Laura Greenhalgh
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS
Balmaceda nos remete a Allende, que alerta Morales sobre o caráter resiliente das oligarquias e a sina de presidentes que deixam escapar o momento histórico
Na última quinta-feira, quando a Bolívia contava os mortos de mais um confronto entre apoiadores e adversários do presidente Evo Morales, na capital chilena celebravam-se os 35 anos de um dos golpes mais duros da direita latino-americana: em 11 de setembro de 1973, o Palácio de La Moneda era bombardeado pela Força Aérea chilena e do ataque não sairia vivo Salvador Allende. O presidente socialista preferiu o suicídio a ser capturado pelos militares que lhe negaram lealdade. As celebrações em Santiago até foram pacatas, levando-se em conta que este é o ano do centenário de nascimento de Allende e um país vizinho, justamente aquele que negocia com o Chile uma saída para o mar, anda em pé de guerra. Golpe na Bolívia? Contragolpe? O que virá? Da planície ao altiplano boliviano, ronda o espectro de um Allende sem saída. E o passado volta a incomodar.
Chile não é Bolívia. E Allende não é Morales. Mas o enfrentamento das oligarquias, ao longo da história latino-americana, tem elementos comuns no tempo e no espaço. Essa linha de raciocínio é desenvolvida nesta entrevista por Jorge Edwards, ex-diplomata, um dos maiores escritores chilenos, detentor do Prêmio Cervantes de Literatura. Sua reflexão parte de coincidências históricas, incluindo a de que também falou ao Aliás neste mesmo 11 de setembro. Edwards analisa detidamente a derrubada de dois presidentes chilenos - José Manuel de Balmaceda e Salvador Allende. Ambos foram introdutores de grandes mudanças no país, ao mesmo tempo em que desafiavam as elites locais. Suicidaram-se. Balmaceda em 1891, no rastro de uma guerra civil, Allende em 1973, à portas da ditadura que seria instalada pelo general Augusto Pinochet.
Acrescente-se outra coincidência histórica: o diplomata e abolicionista brasileiro José Nabuco teve imenso interesse pela trajetória de Balmaceda, a ponto de lhe dedicar um longo ensaio, publicado em livro no Brasil (Balmaceda, ed. Cosac Naify, 2008, em coleção organizada por Davi Arrigucci Jr.), cujo prólogo é justamente de Edwards. Contemporâneo de Balmaceda, Nabuco mergulhou na tragédia particular de um presidente à beira do suicídio, algo que de certa forma prefigura a derrocada de Allende no século seguinte. A rigor, o ensaio serve à compreensão do processo de estrangulamento a que presidentes latino-americanos se submetem, como num ritual de auto-imolação, levando-os à morte física e/ou política. Nabuco apresenta duas conclusões sinistras: o caráter de indestrutibilidade das oligarquias e a tendência que a América Latina tem de perder o momento histórico. Edwards não só concorda, como acredita que as conclusões do brasileiro podem se repetir, como profecia macabra, em relação a Evo Morales.
Até a conclusão desta edição, na sexta-feira, a Bolívia vivia perigosamente aos solavancos, a ponto de ser decretado estado de sítio no Departamento de Pando. Manifestantes criavam balbúrdia nos aeroportos, gasodutos estavam sob proteção militar, havia confrontos de rua, a população fazia filas para comprar um botijão de gás, Morales buscou contato com oposicionistas e dois embaixadores americanos, em La Paz e em Caracas, deixavam seus postos na incômoda posição de persona non grata. Eis aqui mais uma coincidência histórica: diplomata em Cuba nos anos Allende, Edwards também foi retirado de Havana por discordar dos rumos da revolução de Fidel. As memórias deste episódio, que remetem aos últimos meses de vida do poeta Pablo Neruda, fecham a entrevista.
Nesta quinta, aniversário do golpe no Chile, a Bolívia vive sob rumores de estado de sítio, golpe...
Antes de mais nada, deixe-me dizer que acabo de passar pelo centro de Santiago e está tudo calmo. Eu me pergunto de onde vem essa tranqüilidade. Há desinteresse do povo ou falta de memória em torno de fatos que aconteceram neste país há 35 anos? Não vejo mais a agitação de anos anteriores, com os partidos de esquerda nas ruas e uma profusão de flores no túmulo de Allende. Hoje escuto discursos formais. Os jovens chilenos que saem às ruas para protestar têm menos que 35 anos. Não viveram o golpe.
Isso tem a ver com o fato de que Pinochet está morto?
