sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Fernando Gabeira - A realidade depois da festa

- O Estado de S. Paulo

Chegada simbólica da vacina é uma esperança num país onde se morre afogado no seco

Às vezes é preciso tomar uma certa distância para entender o que se passa no Brasil. Não por esnobismo, mas pelo esforço se aproximar da realidade.

Não creio que se tenha festejado tanto a chegada da vacina em outros países do mundo. Certamente, nenhuma outra agência reguladora transmitiu sua análise das vacinas ao vivo. E em nenhum país o presidente da República se sentiu derrotado e, num ato falho, no dia seguinte disse: “Apesar da vacina”…

Tudo indica que foi vencida uma etapa do negacionismo. Mas em que contexto? Os casos de coronavírus continuam crescendo no País. Mais cidades podem ter dificuldade de suprir hospitais com oxigênio. Algumas nem têm hospitais, só pacientes com falta de ar.

A celebração da chegada das vacinas precisa ser confrontada com a necessidade mais ampla do País. Foram apenas 6 milhões de doses. Talvez possam ser ampliadas para pouco mais de 10 milhões, acrescidas das que serão envasadas pelo Butantan. Mas um programa de vacinação com o nível de eficácia das vacinas que temos terá de alcançar, no mínimo, 150 milhões de pessoas, o que significaria 300 milhões de doses. Como as conseguiremos, em que prazos?

Parece-me que no início o Estado de São Paulo negociou vacinas para a sua população. A ideia de alcançar o País inteiro surgiu depois, com a própria luta política e a falta de alternativas do governo negacionista.

Dependemos hoje da China e da Índia para os insumos necessários chegarem ao País e serem manejados por Butantan e Fiocruz. Um processo de vacinação de grande amplitude depende de planejamento, disciplina e continuidade, não se esgota nas fotos.

China e Índia têm, juntas, quase 3 bilhões de habitantes. Ambas iniciaram o processo de vacinação interno. A Índia quer começar com 300 milhões de vacinados, logo, vai precisar de 600 milhões de doses. Como esperar um fluxo permanente e seguro desses dois países?

Merval Pereira - O país do privilégio

- O Globo

Nada mais ignominioso do que as notícias que pipocam dando conta de que em diversos estados brasileiros está havendo fraude na vacinação contra a COVID-19. Pessoas que não fazem parte da primeira leva dos grupos de risco furam a fila para garantirem para si ou familiares o privilégio de serem vacinadas, numa pandemia que testa a nossa solidariedade como humanos e que depende da atitude de cada um para que o conjunto dos cidadãos possa sobreviver à crise sanitária.

No Brasil fragilizado pela desorganização de um governo incompetente, que deveria ser responsabilizado pelo retardamento do programa de imunização nacional, há alguns muitos mais iguais que os outros. O atraso na chegada das vacinas e dos insumos, devido a problemas causados por uma política externa nula, e uma ação descoordenada do ministério da Saúde entregue a um General que nem sabia o que era o SUS quando assumiu,  cada dia cobra o pedágio em mais de mil vidas, e é esse número alarmante de mais de 200 mil mortes que deveria fazer com que o governo fosse culpado pela negligência no trato da pandemia e os “espertos” de sempre fossem punidos vigorosamente.

O Ministério Público está investigando casos acontecidos em pelo menos sete estados, em que o privilégio foi concedido a filhos, amigos, parentes de autoridades locais, sem falar nos prefeitos que furam a fila afirmando que estão dando o exemplo. Com o número ínfimo de doses de vacina enviado para cada município, a valorização  do imunizante fez com que se criasse um criminoso mercado paralelo de prestígio, e logo veremos denúncias de pessoas que subornaram para serem vacinadas à frente das que estão na lista de prioridades.

Dora Kramer - A hora H

- Revista Veja

A situação de adversidade em todos os campos, com destaque para a saúde pública e o isolamento político, foi construída por Bolsonaro com as próprias mãos

Junte-se o mal-estar do presidente da República na presença da vacina contra o vírus com a falta de auxílio de emergência aos pobres, acrescente-se a inépcia do poder público para atender à necessidade da população, adicione-se um robusto passivo de atos passíveis de enquadramento no rol dos crimes de responsabilidade e teremos a receita de um governo em apuros.

