quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Política, festa e roda-viva

Tentarei explicar o que percebi, talvez impropriamente, como uma gramática identitária regendo a investidura, marcantemente festiva, de Luiz Ignácio Lula da Silva no seu terceiro mandato presidencial. É um juízo impressionista. Decorre de um estado de alma que defino como alívio - pela derrota eleitoral da extrema-direita – mas desprovido de ânimo, efeito do êxito, político e moral, no campo democrático, de uma esquerda autorreferente, amarrada ao seu passado, que supõe, entre outras imodéstias, fazer o léxico identitário (de gênero, de raça, de cultura, de costumes) incidente no Brasil e em todo o Ocidente, servir a uma aventura - também identitária, mas de partido e movimento – através do túnel do tempo.

A impropriedade da minha parte talvez seja elevar esse ilusionismo semântico à categoria de gramática. A concessão traduz um sentimento de apreensão com a possibilidade de a esperteza política crescer demais, virar bicho, engolir o dono e todos os que amarramos nossos botes à deriva ao seu velho navio.

Incapaz de traduzir racionalmente esse sentimento nos limites de minhas palavras, apelo a Chico Buarque de Holanda, poeta dos maiores da nação, a grande ausente naquele woodstock de fragmentos:

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativa

No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega o destino pra lá

Expropriado por uma roda-viva: assim me senti no dia da posse. Aliás, assim me sentia desde que a dita transição arriou suas malas. Com vontade de embarcar num vapor barato, eu e uma obsessão política.

Luiz Carlos Azedo - Adeus reformas. Agenda possível é mais modesta

Correio Braziliense

1964 serve de exemplo para o governo Lula, que precisa adotar um programa democrático, porém, mais modesto do ponto de vista das reformas

O mais ambicioso programa de reformas de estrutura da história do Brasil foi o do presidente João Goulart (1961-1964), que havia assumido governo no lugar de Jânio Quadros, em meio a uma tentativa de golpe e graças a uma solução de compromisso: a adoção do parlamentarismo. Em razão das nossas desigualdades, no seu governo havia um cenário de radicalização político-ideológica e intensificação dos conflitos sociais.

Jango, como era chamado, sofria fortes pressões do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), principalmente de seu cunhado, Leonel Brizola, e de outras lideranças de esquerda, como o líder comunista Luís Carlos Prestes e Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, para realizar reformas estruturais na sociedade, entre as quais a agrária. Com a volta do presidencialismo, decidida por um plebiscito em 1963, Jango se sentiu fortalecido para levar adiante o projeto nacional-desenvolvimentista da esquerda brasileira.

Vera Magalhães - Os limites do revogaço

O Globo

Revisão de atos monocráticos de Bolsonaro é bem-vinda, mas não se confunde com a ideia equivocada de revisitar reformas aprovadas pelo Congresso e já em vigor

Os primeiros atos de Lula foram voltados para revogar decretos, portarias e resoluções de Jair Bolsonaro e seu governo que ele já havia anunciado largamente na campanha que anularia.

Liberação de armas e munições sem qualquer controle, sigilos de cem anos para proteger o ex-presidente e familiares, desmonte ambiental e medidas que atingiam de morte a inclusão de pessoas com deficiência entraram nesse pacote.

Todas essas medidas tinham em comum o aspecto ideológico que pautou sua edição e a forma arbitrária, sem discussão com a sociedade, o Congresso e as minorias atingidas pela sua adoção.

Portanto, o “revogaço”, e nos primeiros dias — como o então candidato anunciou na propaganda que faria —, deve ser saudado, porque significa começar a corrigir os retrocessos em marcos civilizatórios e de direitos que o Brasil viveu nos últimos quatro anos.

De outra natureza é a tentação de rever indiscriminadamente todas as medidas dos governos Michel Temer e Bolsonaro que tenham sido fruto de análise do Congresso Nacional e já tenham gerado consequências jurídicas e de investimentos depois de adotadas. E em poucos dias de governo são muitas as sinalizações de ministros de que pretendem enveredar por esse caminho que pode se mostrar desastroso.

Bernardo Mello Franco – O impasse dos quartéis

O Globo

Lula subiu a rampa, Bolsonaro fugiu para a Disney e seus seguidores continuaram nas portas dos quartéis. A permanência dos extremistas criou um problema para o novo governo. Se não for resolvido logo, poderá ganhar contornos de crise institucional.

