domingo, 19 de junho de 2022

Luiz Sérgio Henriques*: A esquerda entre a História e a política

O Estado de S. Paulo

Com toda a certeza, uma frente unicamente de esquerda não bastará para reconstruir o País a partir de janeiro, em caso de vitória.

O debate sobre frentes e alianças, que compõe a rotina da política nos momentos de relativa calmaria, acende-se verdadeiramente nas situações em que se percebem ameaças existenciais à convivência civil e à natureza democrática dos Estados, como é evidente no caso brasileiro, e não só nele. Já existe, a propósito, um amplo inventário de exemplos clássicos que de certa forma nos assediam teimosamente quando buscamos parâmetros e termos de comparação. Examinemos um deles.

Weimar e a corrosão da sua república estiveram, há um século, no cerne da vaga reacionária que levaria ao nazismo. A cisão na esquerda – a partir dos anos 1920, dilacerada entre o “reformismo” social-democrata e o “revolucionarismo” bolchevique – abriria as portas para o nacional-socialismo. Do ponto de vista dos comunistas, os social-democratas não passavam de linha auxiliar da extrema-direita. Eram, pura e simplesmente, “social-fascistas”, ainda piores do que os adeptos declarados do nazismo.

A catástrofe que se evidenciaria depois produziu uma reviravolta na política de alianças. Desta vez, a precisa definição do adversário comum permitiu agregar em frentes populares não só os “irmãos inimigos”, socialistas e comunistas, como também uma ampla gama de liberais e democratas. Uma operação virtuosa, que levaria à extraordinária luta comum contra o nazifascismo. Mas, convenhamos, não tinha virtude alguma o fato de o comunismo no poder não se abrir aos ventos democratizantes advindos da frente, instalando assim a contradição grave: uma clarividente política de alianças “para fora”, uma repressão ensandecida “para dentro”, como nos processos de Moscou e demais crimes do comunismo stalinista.

Merval Pereira: Os militares na política

O Globo

A crise institucional que se prenuncia com a disputa entre as Forças Armadas e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em torno das urnas eletrônicas, e do Supremo Tribunal Federal (STF) é o tema central de artigos da edição recente da Revista Insight Inteligência. O de Christian Lynch, professor de Pensamento Político Brasileiro do IESP - UERJ analisa o espectro do poder moderador no debate político republicano, disputado hoje pelos militares e judiciário. O outro, de Wallace da Silva Mello, professor da UENF, discute as influências do intervencionismo militar em nossa história: positivismo, autoritarismo e culturalismo conservador.

Lynch investiga as origens da disputa entre magistrados e militares em torno da herança do antigo poder moderador imperial, “ora interpretada por uma perspectiva liberal, judiciarista e normativista, ora por outra, autoritária, militarista e excepcionalista”.  Baseada nessa doutrina judiciarista, se ancoraria a pretensão dos atores judiciários de tutelar a República contra sua classe política corrompida na década de 2010. E seria em nome da doutrina militarista do “poder moderador” que as Forças Armadas interviriam em nome da segurança nacional até a década de 1980, ameaçando fazê-lo novamente trinta anos depois”.

Bruno Boghossian: Matemática da rejeição

Folha de S. Paulo

Só 5% dos entrevistados disseram ao Datafolha que não votam nem no petista nem no atual presidente

Os números da rejeição são um fator determinante no processo de afunilamento da corrida eleitoral entre Lula e Jair Bolsonaro. Na última pesquisa do Datafolha, 82% dos entrevistados disseram rejeitar um dos dois candidatos no primeiro turno. O índice poderia ser um sinal de que o eleitor está em busca de nomes alternativos, mas não é bem assim: só 5% afirmaram que não votam nem no petista nem no atual presidente.

Aos poucos, a eleição se configura como um duelo de torcidas relativamente consolidado. Uma fatia de 76% dos eleitores que rejeitam Bolsonaro declara voto em Lula. Entre os entrevistados que descartam o petista, 69% pretendem ir com o atual presidente no primeiro turno.

Bernardo Mello Franco: O Evangelho segundo Jair

O Globo

Em desvantagem nas pesquisas, Jair Bolsonaro decidiu reforçar a apelo ao voto religioso. Na última semana, o capitão teve cinco encontros com evangélicos. Visitou templo em Orlando, participou de evento gospel no Rio, recebeu pastores em Brasília e discursou em dois cultos em Belém. Ontem repetiria a dose num congresso bíblico em Manaus.