Se o dia D ocorrerá em outubro de 2022 ou se será antecipado por impedimento constitucional é uma questão em aberto. Certo, porém, é que a hora H chegou para Jair Bolsonaro como um momento de decisão definidor de seu destino. A situação de adversidade extrema em todos os campos, com destaque para a saúde pública e o isolamento político, foi construída por Bolsonaro com as próprias mãos.

Sendo ele o engenheiro da obra, é também o responsável por decidir se investe na desconstrução da arapuca em que se enfiou ou se insiste na destruição de suas condições obje­ti­vas e subjetivas para governar. O presidente teve inúmeras oportunidades de se recompor, mas optou por queimar cartuchos de maneira inútil e, sobretudo, imprudente.

Uma ocasião em particular serviria para ele de exemplo de como uma atuação positiva em relação ao coletivo rende dividendos naquilo que o interessa, a boa vontade do eleitorado: a proposição do auxílio emergencial de 600 reais quando o Congresso contrapôs 500 reais à sugestão original de 200 reais.

Os beneficiários se esqueceram da iniciativa parlamentar, puseram a ajuda na conta do presidente, que viu sua avaliação positiva crescer substancialmente num eleitorado que não o havia levado ao Planalto. O resultado teria sido adverso se Bolsonaro tivesse cedido ao hábito de brigar com a realidade e decidido confrontar deputados e senadores.

Murillo de Aragão -A construção de nossa democracia

- Revista Veja

O consensualismo que nos guia é o airbag de nossos entreveros

O momento e as circunstâncias podem levar muitos a pensar que a nossa democracia talvez não resista aos permanentes desafios que a testam. Desde a redemocratização, em 1986, foram situações-limite em sequência: a Constituinte e seus embates; a eleição e o impeachment de Fernando Collor; o Plano Real e as reformas da era FHC; a eleição de Lula; o mensalão; o impeachment de Dilma Rousseff; a Operação Lava-Jato; a vitória de Jair Bolsonaro; e, por último, a pandemia de Covid-19. Apesar de não faltarem crises nem desafios, a democracia resiste como opção e alternativa iluminista e civilizatória para a construção do país.

Essas situações-limite revelam disfunções estruturais óbvias. Nossos desejos de cidadania não cabem nas contas públicas. Nossos direitos constitucionais não são exercidos na plenitude. Mas a construção da democracia mostra a vocação de nossas instituições para buscar o equilíbrio nos embates políticos. Embora dilua o impacto das mudanças, o consensualismo é o airbag de nossos entreveros institucionais.

O Brasil foi forjado no colonialismo, no patrimonialismo, no escravagismo, no paternalismo, no voluntarismo, no personalismo e, mais recentemente, no burocratismo e no corporativismo. Todos esses “ismos” somam-se a uma estrutura patriarcal, autoritária e intervencionista. Sem uma vocação democrática, poderíamos ser algo politicamente parecido com a Rússia ou a China, mas com a desorganização típica dos latinos.

Luiz Carlos Azedo - Esquenta a disputa no Congresso

- Correio Braziliense

Tanto na Câmara quanto no Senado, Bolsonaro aposta alto e joga pesado, para garantir a sua governabilidade e, também, para avançar na sua agenda de reeleição

O PSL deixou, ontem, o bloco de apoio ao deputado Baleia Rossi (MDB-SP), candidato a presidente da Câmara, apoiado por Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual ocupante do cargo, para adensar a candidatura do líder do Centrão, Arthur Lira (AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. A mudança se deu porque quatro parlamentares trocaram de lado, formando uma nova maioria na bancada, com 19 dos 36 deputados.

Foi a mais bem-sucedida manobra de Lira para fortalecer sua candidatura estimulando as dissidências internas nos partidos que apoiam Baleia, que, até agora, vinha sendo pautada por declarações públicas. O presidente do PSL, deputado Luciano Bivar (PE), que apoia Rossi, mantém uma queda de braço com o presidente Jair Bolsonaro, que deixou a legenda logo após tomar posse. O grupo dissidente do PSL chegou a apresentar uma lista com 32 assinaturas pedindo a saída do bloco de Baleia, mas dela constavam as assinaturas de 17 deputados bolsonaristas suspensos pelo partido em razão de divergências com Bivar e que não poderiam ser contabilizados.