Ao assumir o Ministério da Justiça, Flávio Dino prometeu investigar os responsáveis por atos contra o resultado das urnas. “O extremismo não deve ter lugar neste país”, afirmou. A 500 metros dali, o novo ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, preferiu apostar na acomodação. Afagou os bolsonaristas e classificou os acampamentos pró-golpe como “manifestações da democracia”.

Dino mandou a Polícia Federal apurar todas as tentativas de ruptura desde o segundo turno. Citou os bloqueios ilegais de rodovias e o quebra-quebra em Brasília no dia da diplomação do presidente. Acrescentou que praticar atos terroristas e incitar as Forças Armadas contra o poder civil são “crimes gravíssimos e imprescritíveis”. “A democracia tem o dever se se defender daqueles que querem destruí-la”, concluiu.

Alvaro Gribel - Tropeço inicial na economia

O Globo

Ainda que tenha recebido uma herança maldita de Bolsonaro, é fato que Lula começou mal na economia. Seu discurso de posse foi repleto de ideias ruins na área e ele apenas enfraqueceu o seu governo ao deixar Fernando Haddad exposto com a prorrogação da isenção dos combustíveis. Lula não tem nada a ganhar minando a credibilidade do seu ministro da Fazenda, que tem feito um enorme esforço para atender às demandas do próprio partido e, ao mesmo tempo, construir pontes com o mercado financeiro e o setor produtivo.

Lula defendeu que as estatais sejam indutoras do crescimento, conclamou o consumo popular para fazer “a roda da economia girar” e chamou de estupidez o teto de gastos, sem que tenha indicado o que colocará no lugar. Também relembrou o malfadado PAC, sugeriu mudanças na reforma trabalhista e acusou Bolsonaro de ter dilapidado bancos e empresas estatais, o que não é verdade, ainda que tenha tentado. Ele foi impedido pela Lei das Estatais, justamente a legislação que alguns integrantes do PT defendem mudar, para que essas empresas voltem a ser ocupadas por indicados políticos.

Elio Gaspari - Lembrem-se do garçom Catalão

O Globo

A vitória produziu emoção, a derrota de 2016, perseguição

A terceira posse de Lula foi pura emoção. A cachorrinha Resistência subiu a rampa, Lula lembrou o golpe do impedimento de Dilma Rousseff e mostrou sua gratidão àqueles que acamparam em Curitiba, debaixo da sala onde esteve preso. Repetiu que governará para todos e, sobretudo, para o andar de baixo. Atento ao andar de cima, nomeou para o Ministério das Cidades o empresário Jader Barbalho Filho, irmão do governador paraense, Helder Barbalho.

A multidão na Praça dos Três Poderes foi coisa nunca vista, sobretudo pela alegria. Havia algo de épico nas cenas. Nada mais épico que a partida de Vasco da Gama para a Índia, e nada melhor que o poema de Luís de Camões para descrevê-la. Mesmo assim, ele colocou na cena do embarque da frota o Velho do Restelo dizendo:

Ó glória de mandar! Ó vã cobiça

Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

Na partida das naus de Lula 3.0, o PT deve se lembrar do fim do governo de Dilma 2.0. As multidões também iam às ruas, com o objetivo oposto. Dois anos depois, elas colocaram Jair Bolsonaro no Planalto e por pouco não o reelegeram no ano passado.

Bruno Boghossian – Bolsonaro ajudou Lula na largada

Folha de S. Paulo

Aliados dizem que novo governo precisa entregar ganhos além da reversão de políticas de Bolsonaro

Na montagem do governo Lula, o dirigente de um partido dizia que a herança de Jair Bolsonaro facilitaria a vida de alguns ministros. Quem fosse indicado para o Meio Ambiente, brincou esse político, já conseguiria um avanço se sobrevoasse uma queimada na Amazônia e lançasse um único copo d’água sobre o fogo.

A demolição de políticas públicas nos últimos anos deu um bônus ao novo presidente. As medidas assinadas por Lula e as plataformas apresentadas pelos ministros empossados permitiram que o governo, com certa euforia, tirasse proveito político dos primeiros dias de gestão.

Mariliz Pereira Jorge - A necessidade do óbvio

Folha de S. Paulo

Me parece óbvio que a formação de um ministério tão diverso foi um bom primeiro passo

"Permitam-me, como primeiro ato como ministro, dizer o óbvio, o óbvio que, no entanto, foi negado nos últimos quatro anos", disse o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, num dos trechos do discurso de sua posse. Ele se referia ao reconhecimento da existência e valorização de minorias marginalizadas no governo Bolsonaro.

