire - No débito ou no crédito, vendas caem 50%

- Folha de S. Paulo

Colapso já está nos dados tétricos, e governo ainda é reativo e incapaz de planejar

O Brasil começou a fechar as portas na segunda-feira, 16 de março. Na semana seguinte, o faturamento com as vendas de cartão de crédito e débito caía cerca de 50% em relação à média diária do primeiro bimestre do ano, segundo este jornalista apurou. No comércio de roupas, calçados e acessórios, quase 90%. Nos restaurantes, quase 70%.

Houve um apagão no consumo de energia, que baixou 18% entre a sexta-feira, 13, antes do início do pânico da epidemia, e a sexta-feira, 27 (para ser preciso, essa foi a queda na carga, que inclui perdas técnicas e comerciais, de furtos a problemas de medição). O consumo nas empresas caiu, nas residências aumentou.

Parece evidente a quase todo o mundo que a economia entrou em colapso, mesmo antes de ler os números preliminares do desastre.

Mas será necessário ter medidas novas e frequentes da asfixia econômica, porque será preciso: 1) saber da eficácia das medidas de auxílio (caso sejam de fato implementadas); 2) socorrer setores que, infelizmente talvez se descubra, estejam sendo especialmente arruinados, mais do que se esperava.

No entanto, ainda não existe um plano federal de monitoramento das zonas de desastre nem um programa para a economia de guerra, que vai durar muito tempo além do período de ataque nuclear da epidemia.

Ruy Castro* - Merecendo o capitão

- Folha de S. Paulo

O neto do general obrigava os outros garotos do prédio a lhe baterem continência

Uma amiga minha, filha de um major do Exército, morou em Brasília em 1970, apogeu da ditadura. O apartamento de seus pais ficava numa superquadra reservada a militares, de frente para o Eixo Monumental. E, como a vida militar se regula pela hierarquia, seus prédios na cidade seguiam essa hierarquia. Mesmo que com diferença de um andar, um general sempre morava mais alto que um coronel e este idem que os majores e capitães. Aos tenentes, só devia restar o térreo e de fundos.

Como os militares se mudavam para Brasília com a família, a hierarquia se transferia automaticamente para esta —donde um filho ou neto de general tinha preferência, digamos, no elevador, sobre o neto ou filho do de outra patente. Segundo minha amiga, alguns desses meninos, já adestrados no espírito da categoria, exigiam que seus coleguinhas de prédio, filhos de oficiais subordinados, lhes batessem continência, como os pais destes faziam quando cruzavam nos corredores com o generalão.

Ricardo Noblat - O plano de Bolsonaro para acabar com o confinamento social

- Blog do Noblat | Veja

Para salvar a Economia e a reeleição

Se tudo sair como deseja o presidente Jair Bolsonaro e admitiu, ontem à noite, em entrevista à Rádio Jovem Pan, será assim: neste domingo, seus devotos promoverão uma jornada nacional de jejum e de orações sob o estímulo e a benção de pastores evangélicos.

E ele, a partir da segunda-feira, poderá a qualquer momento assinar uma Medida Provisória para acabar na prática com o confinamento social decretado por governadores e prefeitos e apoiado por seus principais ministros. Esse é seu plano. Simples.

É fato que o sistema federalista adotado no Brasil concede autonomia administrativa para estados e municípios em áreas como saúde, educação e comércio, o que restringiria a possibilidade de interferência de Bolsonaro. Só que…

Só que Estados e municípios não podem contrariar decreto presidencial que defina como atividades essenciais as que, a juízo de Bolsonaro, devam funcionar. À Justiça, provocada mais tarde, caberá a última palavra. Nesse meio tempo…

Dora Kramer - Perdido por mil

- Revista Veja

O Brasil tem na Presidência da República um homem psicológica e emocionalmente perturbado

Dúvida, já não há: o Brasil tem na Presidência da República um homem psicológica e emocionalmente perturbado. Não diria louco, pois seria, assim, tido como inimputável, e Jair Bolsonaro de alguma maneira, cedo ou tarde, terá de pagar pelo mal que vem causando ao país com seus atos e palavras de incentivo à quebra das regras de precaução no combate mundial à expansão da Covid-19.