Também. Li na imprensa que um grupo de parlamentares de todos os setores, esquerda, centro, direita, trocou abraços numa cerimônia lembrando o golpe. Nesse grupo havia a irmã de um ex-ministro de Pinochet e também o filho de um militante do MIR, que morreu assassinado pela polícia do general. Estavam todos juntos no Congresso, pedindo que o 11 de setembro seja a Data de Reconciliação. Curioso, não? A morte de Pinochet permite coisas assim. Houve até uma missa encomendada por militares na Catedral, onde se rezou pela alma de todas as vítimas. Com o velho general em cena, ele, que era um símbolo vivo do passado e lamentavelmente gerou conflito até o último de seus dias, manifestações pacíficas não seriam assim tão espontâneas.
O senhor atuou no governo Allende e é um estudioso de Balmaceda. Eles tinham traços comuns?
Tinham. Ambos demonstravam grande respeito pelo sistema legal e constitucional do Chile. A prova disso é que Balmaceda se suicidou no dia em que seu mandato presidencial expirava. Esperou até o dia 19 de setembro de 1891 para pôr fim à vida. Salvador Allende, por sua vez, não quis sair vivo do La Moneda, pois sabia que um presidente chileno seria humilhado. E não aceitava essa idéia.
Foram mortes calculadas?
Foram mortes impregnadas de um simbolismo constitucional muito forte. Há um dado curioso: em seus últimos discursos, Allende citou muito Balmaceda. Isso pode indicar que estava prevendo para si mesmo um final parecido com o de seu antepassado político.Outra semelhança entre eles foi a impulsividade. Ambos irritaram o establishment conservador deste país. Digo isso porque, ainda hoje, penso que o Chile é essencialmente um país entre moderado e conservador. Daí termos chegado à conclusão de que era imprescindível construir uma aliança política ampla. É ela que nos viabiliza ainda hoje, mantendo esse entendimento entre esquerda e democracia cristã.
O que o senhor acha do ensaio sobre Balmaceda escrito por Joaquim Nabuco?
Nabuco escrevia para o Brasil. Ele estava interessado nos desdobramentos da guerra civil do Chile, em 1891, procurava ler tudo que saía nos jornais e então fazia análises de cunho conservador para o leitor brasileiro. Era um pensador com idéias colhidas na melhor tradição inglesa, francesa, idéias que interessavam ao Brasil que mal chegava à fase republicana.
Nabuco olhou o saldo da guerra civil chilena e disse que as oligarquias eram indestrutíveis na América Latina. Poderia dizer o mesmo se visse a situação caótica em que a Bolívia se encontra hoje?
Sem dúvida. Mas é preciso deixar claro que as oligarquias bolivianas são separatistas. Autonomistas. São oligarquias agrícolas em conflito aberto com o altiplano, onde o mundo indígena tem expressão forte. São, portanto, mundos em conflitos. Agora, historicamente não há dúvida de que as oligarquias latino-americanas são resistentes e podem recorrer a golpes para salvaguardar seus interesses. Foi o que se deu no Chile. Situações atuais de conflito também têm a ver com a multiplicação dos governos de esquerda na região, como o venezuelano, o equatoriano, o paraguaio, o boliviano. Hoje o Chile não caminha nessa direção porque passou pelo allendismo e sabe suas conseqüências. Ou seja, as ideologias de esquerda não encontram terreno tão fértil em meu país.
O que representa Salvador Allende para o Chile hoje?
Uma estátua. Um símbolo nacional. Allende está mais vivo na Bolívia, no Equador e na Venezuela do que no Chile. Tomemos como ilustração desse fenômeno o ex-presidente Ricardo Lagos, do mesmo partido de Allende. Ambos, socialistas, sendo que Lagos trabalhou no governo Allende. Pois bem, como foi o governo Lagos? Foi o governo que melhor soube negociar com o empresariado. Para criar uma economia que funcionasse - e continua funcionando bem. Os socialistas de agora não são os socialistas de ontem.
E a presidente Bachelet?
Ela leva adiante as linhas traçadas por Lagos. Mas emocionalmente está mais ligada à esquerda histórica, porque Michelle Bachelet viu e sentiu de perto a violência do golpe. Então, em termos político-ideológicos, ela é portadora dos símbolos da esquerda tradicional. Mas em termos práticos, é muito parecida com Lagos. É conciliadora, hábil. O slogan do PS na época de Allende era “avançar sem negociar”. Hoje é “avançar e negociar, sempre”. Estou convencido de que é impossível manter uma ideologia de esquerda no poder com uma economia medíocre. E para que a economia não seja medíocre, há que participar do comércio global, das políticas do petróleo, do consumo para o qual as sociedades estão voltadas, etc, etc.
