Carta promulgada em 1988 previa fonte de recursos que hoje injetaria na Saúde R$ 137 bilhões, o dobro do Orçamento atual
Às vésperas de completar 25 anos, no próximo dia 5, a "Constituição Cidadã” como a definiu Ulysses Guimarães, foi fundamental para consolidar a democracia no país e deixa frutos como o Sistema Único de Saúde (SUS). O atendimento público e gratuito evoluiu muito, mas ainda sofre problemas de financiamento. Caso fosse mantido o investimento previsto pelos constituintes, a Saúde receberia R$ 137 bilhões, o dobro do Orçamento atual. Esse é um dos temas da série sobre a Carta Magna que O GLOBO inicia hoje.
Constituição 25 anos
A Constituição de 1988 completa 25 anos no dia 5 de outubro. Um ano e sete meses antes, foi convocada a Assembleia Nacional Constituinte, em meio ao processo de transição democrática do país após 21 anos sob o regime militar. A Constituinte foi palco de intensos debates, conflitos, impasses e negociações entre várias forças políticas brasileiras. O Especial Constituição 25 anos vai relembrar e refletir esse importante período da história do Brasil
O desafio de financiar saúde gratuita
Sistema universal: Um dos principais legados da Carta, SUS avança em atendimento básico e complexo, mas investimento é metade do previsto
Aos 6 anos, Yago ganhou um ouvido biônico. Pouco depois de nascer, Ana Sofia operou o coração. Tudo de graça. A universalidade no atendimento, seja de baixa, média ou alta complexidade, e sem exigir contrapartidas ou condições - a única das políticas sociais no país com essa característica universal -, foi o bem maior trazido pela Constituição Cidadã para a saúde dos brasileiros, com a instituição do Sistema Único de Saúde (SUS), há 25 anos. Nessas duas décadas e meia, o sistema avançou, universalizando, por exemplo, o combate à Aids e a entrega gratuita de medicamentos. Mas o SUS ainda sofre com o problema do financiamento: a Constituição, ao garantir serviços gratuitos e para todos, previu que 30% dos recursos da Seguridade Social iriam para a Saúde - o que, porém, não foi cumprido, e para ser aplicado hoje o governo teria de dobrar o orçamento do Ministério da Saúde.
Esse subfinanciamento, apontado por pesquisadores como grande desafio da Saúde, além da melhora da gestão, tenta ser solucionado por proposta de destinação de 10% da receita corrente bruta da União para a área, em debate no Congresso. Mesmo isso não acabaria com o subfinanciamento: esses 10% equivaleriam a R$ 40 bilhões - quando, para se cumprir os 30%, seriam necessários R$ 70 bilhões, diz José Noronha, diretor do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde e pesquisador da Fiocruz:
- Hoje cerca de 15% do orçamento da Seguridade são da Saúde. Se fossem aplicar os 30% previstos, teriam de dobrar o orçamento do ministério. O liquidado em 2011 para o orçamento do ministério foi de R$ 68,5 bilhões; iria para R$ 137 bilhões.
Trinta por cento foi uma estimativa baseada no que a Previdência gastava na época com Saúde mais os gastos do Ministério da Saúde. Pela Constituição, seria o previsto até que se aprovasse a lei de diretrizes orçamentárias.
- Esse trecho então caducou. Tentaram aprovar emenda fixando os 30%, e ela sequer foi apreciada pelo Congresso; foi substituída pela Emenda 29, aprovada depois - completa Noronha; a Emenda 29 acabaria fixando que o piso de investimento da União em Saúde seria baseado na variação do PIB nominal. - Mas, mesmo se fossem aplicados os 30%, iríamos de US$ 1 mil para US$ 1,2 mil per capita por ano gasto em saúde, quando esse valor é de US$ 3,4 mil no Reino Unido, por exemplo. Além disso, o percentual de gasto público desse total per capita é cerca de 40%; em outros países, é 80%.
Mesmo subfinanciado, o SUS continua sendo a única política universal na área de Seguridade.
- Foi criado o capítulo da ordem social, com o orçamento próprio da Seguridade e essas três áreas: Saúde, Previdência e Assistência Social - diz a professora da Ebape/FGV Sonia Fleury, que na Constituinte assessorou a elaboração desse capítulo. - Mas esses três poderiam ter gestão mais integrada, a base de dados dos programas de renda poderia melhorar a distribuição de remédios, por exemplo.