A primeira parada foi na Lagoinha Church da Flórida, comandada pelo pastor e cantor André Valadão. De camiseta Prada e relógio Rolex, ele se arriscou como animador eleitoral. Incentivou a plateia a “fazer barulho” e dar um “grito de alegria” em homenagem ao “nosso presidente”.

Empolgado com a recepção grifada, Bolsonaro desafiou uma lei básica da ciência. “Podemos até viver sem oxigênio, mas jamais sem liberdade”, enrolou-se. A TV Brasil interrompeu a programação para transmitir o falatório. Numa tentativa de driblar a lei eleitoral, apresentou o ato de campanha como um “encontro com a comunidade brasileira”.

Dorrit Harazim: A agenda do caos bolsonarista se encurta

O Globo

Já é fato que a eleição presidencial de outubro próximo será a mais decisiva para o Brasil tal qual o conhecemos. Também já é dada como fato a intenção bolsonarista de tumultuar o resultado caso este se revele desfavorável à reeleição do chefe. A novidade está no agendamento do caos, cuja régua encurta em proporção inversa à autofagia democrática de Jair Bolsonaro. De início, dada a blitzkrieg do governo demonizando o voto eletrônico, o temor de um descarrilhamento à força concentrou-se no que poderá ocorrer em outubro, mês do primeiro e segundo turnos da votação. Todas as pesquisas de opinião iniciais sugeriam que o vencedor só seria conhecido no segundo turno — com derrota infalível do capitão, fosse quem fosse seu adversário. Portanto uma tentativa de obstrução institucional parecia ter data marcada: a partir do domingo 30 de outubro. De uns tempos para cá, porém, algumas pesquisas têm sugerido a possibilidade de vitória do candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva já no primeiro turno ou têm apontado para o aumento da distância entre Lula e Jair. De pronto, a retórica golpista do presidente também deu uma acelerada no tempo, movendo sua “miliciância” (fusão ideológica de milícia + militância armada) a tumultuar a partir do 2 de outubro.

Elio Gaspari: O século em que o Brasil atolou

O Globo / Folha de S. Paulo

O inglês foi aconselhado a não deixar o barco, pois os traficantes ofereciam uma recompensa a quem o esfaqueasse. Vale do Javari em 2022? Não, Salvador, 1843. Não se sabe se o comandante Hoare, do navio Dolphin, desembarcou, mas ele era malvisto na região.

Chegou às livrarias o terceiro e último volume de “Escravidão”, de Laurentino Gomes. Vai “Da Independência à Lei Áurea”. Retrata o apogeu e declínio do regime escravocrata que sustentou o Império, amarrando o Brasil ao atraso. Até 1850, a elite nacional não só vivia às custas da escravidão, estava também associada ao contrabando de negros escravizados trazidos d’África. O tráfico negreiro fazia fortunas ofendendo as leis do país e os tratados internacionais firmados pelo Império. O Brasil era ao mesmo tempo o maior produtor de café do mundo e a maior nação negreira. D. Pedro I chamava a escravidão de “cancro” e em 1830 anunciou que o tráfico havia acabado. Era mentira. Seu filho não dava títulos nobiliárquicos aos traficantes, mas era só. O andar de cima e seu poder assentavam-se na escravidão e no contrabando. Em 1843, vendia-se no Rio um negro por vinte vezes o preço pago ao comprá-lo na África. Até 1850, chegaram ao Brasil pelo menos 700 mil africanos escravizados. O tráfico era ilegal, mas Manoel Pinto da Fonseca, responsável por um terço dos desembarques clandestinos, jogava cartas com o chefe de polícia do Rio.

Míriam Leitão: Bruno na saga do voto indígena

O Globo

O helicóptero black hawk do Exército estava ao fundo. Na frente dele, a juíza e a procuradora eleitorais de Atalaia do Norte, militares, alguns servidores, um líder indígena e, um pouco atrás dele, o indigenista Bruno Pereira. Em primeiro plano, caixas com urnas eletrônicas e a inscrição “Justiça Eleitoral”. Era a eleição de 2014 e eles comemoravam um feito. Pela primeira vez haveria seções eleitorais dentro da Terra Indígena Vale do Javari. Para isso haviam trabalhado duro a juíza Bárbara Folhadela, Bruno Pereira e lideranças indígenas. O Exército entrou na parte decisiva. De helicóptero, os militares levaram as urnas às aldeias mais distantes. Para as outras, as urnas foram de barco.

Poucos anos nos separam dessa foto tirada no aeroporto de Tabatinga. Hoje, o presidente da República ataca a urna eletrônica e a Justiça Eleitoral, militares em posição de poder demonstram apoiá-lo, os indígenas nunca estiveram tão ameaçados, e Bruno está morto. Aquele Brasil que une Justiça Eleitoral, militares, urna eletrônica, indígenas e Funai parece distante.