Não faz isso apenas por ignorância ou pura teimosia. Faz também com algum objetivo que só está claro para ele e para os celerados que compartilham de suas posições.

Para detectar alguma lógica nessa desordem mental, algumas hipóteses são desenhadas. A mais radical aventa a possibilidade de o presidente tentar provocar um processo de impeachment para se pôr no papel de vítima e se eximir das responsabilidades às quais não consegue fazer frente por falta de vocação e preparo.

Outra, em linha semelhante, desperta a desconfiança de que esteja querendo forçar uma situação à moda húngara, que enseje a tomada de soluções autoritárias como o recurso ao estado de sítio. Tratando-se de Bolsonaro, não convém duvidar de nada, por mais absurdas e inexequíveis que sejam as ideias.

Ele quer fazer o diferente a fim de tentar se valer tanto de possíveis bons resultados das medidas de precaução, como se fossem a prova de que tinha razão, quanto do inevitável agravamento da situação econômica para, então, dizer: “Eu avisei”.

Em ambos os casos as opiniões de Bolsonaro têm tido peso zero nos ministros que o ignoram, na Justiça que derruba suas decisões, nos governadores e prefeitos que o contrariam, nas empresas servidoras de redes sociais que apagam suas mensagens, nos panelaços diários, na maioria da sociedade que não lhe dá ouvidos e, podendo, fica em casa.

No panorama de hoje, Bolsonaro pode dar adeus à reeleição para se concentrar na permanência no cargo até 2022

Monica de Bolle* - A renda básica emergencial

- Revista Época

Voucher, ou um “vale”, não é renda. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população

Na última segunda-feira foi aprovada por unanimidade no Congresso Nacional a Renda Básica Emergencial (RBE), um benefício de R$ 600 mensais a ser destinado a uma parte da população brasileira mais vulnerável, como os trabalhadores informais. Embora haja muito o que aprimorar, a RBE foi uma enorme conquista para o Brasil. Foi, também, um momento de protagonismo do Congresso, que tem tomado as rédeas da crise enquanto o governo, quando muito, dorme no ponto. Mas não vou tratar das andanças do presidente da República por Brasília, tampouco de suas conclamações ao vírus e à epidemia.

Apesar de a RBE ter sido uma conquista da sociedade junto ao Congresso, movendo o Estado a despeito da inércia do Executivo federal, não tardou para que o governo quisesse dela se apoderar. Ou melhor, quisesse se apoderar da medida para propaganda, porque o pagamento do benefício para quem já está passando fome o governo tratou mesmo foi de embromar. Nos lábios do ministro da Economia, Paulo Guedes, a RBE ganhou logo um nome inapropriado, insensível, de mau gosto, que beira o obsceno: “coronavoucher”. Parte da imprensa pôs-se a repeti-lo sem se dar conta de que um imenso equívoco havia sido cometido pelo ministro. Voucher, ou um “vale”, não é renda. O “vale” é um papel que dá ao detentor o direito de obter um desconto numa compra ou de trocá-lo por um bem ou serviço: vale-transporte, vale-alimentação. Renda é um fluxo de dinheiro para o recipiente, seja na forma de salários, de dividendos ou de transferências do governo. A RBE é uma transferência incondicional de renda do governo para uma parcela da população. A RBE é como o Bolsa Família, com a diferença de que o Bolsa Família exige contrapartidas dos beneficiários. Portanto, o ministro embrulhou conceitos econômicos, na melhor das hipóteses, para se fingir de pai da filha que não havia gerado.

Guilherme Amado - A nova oposição: a direita democrática se une à esquerda contra Bolsonaro

- Revista Época

Em vez do cada vez mais isolado e briguento Bolsonaro, aqueles que dele discordaram, mesmo dentro de seu governo, terão sido os vitoriosos na derrota do coronavírus

Passado o coronavírus (sim, vai dar certo), nada voltará a ser como antes para Jair Bolsonaro. Após semanas e semanas vendo o presidente atrapalhar o combate à pandemia, deixando estarrecidos até alguns de seus ministros, o governo terá construído em torno de si uma nova oposição, formada agora não só pela esquerda, mas também pela direita democrática. Nas fileiras até ontem ocupadas somente por siglas como PT, PDT, PSB, PCdoB e PSOL, se somarão governadores, prefeitos e parlamentares com posturas ortodoxas na economia e/ou conservadoras nos costumes, mas que souberam priorizar a defesa da vida ao jogo político. Não flertaram com rupturas institucionais e souberam minimizar divergências em nome da necessária aliança contra um inimigo mais poderoso.