Ricardo Noblat - Bolsonaro tem o ministro da Saúde que merece e escolheu

- Blog do Noblat | Veja

Pazuello, sequer, domina bem a arte da desfaçatez

Sabe quantos testes de Covid-19 foram aplicados no Brasil desde o início da pandemia, em março fará um ano? E a quantidade de medicamentos para qualquer tipo de doença que tem estocado?

Não sabe e não saberá tão cedo. O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) quis saber e valeu-se para isso da Lei de Acesso a tais informações que o governo Bolsonaro costuma desrespeitar.

O Ministério da Saúde respondeu ao pedido dizendo que as informações “se encontram em status reservado” porque poderiam “pôr em risco a vida, a segurança e a saúde da população”.

Outro argumento usado pelo ministério para dizer não a Valente: as informações requeridas por ele oferecem “elevado risco à estabilidade financeira, econômica ou monetária do país”.

Esperar o quê do ministério sob o comando de um general especialista em logística que já marcou e remarcou tantas vezes o que chamou de Dia D da vacinação em massa contra o vírus?

E que quando a vacinação começou havia poucas doses disponíveis que mal dariam para atender 4% da fatia dos brasileiros do grupo considerado prioritário?

O general Eduardo Pazuello sequer domina como Bolsonaro a arte da desfaçatez. Retirou, ontem, do ar o aplicativo que recomendava remédios sem eficácia contra a Covid, como a cloroquina.

Alegou que o sistema havia sido ativado “indevidamente” por um hacker e que a plataforma fora lançada como um projeto-piloto e não funcionava oficialmente, “apenas como um simulador”.

Mas como era assim, se foi ele, durante evento no último dia 13 em Manaus, quem lançou a plataforma em reunião com médicos e outras autoridades da área de saúde?

Claudia Safatle - Um país à deriva

- Valor Econômico

Como se fosse uma sina, aqui faz-se de tudo para dar errado

Há fortes indicações de que a recuperação em V foi curta, durou dois trimestres (terceiro e quarto trimestres de 2020) e perdeu fôlego. Um voo de galinha já bem conhecido dos brasileiros, animado pelo vigoroso programa de auxílio emergencial que beneficiou mais de 70 milhões de pessoas e que se encerrou em dezembro.

Segundo os prognósticos da economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Ibre/FGV, o cenário desenhado para este novo ano é ruim para o primeiro semestre, quando a atividade ainda estará em contração, mas melhora no segundo, de maneira que o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) encerraria o exercício em 3,5% - percentual insuficiente para repor a recessão estimada de 4,5% no ano passado. Como o carregamento estatístico responde por cerca de 2,5%, o efetivo crescimento este ano, segundo as previsões do Ibre, deverá ser de apenas 1%.

Tudo vai depender, porém, do sucesso (ou fracasso?) da vacinação contra a covid-19. Quanto mais incerta e demorada for, maior será a perda de PIB (Produto Interno Bruto). Os dados acima foram calculados com base em um processo de vacinação que envolveria grande parte da população no primeiro semestre. A partir do meio do ano, a situação seria de normalidade. As informações de atraso na obtenção do insumo necessário para a preparação das vacinas coloca mais dúvidas sobre o que poderá acontecer com o nível de atividade.

José de Souza Martins* - O desafio social da vacina

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

No Brasil, o caso será muito mais complicado do que em outros lugares: o país está sem liderança política

Teremos que sobreviver até que a aplicação das vacinas atinja o patamar social de proteção eficaz da sociedade inteira. A direção da Anvisa e os cientistas que expuseram o resultado de suas análises dos protocolos apresentados pelo Butantan e pela Fiocruz, para obter a autorização de uso emergencial das vacinas, alertaram enfaticamente que o início da vacinação impõe uma mudança no comportamento da sociedade para assegurar a eficácia da imunização.

A autorização de uso das duas vacinas - a do Butantan e a da Fiocruz - foi uma grande vitória da ciência brasileira, uma demonstração de competência e de responsabilidade social dos nossos cientistas. Foi, também, uma grande vitória científica e moral contra um senso comum pobre e impregnado de crendices e voluntarismos, à margem dos grandes valores da civilização, da ciência e da liberdade.

O confinamento se prolongará pelo mesmo tanto que já dura. Os que o têm violado terão que se conformar com a reversão de conduta, com a mudança de hábitos. A covid-19 encerra o período da história social dominado pelos valores da sociedade de consumo, da minimização da sobriedade da prudência. Todos terão que mudar para sobreviver e garantir a sobrevivência dos demais.