Janio de Freitas: As teias que infestam a Amazônia

Folha de S. Paulo

Fim trágico de Bruno Pereira e Dom Phillips é um êxito para Bolsonaro

fim trágico de Bruno Araujo Pereira e Dom Phillips é um êxito para Jair Bolsonaro. Com a morte de dois inimigos, um êxito a mais no colar dos êxitos de destruição, peça a peça, da pequena estrutura de proteção humana e segurança territorial havida na Amazônia.

O êxito não é só de Bolsonaro. A pressa com que a Polícia Federal comunicou não haver mandante nem organização criminosa nos dois assassinatos —menos de 48 horas depois de levada aos restos mortais— sinaliza necessidade de fazê-lo.

E faz parte, com pretensões a ponto final, da conjugação de anormalidades que começa na demora e segue na busca tergiversante. Condutas próprias, no entanto, da nova realidade.

Amazônia está sob uma construção extensa e minuciosa. É uma teia de criminalidades diferentes que tomou o domínio de grandes áreas e é subsidiária de outra teia. Esta penetra nas instituições do Estado e de governo, em especial no sistema de segurança.

O acintoso assassinato de Chico Mendes já denunciava perda de controle sobre a criminalidade contra a preservação natural. Era o 1988 da Constituinte democratizante, quando o general Leônidas Pires Gonçalves levou aos constituintes a exigência dos militares —de fato, exigência do Exército— de que fosse acrescentada, na "segurança externa" atribuída às Forças Armadas, a expressão "e interna".

Gaudêncio Torquato*: O Brasil bandido

Folha de S. Paulo

Violência suga a vitamina da vida, a alegria de viver

morte de Bruno Pereira e Dom Phillips afunda de vez a imagem do Brasil na esfera internacional. Uma crueldade. Barbarismo. Ausência do Estado na região amazônica. Um país campeão de violência. E uma pregação irresponsável do maior dirigente do país, que atribui a culpa das mortes às próprias vítimas. "O que estavam fazendo lá?" "O jornalista era malvisto na área." Quanta insanidade!

Antes de o leitor terminar de ler este segundo parágrafo, dois cidadãos estão tombando ou sendo assaltados nos vastos espaços do território nacional, vítimas da bandidagem. De 5 doentes que baixam nos hospitais brasileiros, pelo menos 1 é vítima de uma "guerra civil" que mata por ano mais de 58 mil brasileiros (em 2018, registraram-se 57.956 homicídios; nos EUA, em 2020, primeiro ano da pandemia de Covid-19, ocorreram 19.350 homicídios por arma de fogo). O Brasil é campeão.

Muniz Sodré*: Caminhos da alucinação

Folha de S. Paulo

Na conjuntura atual, alucinação equivale à percepção a-histórica dos acontecimentos

Uma hipótese considerável é a de que uma parcela cada vez maior de comportamentos públicos seja guiada por orientações situadas entre a alucinação e o fato.

Isso tem sido recorrente sob o atual estado de coisas. Mas uma demonstração analiticamente exemplar foi dada no ato de pré-campanha do ex-ministro da Saúde e general da reserva Eduardo Pazuello, num restaurante da Zona Oeste do Rio.

Ali se registrou aquilo que o olhar da semiologia poderia caracterizar como uma semiose "fuzzy": um entrecruzamento de sinais trocados, mas aceitos como discurso coerente sobre a factualidade.

Primeiro, uma seriação musical constante de hino nacional, Pai-Nosso religioso e trilha de "Tropa de Elite". Até aí, um laivo de coerência, uma vez que o candidato a deputado federal, empenhado num projeto de "formação da base política da direita conservadora contra o ativismo político e judicial", define o seu verdadeiro status: "Eu sou da tropa que o presidente vai ter para 2022".

Cacá Diegues: Sob árvores frondosas

O Globo

O assassinato de bruno e dom é um barbarismo num mundo que preza ou diz prezar o gesto civilizado

Bem que eu queria escrever sobre outro assunto qualquer, preferia que nada disso tivesse acontecido, muito menos na Amazônia. Mas não dá. O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips chocou o Brasil e o mundo, a morte deles no Vale do Javari é o único assunto que hoje interessa a todos nós. Por motivos distintos, mas sem exceção.

Primeiro porque se trata de um barbarismo, num mundo que, mesmo cheio de guerras e escândalos morais, preza ou diz prezar o gesto civilizado. Depois porque a gente tem sempre a esperança de que essas coisas não aconteçam mais no Brasil, qualquer que seja o lado pelo qual pelejamos politicamente.