Em vez do cada vez mais isolado e briguento Bolsonaro, aqueles que dele discordaram, mesmo dentro de seu governo, terão sido os vitoriosos na derrota do vírus. Dessa aliança temporária poderá nascer algo novo. Talvez não seja a sonhada frente ampla, defendida mundo afora como fundamental para peitar líderes autoritários como o ex-capitão, mas com o potencial de tornar bem mais difíceis os planos do presidente.

A troca de gentilezas entre os outrora arqui-inimigos João Doria e Lula, na quinta-feira 2, no Twitter, foi a face mais evidente deste momento. “Nossa obsessão agora tem de ser vencer o coronavírus. (...) A gente tem de reconhecer que quem tá fazendo o trabalho mais sério nessa crise são os governadores e os prefeitos”, escreveu o petista, recebendo em seguida uma resposta também positiva de Doria: “Temos muitas diferenças. Mas agora não é hora de expor discordâncias. O vírus não escolhe ideologia nem partidos. O momento é de foco, serenidade e trabalho para ajudar a salvar o Brasil e os brasileiros”. Embora o gesto possa ajudar o discurso antipartidário de Bolsonaro, que tenta tachar de podre, corrupto ou comunista qualquer político que discorde dele, há nele um valor nada desprezível na história brasileira, das Diretas para cá.

César Felício - A simulação presidencial

- Valor Econômico

Inépcia do governo em temas sociais é perturbadora

Os trabalhadores autônomos e informais que anseiam pela ajuda de R$ 600 precisam respirar fundo. O histórico de inépcia do governo Bolsonaro em relação a temas sociais é perturbador.

Parece que faz muito tempo, mas foi há poucas semanas, em janeiro, que se constatou que os brasileiros que cumpriam as exigências da nova reforma da Previdência para se aposentar não conseguiam fazê-lo, porque o INSS não havia se preparado para alterar seus parâmetros na concessão dos benefícios. O gargalo era a falta de mão de obra, porque a autarquia não repôs o quadro de funcionários que tinha se aposentado nos últimos anos. O principal sistema de seguridade social travou.

No ano anterior, o Ministério da Cidadania anunciou a concessão do décimo-terceiro salário para os beneficiários do Bolsa Família, mas não havia uma previsão clara de receita para garantir este pagamento. A solução encontrada foi o enxugamento de mais de 1 milhão dos beneficiários, alvos de uma operação pente-fino.

Durante um ano inteiro, o governo federal tergiversou sobre como atender a faixa um do programa Minha Casa Minha Vida. Pensou em voucher, pensou em restringir o benefício, pensou muito. Nada foi posto de pé.

Na balbúrdia do coronavírus, o presidente da Câmara cobra medidas urgentes do governo para preservar a economia e o governo se exime: para Bolsonaro e tecnocratas como o presidente do Banco do Brasil, a solução é soltar as amarras do isolamento, bater de frente contra orientações sanitárias mundiais e cada um que vá cuidar de seu sustento, porque a hora é de trabalhar. Nas curiosas palavras do presidente do Banco do Brasil, o isolamento social não é um tema para ser decidido no âmbito da medicina.

O livre-pensar das autoridades do governo não implanta um isolamento vertical que é desaconselhado por especialistas e que ninguém sabe como poderia funcionar. Serve apenas como areia nos olhos para distrair o público da inação.

Claudia Safatle - Quem vai pagar? Todos nós pagaremos

- Valor Econômico

Retração da atividade no país deve ser de 5% a 6%

É obrigação do Estado ajudar os mais vulneráveis em meio a uma crise do porte da provocada pela disseminação do coronavírus. Não importa o quanto vai custar. Pode ser R$ 500 bilhões ou R$ 1 trilhão.