É mudar ou morrer e matar. A pandemia não ataca apenas o corpo das pessoas. Ataca também e, talvez sobretudo, a sociabilidade que as faz seres sociais.

Mudanças sociais têm sido comuns em situações de crises econômicas, políticas, de guerras e revoluções. Os costumes são corroídos pelas adversidades, pelas carências quase súbitas, pela cessação da legitimidade de valores sociais, pela privação de sentido para as condutas e orientações do costume.

Fernando Abrucio* - Não verás país nenhum com Bolsonaro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Seguindo essa toada, o Brasil aprofundará a sua crise e passará por uma longa travessia de pelo menos dois anos

O Brasil está à deriva e deverá passar por uma longa travessia até o fim do governo Bolsonaro, com provável piora de sua situação. Dois fatos levam a esta constatação. De um lado, a crise já era grave em 2018 e aprofundou-se nos últimos dois anos, numa proporção gigantesca. O país precisaria mudar muitas coisas, algo que só é possível com um diagnóstico preciso dos problemas, trabalho árduo de equipes bem preparadas e muito diálogo político e social. E aqui entra o outro lado do cenário atual: o presidente não está preparado para combinar essas qualidades. O pior é que praticamente não há chance de ele modificar seu estilo de governar.

Esmiuçando melhor este diagnóstico geral, cabe inicialmente mostrar o tamanho do buraco em que o país está. Há uma combinação de crise sanitária, estagnação econômica, aumento da desigualdade social, redução da legitimidade dos políticos junto aos cidadãos e uma piora gigantesca de políticas públicas essenciais. Parte desse processo foi uma herança deixada para o atual governo. Todavia, Bolsonaro não só não conseguiu avançar no combate desses problemas, como piorou a situação geral e trouxe novas dificuldades. Por este caminho, o Brasil estará pior daqui a dois anos, no fim de seu mandato.

A afirmação de que a manutenção do modelo bolsonarista empurrará todos ladeira abaixo precisa de melhor qualificação. Vamos aos fatos. Primeiro, Bolsonaro foi uma tragédia no combate à pandemia. Isso pode ser constatado pelo número absurdo de casos e mortes, inclusive em perspectiva comparada, bem como pelas medidas preconizadas e pelas lacunas governamentais. Nenhum governante mundial foi tão contundente na defesa do negacionismo. A vacinação demorará para ter impacto no Brasil e os próximos meses deverão de ser de crescimento da covid-19. Casos trágicos como o de Manaus poderão se repetir.

Eliane Cantanhêde - No mundo do jet ski

- O Estado de S. Paulo

Motivos para processo de impeachment há, o que não há são condições políticas e objetivas

Que o governo Jair Bolsonaro é um desastre nas mais variadas áreas, senão em todas, ninguém minimamente informado e conectado à realidade tem dúvida. Daí a imaginar que o impeachment está à vista é apenas um sonho de verão, ou de tempos de pandemia. Motivos há de sobra. O que falta são ambiente político e condições objetivas, por enquanto.

Como esquecer a reação do presidente quando o Brasil ultrapassou cinco mil mortes por covid-19: “E daí? Querem que faça o quê?”. Como esquecer a cena do presidente passeando de jet ski no dia em que o número de mortos passou de dez mil? A gota d’água é a falta de gotas de vacina. “Querem que eu faça o quê?” Que governe o País, garanta e defenda as vacinas, salve vidas.

Bolsonaro, porém, nunca deixou de passear no seu jet ski pela realidade virtual em que vive, feliz, todo sorrisos, fazendo campanha antecipada pela sua reeleição, em vez de fazer campanha imediata pela vacinação. Ultrapassa todos os limites de provocação, irresponsabilidade, falta de respeito e bom senso. E é o principal culpado por trazer de volta a palavra impeachment ao cotidiano nacional.

Pelo temor de a pandemia gerar processo de impeachment e descambar para crise social, política e institucional, o procurador-geral da República, Augusto Aras, deixou o País de prontidão com uma nota em que admite até estado de defesa, previsto pelo artigo 136 da Constituição para restringir liberdades individuais em cenários de caos.

Soou como ameaça, por vários motivos: Aras é aliado e se sente devedor do presidente, que o pinçou para a PGR fora da lista tríplice; Bolsonaro ultrapassa limites todo santo dia; a incúria do governo compromete a vacinação da população; o auxílio emergencial acabou e milhões ficarão na miséria, cara a cara com a fome. Logo, a hipótese de impeachment não é mais absurda.