Apesar de tanta barbaridade visível a olho nu, nosso presidente entregou discretamente a Deus o julgamento do caso. É como se ele reconhecesse que nossos esforços para que o Brasil se torne uma nação são inúteis, enquanto tira uma soneca sob árvores frondosas. Na TV, o vi de péssimo humor responder a Dom que a Amazônia é brasileira e, por ser inglês, o jornalista não tinha nada que se meter no assunto. O Brasil dói no peito, diz Cora Ronai. Ou Alessandra, viúva de Dom, ao ter a confirmação da morte do marido: “hoje se inicia nossa jornada em busca de justiça”.

Cristovam Buarque*: Farrapo moral

Blog do Noblat / Metrópoles

Os assassinos não precisavam de ordem direta, ela estava dada pelo clima social criado por um governo que incentiva o crime contra a mídia

Raros assassinatos políticos recebem ordem direta de mandante, os assassinos agem motivados por clima moral criado pelos líderes. Tiram a vida de pessoas por acreditarem que elas são inimigas de uma causa. Bolsonaro não deu ordem para que os irmãos Amarildo da Costa e Oseney da Costa assassinassem Dom Phillips e Bruno Pereira, mas criou o clima moral para que eles tomassem a iniciativa de matar as vítimas, esquartejar seus corpos, carbonizar seus restos e enterrar as partes. Eles não esperaram ordem direta, mas a mente de cada um foi forjada nas falas e agressões feitas ao longo de meses por Jair Bolsonaro.

Olhavam para Dom Phillips com o mesmo pensamento que Bolsonaro havia explicitado diretamente ao jornalista britânico, em reunião transmitida pela televisão: “A Amazônia não é de vocês (estrangeiros), é nossa”. Avisando para não se meterem nos nossos assuntos de queimada de florestas, poluição de rios, pesca insustentável, derrubada de árvores. Ao usarem suas armas, os irmãos viam Dom como um invasor estrangeiro, e Bruno como cúmplice traidor da pátria. Além de invasor e cúmplice, os dois eram inimigos dos pescadores, dos garimpeiros, dos madeireiros, daqueles que desejam o progresso.

Celso Lafer*: Os refugiados e a Acnur

O Estado de S. Paulo

No respaldo à atuação da agência, Brasil está em consonância com os princípios que regem suas relações internacionais.

Os refugiados e o drama da precariedade da sua situação são um dos grandes temas da vida mundial. É impactante a escala numérica dos que se encontram nesta condição. Estima-se que neste ano 100 milhões de pessoas precisam de amparo, que não encontram no âmbito interno dos seus Estados.

A palavra refúgio, do latim refugium, abrigo, é, por si só, reveladora do seu significado. Indica os que, em razão de tensões e conflitos da vida internacional e nacional, precisam procurar abrigo fora de seu país para escapar de sérios perigos que enfrentam.

São perigos de perseguições que alcançam e discriminam etnias, religiões, povos, grupos sociais e políticos. Perigos à vida, que resultam de conflitos armados, como na Síria, no Afeganistão, na Ucrânia. Perigos originários de desastres ecológicos. Na nossa vizinhança, a situação da Venezuela vem levando a um fluxo de refugiados que procuram abrigo no Brasil.

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Editoriais

Recessão no radar

Folha de S. Paulo

Juro sobe pelo mundo para deter preços; no Brasil, risco fiscal agrava o quadro

Com a inflação nas alturas em quase todo o mundo, os juros globais sobem em velocidade não vista em pelo menos três décadas. Em poucos dias, alguns dos principais bancos centrais elevaram agressivamente o custo do dinheiro, num sinal de que a era de taxas perto de zero nos países desenvolvidos pode de fato ter ficado para trás.

O americano Federal Reserve lidera o movimento. Pressionado pela aceleração dos preços nos Estados Unidos, que chegou a 8,6% em 12 meses, a instituição decidiu elevar a taxa básica de 1% para 1,75% ao ano, o maior salto em apenas uma reunião desde 1994.

Não se trata de um evento único. Ao contrário, os membros do Fed indicaram que pretendem continuar a subir os juros de modo contundente, para até 4% no primeiro semestre de 2023. A pressa decorre da percepção de que o descontrole inflacionário, se persistente, acabará por contaminar expectativas de longo prazo e salários.

Poesia | Ferreira Gullar: Agosto 1964

 

Música | Maria Bethânia: Tatuagem (Chico Buarque / Ruy Guerra)