Esse é um montante que será financiado por emissão de dinheiro e de dívida pública. Quem vai pagar? Toda a sociedade brasileira vai pagar. Há um queda fortíssima de demanda e de oferta efetivas que desembocará em uma recessão, com retração de 5% a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) este ano.

A emissão de moeda, a impressão pura e simples de dinheiro, é altamente inflacionária. Mas esse é um problema inexistente, hoje, quando os economistas estão revendo os prognósticos de inflação para algo entre 1,5% e 2% no ano. Ou seja, bem aquém da meta de 4% que, com o intervalo de tolerância, fica entre 2,5% e 5,5%.

A medida sancionada na tarde de quarta-feira, pelo presidente da República, que instituiu um voucher de R$ 600 para cada um dos quase 60 milhões de trabalhadores informais, autônomos e micro empreendedores individuais (MEI), é parte das soluções que o Estado tem obrigação “moral” de coordenar, diz o ex-ministro Delfim Netto.

Armando Castelar Pinheiro* -Manipulação de crenças

- Valor Econômico

Seria um desperdício não aproveitar este crise para colocar o Brasil em uma rota de progresso nas décadas que virão

Estes tempos de quarentena têm permitido, entre uma sessão de lavagem de pratos e outra, tirar o atraso na minha lista de leituras. Estou curtindo, em particular, o “Economia do Bem Comum”, de Jean Tirole, Nobel de Economia em 2014 (Ed. Zahar, 2020).

Tirole o escreveu para os não-economistas: sem fórmulas e (quase) sem gráficos, o livro explica o que faz o economista, em especial na academia e no desenho das políticas públicas, com ênfase nos avanços trazidos pela Economia Comportamental e as Teorias dos Jogos e da Informação. O livro traz também pontes entre a economia e disciplinas como a filosofia, a sociologia e o direito que, como lembra Tirole, trabalham com o mesmo objeto: o ser humano.

Estes dias li uma seção sobre a manipulação de crenças. A Economia Comportamental enfatiza a influência das crenças sobre o nosso comportamento, notando que essas em parte explicam as opções dos agentes econômicos. Tirole discute em especial o conceito da automanipulação - “os indivíduos quase sempre buscam reprimir/esquecer ou reinterpretar as informações que lhes são desfavoráveis” -, um tema que, segundo Tirole, remonta aos escritos de Platão, que considerava isso algo ruim para o indivíduo.

Tirole lista três possíveis razões para o indivíduo mentir para si mesmo: gerar confiança para enfrentar desafios; esquecer coisas negativas que podem ocorrer, como a morte; e aumentar a autoestima, se sentindo mais ‘inteligentes, bonitos, generosos etc”. Soa familiar, mas será que faz sentido? Afinal de contas, para a economia essa atitude é irracional: informações incompletas ou distorcidas em tese levam a piores decisões.

José de Souza Martins* - A cobaia

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Os arriscados ajuntamentos diante da entrada do Palácio do Planalto são verdadeiras armadilhas em que o presidente caiu, como tem caído em outras

Situações sociais anômalas, como as decorrentes da pandemia da covid-19, possibilitam a observação sociológica de urgência de ocorrências inesperadas. As diferentes do que é pressuposto no conhecimento consolidado.

Ante indagações que lhes têm sido dirigidas, pesquisadores de outras áreas fazem a ressalva de que enfrentam um problema médico ainda sem informações suficientes para fundamentar previsões, a não ser as provisórias. Nas ciências sociais é a mesma coisa. Neste caso, no trato dos desdobramentos correlatos, como os do comportamento na situação social cujas referências a epidemia desorganiza.

Ao fazer o que habitualmente não fazem ou ao continuar a fazer o que a situação de crise já não recomenda, as pessoas, individual ou coletivamente, criam situações sociais que o sociólogo pode analisar como de tipo experimental. Pode nelas identificar o que é metodologicamente relevante para a observação científica.

As ciências sociais não são ciências de laboratório. Comportamentos esdrúxulos podem, porém, permitir sua análise como se fossem atos em que os próprios atores, sabendo ou não, desafiam o costumeiro e o correto.