Reinaldo Azevedo - Se não agora, quando?

- Folha de S. Paulo

É preciso parar os homicidas em massa no Brasil com mobilização e com leis

O abismo em que se meteu o Brasil é tal que, no momento, estamos mais perto da eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara do que de obter dois terços na Casa —e depois no Senado— para impichar Jair Bolsonaro. Mesmo a investigação por crime comum, caso a PGR se movesse, só poderia avançar no STF com a autorização de ao menos 342 deputados. Não há.

A mobilização popular, eu sei, submete a história a acelerações em princípio improváveis. Mas se reconheçam as dificuldades. O país não pode ficar à espera. A degradação tem de parar. O Congresso precisa, por exemplo, aprovar a Lei de Defesa do Estado Democrático —PL 3.864, de autoria do deputado Paulo Teixeira (PT-SP).

A proposta foi elaborada por uma comissão de juristas liderada por Pedro Serrano e substitui a Lei de Segurança Nacional —que este inacreditável ministro André Mendonça, da Justiça, usa como arma para perseguir críticos de Bolsonaro. A democracia não pode ser tolerante com aqueles que recorrem a suas licenças para solapá-la. A lição é antiga. E, para a surpresa dos tontos, não tem origem na esquerda.

Bruno Boghossian – O guarda costas

- Folha de S. Paulo

Proteção oferecida por Aras a Bolsonaro é generosa até para os padrões de um aliado

Em fevereiro de 2018, o diretor da Polícia Federal disse que o inquérito sobre pagamento de propina a Michel Temer por empresas do porto de Santos seria arquivado. A investigação ainda corria, mas Fernando Segovia tentou livrar o presidente. A tentativa de blindagem pegou tão mal que, antes do fim do mês, o Planalto precisou demiti-lo.

O engavetamento precoce vendido por Segovia naquele caso não chega aos pés do habeas corpus preventivo que Augusto Aras ofereceu a Jair Bolsonaro na terça (19). Sem que ninguém perguntasse, o procurador-geral afirmou em nota que a responsabilização por “eventuais ilícitos” cometidos pela “cúpula dos Poderes” é de competência do Legislativo.

Na prática, Aras avisou que não pretende investigar Bolsonaro pela negligência do governo na pandemia. Para não se indispor com o presidente que o indicou para o cargo e que acenou publicamente com a possibilidade de nomeá-lo para o Supremo, o procurador pediu que os interessados nessa história batam à porta do Congresso.

A salvaguarda concedida a Bolsonaro é generosa até para os padrões de um aliado como Aras. O procurador-geral tentou dar uma cor unicamente política às acusações contra o presidente. Ignorou que há indícios de crimes comuns praticados pelo governo federal na omissão de socorro a Manaus e na sabotagem à vacinação contra a Covid-19.

Hélio Schwartsman - 'E pluribus unum'

- Folha de S. Paulo

Biden e a necessidade de unir os EUA

Em seu discurso de posse, Joe Biden enfatizou a necessidade de unir o país. Depois de quatro anos de cizânia sob Donald Trump, que deixou como saldo até uma canhestra tentativa de golpe, era natural que o novo presidente tentasse esse caminho, que não é estranho ao DNA dos Estados Unidos. Um dos motos do país, afinal, é “E pluribus unum” (de muitos, um).

Uma das mais interessantes questões da sociologia é a de saber o que transforma indivíduos heterogêneos num povo. Em tempos mais remotos, quando todos vivíamos em grupamentos de algumas dezenas de pessoas, quase todas aparentadas, era o próprio DNA que dava a liga. Mas, à medida que passamos a habitar comunidades maiores, o problema da unidade foi se impondo.

Uma resposta que ecoa até hoje é a de autores românticos do século 19, como Johann Gottlieb Fichte. Para eles, é o passado, consubstanciado em categorias como sangue, raça e língua, que forja a nação. É uma narrativa perigosamente essencialista, que, em suas piores manifestações, desaguou na mitologia nazista.