Almeida está certo ao acenar a este público e ao mostrar a importância de reafirmar o óbvio. Por um tempo, não sei avaliar quanto, será necessário dizer o óbvio, o axiomático, o indubitável, o inequívoco, o insuspeito. Como país, precisamos devolver ao óbvio o seu lugar incontestável, resgatar valores, compromissos e avanços civilizatórios que passaram a ser negados ainda que nos parecessem indiscutíveis.

Fernando Exman - Freio de arrumação antes da primeira curva

Valor Econômico

Lula deve estabelecer estratégia para a agenda legislativa

O maquinista prudente, ao pressentir risco de descarrilamento logo à frente, puxa o freio e faz a arrumação. Está bem: é preciso ponderar que a jornada do trem “Lula 3” acaba de começar. Mas, possivelmente, é a manobra que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisará fazer para evitar que sua agenda legislativa sofra um acidente logo na primeira curva.

Espera-se uma definição em relação às pautas prioritárias. Poucas horas se passaram desde a posse, e integrantes do primeiro escalão já falam, sem constrangimento, em rediscutir as reformas trabalhista e previdenciária, além de travar as discussões da reforma administrativa enviada ao Congresso pelo governo anterior. Existem, porém, temas mais urgentes.

Lu Aiko Otta - Medidas impopulares serão inevitáveis

Valor Econômico

Ajuste fiscal, em qualquer horizonte de tempo, desagradará a grupos específicos e consumirá capital político

A turma do “deixa disso” já entrou em campo, mas a decisão de manter zerados os tributos federais sobre combustíveis emitiu sinais ruins em duas áreas centrais do governo: economia e meio ambiente. Primeiro, porque suspendeu a mais contundente iniciativa do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na direção do ajuste fiscal que pretende implementar ainda no primeiro trimestre do ano. Ele havia dito que a desoneração não seria prorrogada. Seriam R$ 52 bilhões a mais na arrecadação.

Segundo, porque essa medida estimula o consumo de combustíveis fósseis no momento em que o Brasil tenta se recolocar no mundo como uma potência ambiental. De bônus, o corte de tributos sobre a gasolina é uma medida que beneficia a classe média e desvia dos cofres públicos recursos que poderiam ser destinados às emergências sociais.

Tiago Cavalcanti* - Pesquisa auxilia políticas públicas

Valor Econômico

Pesquisa de qualidade em economia é uma importante ferramenta para auxiliar e avaliar as políticas públicas

No mês passado participei do 44º encontro da Sociedade Brasileira de Econometria, realizado em Fortaleza. Nos últimos 20 anos tenho participado muitas vezes desse congresso, que reúne economistas acadêmicos brasileiros e estrangeiros.

A qualidade do encontro com discussões especializadas só tem melhorado nos últimos anos. Os trabalhos apresentados têm qualidade semelhante aos que fazem parte dos melhores grandes congressos de economia no mundo. Há um número crescente de brasileiros estudando questões relevantes e importantes para políticas públicas.

A ideia de que a pesquisa acadêmica em economia não se conecta com a realidade fica longe de ser verdade. É uma visão equivocada de uma profissão dinâmica e criativa, que mudou bastante nos últimos anos e, pautada por evidências empíricas, é capaz de contribuir para o debate econômico e apoiar de forma robusta o desenho de políticas públicas.

Marcelo Godoy - Lula, a oposição e a sabedoria

O Estado de S. Paulo.

O Brasil permanece ‘longe demais da riqueza atingível e perto demais da pobreza corrigível’

Quando o socialista Sandro Pertini foi eleito presidente da Itália, em 1978, o jornalista Indro Montanelli desejou ao ex-partigiano que se tornaria o mais popular chefe de Estado italiano do pós-guerra: “Tenha a coragem de fazer as coisas que devem e podem ser feitas; a humildade de renunciar àquelas que devem, mas não podem e às que podem, mas não devem ser realizadas. E sabedoria para distinguir uma das outras”.

Retomava, assim, a famosa oração do teólogo protestante Reinhold Niebuhr, que foi lembrada por aqui pelo economista Roberto Campos, no último discurso que fez na Câmara, em 1999, quando se despedia do Parlamento, após 16 anos de mandatos consecutivos. Campos deixou aos colegas congressistas esses mesmos votos após reconhecer “o fracasso de uma geração em promover o desenvolvimento sustentável do Brasil”.