Professora do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, Ligia Bahia destaca que o tratamento contra Aids teve sucesso no país graças ao SUS:
- Podíamos ter tido epidemia africana. Com o SUS foi possível saber quem tomava o remédio, o que mudar, quebrar patentes. Hemodiálise e medicamentos excepcionais também foram universalizados. E, antes do SUS, sangue era vendido, muitos pegavam hepatite - diz Ligia, que crê ser possível universalizar o tratamento de alguns cânceres.
Eu não tinha esperança que ele voltasse a ouvir. Mas eu acreditei e busquei"
Foi pelo SUS que Yago Bueno Lomba colocou um ouvido biônico, após ter ficado surdo por causa de meningite aos 5 anos. A cirurgia, em 2010, foi a primeira do tipo no Rio, no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da UFRJ.
- Ele já não falava direito, enrolava a voz - conta o padrasto, Sérgio Rodrigues, de Belford Roxo. - Hoje escuta, fala, joga videogame. Se não fosse no SUS, a gente não teria o implante, custa R$ 70 mil.
- Fizemos 72 implantes até agora. É um feixe de eletrodos que ligamos à cóclea (estrutura do ouvido interno) - diz Shiro Tomita, coordenador de Implante Coclear do hospital.
Ao nascer, Ana Sofia, hoje de 1 ano e meio, foi diagnosticada com estenose. Tinha de desobstruir a veia que oxigena sangue do pulmão ao coração.
- Estava pronto para vender a casa e pagar a cirurgia da minha filha - conta Francisco Uelison da Silva, professor na cidade de Cajazeiras (PB).
Francisco soube, porém, que o governo da Paraíba começava a implantar o projeto Círculo do Coração, que cuida das patologias congênitas cardíacas, e foi por ele que a menina fez a cirurgia. O projeto já operou 172 crianças, algumas na incubadora.
Problemas no atendimento de especialidades
A atenção de nível secundário no SUS - ou seja, consultas e exames de especialidades - é uma das principais áreas afetadas por falta de recursos, avalia Luis Eugênio de Souza, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
- A ampliação da atenção básica demanda ampliar também a especializada, mais cara. Senão, o médico pede exames que o paciente não faz depois - diz o presidente da Abrasco, que em outubro realiza congresso sobre gestão em saúde.
- As centrais de regulação também são importantes para organizar a atenção secundária - ressalta o médico sanitarista Sérgio Piola, consultor do Ipea. - Você tem de saber o tamanho da sua demanda, mesmo que ainda não consiga atendê-la.
Carmem Lúcia Marinho, de 43 anos, espera desde 2011 consulta com um neurologista. Com fortes dores de cabeça, procurou há dois anos o Pronto-Socorro Central Dr. Armando Sá Couto, unidade municipal em São Gonçalo. O clínico pediu uma tomografia. Ela descobriu um tumor na cabeça, "que é benigno, mas cresceu".
No Centro do Rio, no Hospital Federal dos Servidores do Estado, Aristeu Matos, de 72 anos, também espera. Com câncer de próstata diagnosticado há oito meses, estava na madrugada de quinta-feira passada pela terceira vez na fila do hospital:
- O médico faltou nas outras vezes - conta o filho dele, Reginaldo, que teve de sair às 3h de casa, em Seropédica. - Agora, o médico disse que talvez tenha vaga só para daqui a dois meses.
Mesmo com todos os problemas, Sérgio Piola sublinha a importância de um sistema que "vai da vacina ao câncer":
- A atenção primária avançou nesses 25 anos. Em 1996, 32% da gestantes em áreas rurais nunca tinham feito pré-natal; esse número em 2006 já tinha ido para menos de 3,6%. A cobertura do Programa Saúde da Família hoje é de 54%. O Samu, que começou em 2003, hoje está em cerca de 2,5 mil cidades - diz Piola.
Os transplantes também avançaram. Chefe da Nefrologia do Hospital Pedro Ernesto, no Rio, José Suassuna lembra que essa universalização foi possível graças ao SUS. Semana passada, ele, o chefe da Urologia, Ronaldo Damião, e o médico Danillo Souza realizaram um raro transplante duplo de rim em um jovem de 17 anos:
- Desse tipo, foi o 1º do hospital, que faz transplante desde 1975 - diz Suassuna. - Mesmo após transplante feito por plano privado, o tratamento é pelo SUS.
O uso do SUS por planos faz com que devam ressarcimento ao sistema. O que poderia aumentar a verba para o setor: segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar, em 2012 foram para dívida ativa R$ 110,26 milhões de débitos de planos. Outra tentativa de aumentar a verba foi a CPMF, extinta em 2008 e cuja arrecadação, porém, acabou não indo para a área.
Fonte: O Globo