Ruy Castro - Carta de Bolsonaro a Biden foi lida às gargalhadas

- Folha de S. Paulo

Os americanos têm nos arquivos cada trumpice de Bolsonaro, por mais ínfima e secreta

Lisboa, no verão de 1975, devia ser a cidade mais excitante do mundo para um jornalista. Era o auge da Revolução dos Cravos, que, no ano anterior, derrubara uma ditadura de 48 anos. O governo do premiê Vasco Gonçalves, na prática comunista, estava sendo pressionado pela extrema esquerda a radicalizar e, com isso, deu-se um festival de tomada de empresas, ocupação de fábricas e nacionalização dos bancos. Dizia-se que Portugal sairia da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), liderada pelos EUA, e se juntaria ao Pacto de Varsóvia, dominado pela URSS.

Morando e trabalhando lá, fui ao Pabe, botequim dos correspondentes estrangeiros, encontrar um bem informado repórter americano. "Os russos não têm interesse em Portugal", ele disse. "Imagine um país comunista na Europa, de porta para o Atlântico! Isso só lhes traria problemas com os EUA. O que eles querem é Angola". Referia-se à ainda colônia portuguesa, às vésperas da independência depois de longa guerra contra a metrópole recém-encerrada pelo governo Vasco. "Assim que Angola ficar formalmente livre, os russos irão em busca de seu petróleo e deixarão Portugal falando sozinho", completou.

Rogério F. Werneck* - Compromisso com o erro

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Governo agride a China enquanto o Brasil se tornou crucialmente dependente de insumos chineses para a fabricação de vacinas

Entre as incontáveis deficiências do governo, uma lhe tem sido fatal. Faltam-lhe mecanismos eficazes de correção de erros. Bolsonaro é capaz de persistir meses a fio em linhas de ação equivocadas, ao arrepio dos seus melhores interesses, sem que isso deflagre as correções requeridas no seu processo decisório.

O Brasil levou 38 dias para reconhecer a vitória de Joe Biden, sem que houvesse, em Brasília, uma boa alma capaz de demover o presidente de tamanho despropósito. E, mesmo assim, o Planalto não se deu por satisfeito. Há não mais que 15 dias, ao comentar a brutal invasão do Capitólio, Bolsonaro se permitiu voltar a insinuar que a eleição presidencial nos EUA fora fraudada.

Pouco depois de Trump ter sido banido do Twitter, do Facebook e do Instagram, Bolsonaro saiu do seu caminho para aconselhar seus milhões de seguidores a passar a usar aplicativo alternativo, mais tolerante com a proliferação de fake news e a pregação da violência, em linha com o que já vinham disseminando as piores hostes trumpistas.

Flávia Oliveira - Quem dera o Brasil da carta

- O Globo

Nas três páginas endereçadas a Biden, Bolsonaro se autoproclamou defensor da democracia

Acontecimento marcante do alvorecer da terceira década do século XXI, a posse de Joe Biden, 46º presidente americano, e de Kamala Harris, primeira mulher, pessoa negra e descendente de asiáticos na Vice-Presidência dos EUA, foi brisa na face dos que creem na democracia e na diversidade. Os Estados Unidos — polarizados, mas no voto — negaram a Donald Trump o segundo mandato, numa rejeição robusta ao projeto de poder fundamentado em ódio, mentira, racismo, enfraquecimento das instituições. Emerge na nação mais rica do planeta a promessa de um governo comprometido com direitos, equidade, verdade, preservação ambiental, confiança na ciência, união — esta última, a palavra mais citada pelo eleito na posse, em 20 de janeiro, também dia do padroeiro da cidade do Rio de Janeiro.

A cerimônia em Washington, num Capitólio restituído de simbolismo após ser profanado, duas semanas antes, pelo ataque de supremacistas brancos pró-Trump, foi amostra do que pode vir a ser o país reunificado pela dupla diversa em gênero, raça e idade içada ao topo da política. Biden e Kamala ofereceram uma celebração com bênçãos de padre e reverendo; Lady Gaga, ativista pelos direitos dos LGBTQIs, interpretando o Hino Nacional; Jennifer Lopez, popstar de origem latina, cantando; Amanda Gorman, uma poeta negra de 22 anos, declamando versos compostos para a ocasião. Californiana como a vice-presidente, criada pela mãe professora, a jovem graduada em sociologia por Harvard anunciou a intenção de se candidatar à Casa Branca em 2036. Em entrevista ao “Los Angeles Times”, numa evidência de que #representatividadeimporta, não escondeu a inspiração:

Míriam Leitão - O ministro dos conflitos exteriores

- O Globo

 ‘Alívio’ era a palavra que se ouvia ontem na Fiocruz pela notícia de que a Índia embarcará hoje para o Brasil o lote de dois milhões de doses. Também nesta sexta-feira a Anvisa deve liberar as 4,8 milhões de doses a mais da CoronaVac. Isso não apaga os erros do ministro Ernesto Araújo, que nos levou a uma situação surreal, em que a diplomacia bloqueia os canais, apesar de ela existir para limpar os caminhos. As agressões à China foram muitas, azedou o diálogo, e o preço a pagar por esse erro é em vidas humanas.