Os agentes da conduta anômala são, assim, involuntariamente cobaias. Não porque sejam induzidos pelo pesquisador a fazer o que não querem, mas porque fazem o que a ciência precisaria fazer, mas não pode. O verdadeiro pesquisador está sempre de prontidão para reconhecer as revelações científicas do inesperado e do acaso. Importantes descobertas científicas foram feitas desse modo.

Maria Cristina Fernandes – Quem segura a explosão das favelas

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Campanha bolsonarista contra quarentena ecoa em comunidades pobres até que a covid-19 atinja as avós, pilar de coesão social de famílias que têm, em suas filhas, o principal arrimo

Quando Júlio Ludemir começou a tossir, percebeu que, na verdade, se tornara parte de uma sinfonia. Assim como em outras favelas do país, na Babilônia, zona sul carioca, não é preciso encontrar o vizinho para descobrir que ele tosse. Produtor cultural de iniciativas como a Festa Literária das Periferias, Ludemir mora na Babilônia há sete anos. Já viu a favela mudar de cara muitas vezes.

Cenário de “Orfeu Negro” (1958) a “Tropa de Elite” (2008), a Babilônia já foi do PT de Benedita da Silva, do Comando Vermelho, da UPP, do Terceiro Comando, de Marcelo Crivella, dos turistas estrangeiros que se hospedam em seus “hostels”, da chuva que arrasou seus barracos, da falta d’água que perdura em tempos de pandemia e, finalmente, de Jair Bolsonaro, que arrebanhou a franca maioria de seus eleitores em 2018 e hoje é poupado pelas panelas de seus moradores. Ludemir só não viu ainda a favela se transformar pelo coronavírus.

Os mototáxis continuam pra cima e pra baixo deixando o comandante da Unidade de Polícia Pacificadora numa saia justa. A restrição privaria a comunidade de importante fonte de renda e de comunicação. Por outro lado, seu tráfego, sem capacete para o passageiro, incorreria em infração de trânsito. Por ora, permanecem em operação, com álcool gel no assento e no lado de fora do capacete, como fonte de contágio.

Assim como o mototaxista, o barraqueiro de praia, a manicure e o flanelinha de carro para alugar não têm outra fonte de renda que não seja aquela trazida por sua exposição diária na rua. Por isso, continuam a sair do barraco, ainda que a vida no asfalto, de onde muitos tiram seu sustento, esteja parada.

O que a mídia pensa - Editoriais

A política como vacina – Editorial | O Estado de S. Paulo

Está na política a elaboração de saídas não apenas para os problemas decorrentes da epidemia, mas também para a profunda crise que o País terá que administrar

O momento que o País atravessa é crítico para a manutenção da democracia. “A se manter o cenário atual, não vejo como se possa evitar um desastre econômico, social e humanitário. É um caminho que pode levar à ruptura política”, disse o historiador José Murilo de Carvalho, em reportagem do Estado sobre os impactos da epidemia de covid-19 na vida política do País.

O risco não é desprezível. A rede bolsonarista, com o próprio presidente Jair Bolsonaro à frente, dedica-se diariamente a atacar as autoridades que assumiram a responsabilidade de enfrentar a epidemia com medidas duras de restrição econômica e isolamento social. A intenção é disseminar o medo do caos, de modo a criar uma atmosfera favorável a soluções liberticidas. Decerto embala os sonhos bolsonaristas o exemplo da Hungria, que acaba de conceder poderes ilimitados ao premiê ultradireitista Viktor Orbán, com a desculpa de que isso é necessário para conter a disseminação do novo coronavírus.

Ao mesmo tempo, a gravidade da situação, somada à atuação irresponsável e belicosa do presidente Bolsonaro, está provocando uma raríssima articulação política no País. Políticos de diversas tendências têm deixado momentaneamente suas divergências de lado para somar esforços em nome da imperiosa necessidade de salvar vidas e dar condições para que a população atravesse essa provação sem grandes privações.

Música | Moacyr Luz & Samba do Trabalhador - Meu canto é pra valer

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - E agora José? (Vídeo)