Tanto Allende quanto Balmaceda eram filhos da elite chilena. Propuseram reformas estruturais ao país, pactuaram com as classes populares e foram apeados do poder pelas oligarquias. Vamos agora para a Bolívia. O que dizer de Evo Morales, que é um indígena?
Balmaceda era filho de uma das famílias mais poderosas e aristocráticas do Chile. Sua gente tinha grandes fazendas. Já Salvador Allende descendia de um ramo de juízes, só que ele próprio era médico.Vinha de uma classe burguesa e propôs uma revolução contra ela. No caso boliviano, o presidente sob fogo cruzado é um indígena. Isso muda dramaticamente as coisas. Arrisco dizer que quando um membro de uma oligarquia “atraiçoa” os de sua classe, a resposta pode vir muito mais dura. Aconteceu com Balmaceda e Allende. O caso de Morales é muito original e está se produzindo num país peculiar, com diferenças intransponíveis entre a parte baixa, mais rica e branca, e o altiplano, mais pobre e indígena. Essa peculiaridade embute a idéia de separatismo.
Como Morales não é um traidor de classe, então, segundo seu raciocínio, teria chance de sair-se bem.
Morales não traiu sua gente. Mas tem sido um tanto contraditório. Às vezes é implacável, intransigente, às vezes, deliberadamente conciliador. Mesmo com as empresas estrangeiras ele é assim. Só que o feitio contraditório nem sempre ajuda. Também é preciso dizer que Morales, dos últimos presidentes bolivianos, foi o que levou mais longe as conversações com o Chile, sobre questões estratégicas de fronteira e a saída para o mar, herança da Guerra do Pacífico. Você poderia dizer que isso acontece porque ele se entende bem com Michelle Bachelet, pelo passado de esquerda da presidente. Mas hoje o chanceler chileno é um homem de centro-direita que se dá muito bem com Morales. Não há como negar: Evo Morales tem sido o mais negociador dos últimos presidentes bolivianos. Podemos ainda ter uma surpresa sobre sua capacidade de negociar. Eu já não diria o mesmo de Hugo Chávez.
Pode mesmo haver um golpe para derrubar Evo Morales?
Pode, mas dá para prever. Leve em conta que os militares, em situações como esta, tendem ao comportamento ambíguo. Eles não se metem num golpe na primeira hora. São cautelosos. Foi exatamente o que se deu com Pinochet, o último chefe militar a tomar a decisão de aderir ao golpe. Até o último momento, Allende achou que Pinochet era leal a ele e a seu governo. Pois quando o general aderiu, daí então foi duríssimo. Comportamento similar também pode ser atribuído a Franco, na Espanha. Militares são cautelosos e conspiram com discrição.
Grupos oposicionistas e mesmo os “comitês cívicos” que estão protestando na Bolívia agem fora da lei. Foram longe demais, ocupando empresas e vandalizando gasodutos?
Estão fora da lei e é isso que provoca o risco de uma situação de guerra civil. É um momento difícil. Você pode achar curioso como setores conservadores da sociedade boliviana apelam hoje para práticas radicais. Por outro lado, a aprovação da reforma constitucional, proposta por Morales, foi feita num Congresso que negou a participação da oposição. Produziram-se excessos por todos os lados e isso gera o quadro atual.
Em meio a tensões, Morales denunciou o embaixador americano como persona non grata. Disse que não se curvaria ao imperialismo americano. Já vimos isso na América Latina, não? Presidentes propõem mudanças na economia e no arcabouço legal dos países e acabam trombando com a potência.
É verdade. Balmaceda trombou com os ingleses no que chamamos de “imperialismo do salitre”. No século 19, o salitre era a riqueza chilena. Não havia sido descoberto o salitre químico, sintético; portanto, do salitre natural faziam-se fertilizantes e explosivos, o que era estratégico. Os ingleses controlavam praticamente toda a indústria do salitre no norte do Chile. Setores agrícolas, naquele momento, também se rebelaram contra as políticas de Balmaceda. Fez-se a poderosa união de forças entre os ingleses, os agricultores e a Igreja Católica, e não só em torno de interesses econômicos, pois Balmaceda também foi duramente criticado por pregar a laicidade do Estado. Por ter criado leis como a do casamento civil. Enfim, era um homem odiado pela direita católica. Já nos anos 70 do século passado, Salvador Allende enfrentou os americanos, no contexto da Guerra Fria. E hoje Evo enfrenta os interesses da geopolítica energética.
Qual a maior semelhança entre as crises do passado e as de hoje?