Até o ex-presidente Michel Temer se mobilizou ontem para falar com autoridades chinesas. O ministro da Saúde falou com o embaixador e depois disse que não havia problemas diplomáticos. Segundo ele, é a burocracia que explica a demora do envio do IFA. Ora, o embaixador não iria admitir que os problemas são “diplomáticos”. O pretexto é sempre outro. Evidentemente os expedientes burocráticos podem ser mais rápidos ou mais lentos dependendo do contexto.

O fato em si de estarem tantas autoridades tentando fazer diplomacia — Michel Temer, Hamilton Mourão, Tereza Cristina, Rodrigo Maia — é o atestado do colapso da diplomacia de Ernesto Araújo. Neste caso, a demissão dele seria até um passo óbvio. Se o ministro, em vez de fazer seu trabalho, cria impasses e conflitos que outros têm que resolver, não deveria ficar no cargo até por uma razão prática.

Nelson Motta - Diplomacia de coices

- O Globo

Servilismo a Trump só gerou ganhos para os EUA e perdas para o Brasil

Diplomacia bolsonarista é um oximoro, uma contradição em termos; são incompatíveis, ou é um ou outro. O Brasil está pagando caro por sua diplomacia de coices e caneladas, que contraria até os princípios básicos da função diplomática. O servilismo a Trump só gerou ganhos para os Estados Unidos e perdas para o Brasil. As bravatas de Eduardo Bolsonaro, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara (!), ofenderam a China, prejudicaram as relações com nosso maior parceiro comercial e dono da matéria-prima das vacinas de que precisamos. Por nada, por exibicionismo e irresponsabilidade.

Esculachar a primeira-dama da França não contribuiu para mudar as ideias de Macron sobre a Amazônia e ganhar a sua boa vontade; hoje ele comanda uma campanha contra a soja brasileira e a nossa entrada na OCDE.

Quando Bolsonaro apoiou Trump e disse que as eleições lá foram fraudadas, só ganhou a má vontade e o antagonismo do governo Biden. Nosso chanceler disse ao embaixador da Índia que eles eram privilegiados por vender vacinas ao Brasil e teve que enfrentar uma fila, indiana naturalmente, só levou dois milhões de doses.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Aras contraria função constitucional do MP durante a pandemia – O Globo / Opinião

Procurador-geral lava as mãos diante da leniência de autoridades e ainda faz alerta antidemocrático

É no mínimo espantosa a nota divulgada pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, sugerindo que o presidente Jair Bolsonaro poderia decretar o estado de defesa, já que o decreto legislativo de 20 de março de 2020 reconheceu, em virtude da pandemia, estado de calamidade pública no Brasil. Esta seria, para ele, uma “antessala” do estado de defesa, que autoriza supressão de direitos. Os constituintes que deram poderes ao Ministério Público na Carta de 1988, para que de forma independente representasse os interesses da sociedade, jamais imaginariam que um dia o procurador-geral da República pudesse fazer ameaças antidemocráticas.

Aras afirmou ainda que “eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes públicos da cúpula dos poderes da República são da competência do Legislativo”. É verdade que cabe ao Congresso abrir processos de impeachment, em caso de crimes de responsabilidade. Mas Aras ignora de modo flagrante um papel cardeal da PGR: investigar e denunciar crimes comuns cometidos pelo Executivo.

Música | Teresa Cristina - Liberdade

 

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Amor e seu Tempo

Amor é privilégio de maduros
Estendidos na mais estreita cama,
Que se torna a mais larga e mais relvosa,
Roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
O prêmio subterrâneo e coruscante,
Leitura de relâmpago cifrado,
Que, decifrado, nada mais existe

Valendo a pena e o preço do terrestre,
Salvo o minuto de ouro no relógio
Minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
Depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida. Amor começa tarde.