“O capitalismo
precisa de democracia forte e inclusiva para conseguir se sustentar”,
Professora
mais disputada de Harvard prevê que a agenda de proteção ambiental e social vai
prevalecer sobre autoritarismos porque é melhor para os negócios
Texto: Luciano Huck, especial para O Estado de S. Paulo
Esta semana, passamos dos 250 mil mortos pela covid-19 no
Brasil, e a fotografia dos próximos meses não parece nada boa. De um lado, o
contágio avança de maneira ainda mais violenta com novas cepas do vírus
estrangulando a capacidade das UTIs nos hospitais; do outro, o negacionismo e
falta de planejamento fazem com que a imunização da população avance lentamente
demais, mesmo com toda experiência e capilaridade do SUS.
Desde
o começo da pandemia venho publicando no Estadão conversas com pensadores,
filósofos, professores e autores do mundo afora que possam contribuir no debate
e iluminar o caminho pós-pandemia. De Yuval Harari a Esther Duflo, de Michael
Sandel a Anne Applebaum, foram vários encontros inspiradores.
Hoje
mergulho em um tema que me salta aos olhos e me faz pensar e refletir, o
capitalismo. Nenhum outro sistema tirou tanta gente da pobreza, mas é evidente
que ele não deu totalmente certo se levarmos em conta as enormes desigualdades
que gerou – acentuadas ainda mais pela pandemia. Acredito que nossa geração tem
a responsabilidade de reinventar o capitalismo a fim de curar as feridas
causadas no século 20.
Por
isso hoje trago para este espaço a professora e autora americana Rebecca
Henderson. Ela simplesmente comanda o curso mais disputado da Harvard Business
School e carrega o título de maior prestígio dessa universidade, honraria hoje
limitada a apenas 25 acadêmicos.
Henderson
é especialista em inovação e mudança. Virou a referência global nos temas de
ESG (Governança Ambiental, Social e Corporativa), que são centrais na medição
da sustentabilidade e impacto social dos negócios, que definitivamente entraram
no radar dos grandes investidores – até mesmo no Brasil. Recentemente, ela
lançou o livro Reimagining Capitalism in a World of Fire (Reimaginando o
capitalismo em um mundo em chamas, em tradução livre), em que faz a defesa do
capitalismo e, ao mesmo tempo, da necessidade de ajustá-lo para contemplar
imperativos sociais e ambientais.
Na
conversa a seguir, Henderson faz uma bela leitura dos nossos gargalos de
desenvolvimento e detalha sua visão de mundo, um sopro otimista em meio a tanta
notícia ruim. Ela acredita que a agenda ESG tende a prevalecer não só porque é
a escolha moralmente correta, mas também porque é importante para o sucesso dos
negócios. Lembra que regimes autoritários têm, por sua natureza, problemas de
sustentabilidade. E esclarece por que o sucesso do capitalismo depende de uma
sociedade civil fortalecida e de uma democracia genuína e inclusiva –
justamente a equação que tem me levado nessa jornada de escutar-pactuar-agir
que me anima a seguir adiante.
Luciano
Huck: Pessoalmente ainda enxergo o capitalismo como o melhor sistema
econômico. Nenhum outro sistema até hoje tirou tanta gente da pobreza quanto o
capitalismo. Mas está claro que ele não deu totalmente certo. Basta observar as
obscenas desigualdades que ele gerou e ficaram ainda mais evidentes depois da
pandemia. Parte da missão da nossa geração é reinventar o capitalismo, um
capitalismo 4.0 que cure as feridas causadas no século 20. Você navega muito
bem por esse tema nas suas aulas e nos seus livros. Você poderia falar um pouco
sobre isso? Como podemos construir um capitalismo justo e sustentável?
Rebecca
Henderson: Concordo completamente com você. O capitalismo é incrível.
Quando funciona como deveria, ele gera inovações formidáveis, empregos de boa
qualidade e muitas oportunidades. Mas o capitalismo exige equilíbrio. Mercados
livres e empresas livres são absolutamente fantásticos, mas precisam ser
estruturados. Se você falar para um empresário “ei, faça dinheiro, sem regras,
sem limites, apenas vá”, você o estará convidando a forçar salários para baixo,
jogar lixo nos oceanos e rios, cortar todas as árvores, corromper políticos...
Precisamos encontrar um equilíbrio entre o livre mercado, governos eleitos
democraticamente, capazes e transparentes e uma sociedade civil forte. Não
estou falando que “vamos nos amar” ou “tudo será sempre lindo”. Estou falando
de encarar as coisas como uma negociação, em que cada um tem os próprios
interesses. Os governos têm o papel de estabelecer regras. Os negócios têm um
papel de criar empregos e inovação. E a sociedade civil tem o papel de manter
esses dois entes sempre em xeque.
Luciano
Huck: Existe em algum lugar do planeta alguma iniciativa pública ou
privada que tenha saído apenas do campo das ideias e de fato esteja aplicando
novos experimentos, novas fórmulas ao capitalismo?
Rebecca
Henderson: Não estou falando de algo imaginário, isto é muito real. Um
amigo uma vez me entrevistou acerca do meu livro e ele me disse “Rebecca, seu
livro não deveria se chamar ‘Reimaginando o capitalismo’, deveria se chamar
‘Poderíamos, por favor, voltar ao capitalismo dos anos 50, só que sem a
misoginia e o racismo?’.” Se você olhar para o que tínhamos nos EUA nos anos
50, era isso o que a gente tinha: um governo forte, um mercado forte e padrões
de vida que cresciam de forma estável para aqueles na base da pirâmide de
distribuição de renda. Era possível manter um emprego e construir uma família.
Hoje, Alemanha, Dinamarca e Japão são sociedades com níveis baixos de
desigualdade. Não existe uma imensa separação entre os ricos e os pobres, como
vemos no Brasil e nos EUA. Há uma cooperação próxima entre os negócios e o
governo e um nível elevado de investimento em treinamento e educação para o
homem comum, não somente para as pessoas que nasceram com os pais certos. Hoje
está na moda ser cruel em relação ao Japão, porque a curva de crescimento se
manteve reta durante muito tempo, mas o Japão ainda é a 3.ª maior economia do
planeta, imensamente produtiva, com níveis baixíssimos de pobreza. Não estou
dizendo que qualquer uma dessas sociedades seja perfeita. Os EUA nos anos 50
tinham grandes problemas, especialmente nos tópicos de racismo e misoginia. Mas
nós podemos criar um capitalismo que funcione para todos. Já aconteceu antes.
Existem lugares no planeta em que isso está acontecendo. E podemos fazê-lo
novamente.