Nicolau da Rocha Cavalcanti - A aventura de não olhar só para si

O Estado de S. Paulo

O que devemos fazer para que, ao final do ano, possamos dizer muito honestamente: fizemos tudo o que podíamos fazer?

Uma das consequências fortes do Estado Democrático de Direito é o respeito à liberdade, com um corolário bem específico, o princípio da legalidade. “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, diz a Constituição. Dentro dos limites da lei, cada um vive como bem lhe aprouver, sem que ninguém possa recriminá-lo por suas escolhas. A dupla proposta deste artigo – não nos conformarmos com o que já fazemos pela coletividade e questionarmo-nos periodicamente sobre como podemos fazer mais – não é, portanto, nenhum juízo sobre o comportamento alheio. É simplesmente uma reflexão compartilhada, uma provocação.

No livro Minha História (2018), Michelle Obama narra uma inquietação que me parece admirável, exemplar. “Eu estava com 32 anos (...). Em nossos encontros no Zinfandel (um restaurante de Chicago), muitas vezes Barack e eu retomávamos a conversa que, de uma ou outra forma, mantínhamos por anos – como e onde cada um de nós poderia exercer impacto, fazer a diferença, qual seria a melhor maneira de empregar nosso tempo e nossas energias”.

Aylê-Salassié F. Quintão* - O lado sombrio da festa da posse

Sem encerrar o mandato presidencial, pelo qual tanto lutara entre os companheiros de caserna, no dia 17 de dezembro de 1969, morria o general Arthur da Costa e Silva.   Com o corpo ainda no necrotério, o 18 de setembro amanheceu com todo mundo preocupado e discutindo já quem o substituiria e, dentro do aparelho burocrático do Estado, quem sobreviveria no emprego. Era o assunto corrente, mesmo em se tratando de uma suposta e coesa ditadura militar.

No primeiro dia após a posse, em 1o de janeiro de 2023, do novo presidente da República, Luiz Ignácio Lula da Silva, o ex-operário, civil, já em estado de "paz e amor" tirou a manhã para receber os chefes de Estado, embaixadores e autoridades estrangeiras que vieram prestigiar a sua posse, durante a qual prometeu, enfaticamente, a volta dos empregos. Concomitante, entretanto, no Planalto e nos ministérios, o chamado "passaralho" fazia uma devassa na estrutura e na burocracia do Estado, gerando pânico entre chefes, chefetes e servidores, sobretudo entre aqueles que ocupavam cargos de confiança.

Confiar em quem agora?  Mudou o governo, mudam-se as estruturas políticas e administrativas, dirigentes e partidos de sustentação, revelando comportamentos cruéis, dignos de um Pantagruel, personagem glutão criado pelo escritor francês, François Rabelais (1494-1553). Visualizam na máquina do Estado milhares de demissões e, com elas, cargos vagos, para acomodar os cabos eleitorais, amigos e amantes. Seria isso uma das razões porque a gestão das políticas públicas são tão instáveis e inconsistentes. Cada novo governante, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, procura aparelhar e adaptar a administração do Estado ao seu gosto e, assim, o País patina pela história, sem sair do lugar: avança no final dos quatro anos e, quando tudo está configurado, retroage com a mudança de governo.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Lula não terá longa lua de mel antes das cobranças

O Globo

Com população impaciente, governo deve descer do palanque e arrumar a casa de forma rápida e eficiente

Passada a festa da posse, o governo Lula 3 inicia o difícil e urgente trabalho de reconstrução da máquina pública onde ela foi destruída na gestão Bolsonaro. O inventário dos danos é grande, como ficou comprovado durante o trabalho da equipe de transição, e poderá aumentar à medida que o novo governo ocupe seus postos e abra arquivos e gavetas.

A polarização do país, de um lado, e, de outro, a grande expectativa de quem votou em Luiz Inácio Lula da Silva não devem conceder muito tempo para a nova gestão. A administração recém-empossada provavelmente não terá os costumeiros cem dias para arrumar a casa e propor mudanças. A lua de mel do novo governo será mais curta.

Lula deu a entender que sabe que precisa assumir o comando da administração de uma forma rápida e efetiva, ao usar pela primeira vez a caneta de presidente ainda no domingo, começando a cumprir promessas feitas na campanha.

Entre outros atos, iniciou a revisão e suspensão de normas da escandalosa política armamentista do antecessor e desfez erros também na área ambiental.

Poesia | Fernando Pessoa - Liberdade

 

Música | Zeca Pagodinho - Não sou mais disso