A questão do salitre foi detonadora da guerra civil chilena no final do século 19 e levou à derrocada de Balmaceda. Mas isso aconteceu justamente quando o Chile atravessava um momento de florescimento econômico. Hoje vivemos uma situação equivalente com o petróleo e o gás. Há perspectiva de enriquecimento de países em função desses recursos naturais, mas há também uma disputa mundial encarniçada por abastecimento energético. São interesses muito fortes. Ficamos sabendo que o embaixador americano na Bolívia foi afastado porque conspirava contra interesses do país. É bem possível que tenha conspirado mesmo, considerando o momento atual. Veja o que acontece na região da Geórgia, veja como se comportam os separatistas de lá. O que há por trás de todo o desentendimento com a Rússia? O petróleo. O oleoduto para transportar petróleo para toda a Europa Ocidental. A briga é essa. Você sabe o que o Chile está passando? O petróleo não está chegando aqui. Tampouco chega o gás, que teria de vir da Bolívia e da Argentina. Espero que Morales aja com prudência nessa crise, pois ela envolve outros países.
E as reivindicações dos indígenas? A nova Constituição, que ainda precisa ser referendada, assegura a eles maior representatividade, o que é contestado pela oposição.
É uma situação difícil de manejar. Supúnhamos que Morales, por ser indígena, saberia lidar melhor com o passivo indígena. Mas as dificuldades estão aí.
Nabuco, no famoso ensaio, falou dos “presidentes suicidas” do continente latino-americano. Ressaltou que tenderiam a perder oportunidades históricas. Essa reflexão pode ser aplicada à Bolívia de hoje?
Balmaceda queria usar o dinheiro do salitre para modernizar o país. Agiu rápido demais, foi inábil demais e acabou enfiando o Chile numa guerra civil terrível. Para se ter uma idéia da tragédia, foi um confronto com mais vítimas do que a Guerra do Pacífico, em que Chile se defrontou com Peru e Bolívia. Batalhas sangrentas, destruição generalizada, o país ficou aos cacos por muito tempo. Espero que não ocorra algo assim na Bolívia, que também vive um momento promissor na economia por conta do gás natural, que tem de sobra. Porém, falta dinheiro para investir no setor e os bolivianos precisam tratar bem os parceiros. De outro lado, o governo Evo Morales vem negociando bem com o Chile, como já disse. Porque a Bolívia precisa recuperar sua saída para o mar. É crucial. Pois bem, acaba de se decidir que será reconstruída a estrada de ferro ligando Arica e La Paz. Isso é esperançoso. Só que daí vem o pensamento grave de Nabuco, apontando nossa tendência a derrotas. A deixar escapar o momento histórico. Desgraçadamente esta sina pode se cumprir mais uma vez. Muito bem, não quero pensar o pior. A Bolívia já sofreu muito com golpes de Estado, prefiro confiar na astúcia de Evo Morales. Um golpe daria força ao discurso sobre um país “democraticamente inviável”, abrindo um precedente perigoso na América Latina. E um golpe de direita na Bolívia levaria a uma radicalização dos governos de esquerda na região. Mais radicalização e mais desconfiança. Isso não é bom.
O Brasil pode atuar como conciliador nesse momento?
Pode. O presidente Lula goza de credibilidade. Vem acumulando prestígio desde que chegou à presidência, sabe usar sua simpatia, olha os desafios com otimismo. Apesar de suas origens políticas, Lula não se compromete demais com a esquerda da América Latina.
O senhor passou por experiência semelhante à do embaixador americano na Bolívia. Também foi tido como persona non grata em Cuba, quando lá esteve como representante diplomático do governo Allende. Essa experiência deixou cicatrizes?
Eu não era embaixador. Naquele tempo, fui designado por Allende para abrir a embaixada chilena em Cuba, porque meu país não tinha relações diplomáticas com a ilha. Então, lá fui eu, como ministro plenipotenciário, abrir a embaixada. E lá fiquei, esperando a chegada do embaixador. Os problemas começaram pela minha dupla profissão. Eu já era diplomata e escritor. Isso não é raro, vocês tiveram casos assim no Brasil, como Guimarães Rosa, Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto. Nunca foi fácil juntar essas duas profissões. Quando cheguei a Cuba, tive uma conversa com Fidel Castro de três horas, privilégio que não aconteceria à maioria dos embaixadores europeus. No dia seguinte, voltamos a nos ver. Mais adiante tive um encontro que mudou minha visão sobre o regime castrista. Estive com Heberto Padilla, Lezama Lima e outros escritores importantes de Cuba. Alguns eram amigos meus, até trocávamos cartas. E o quadro que me trouxeram de Cuba era muito diferente do que fora pintado por Fidel. Isso me deixou numa situação difícil. Reconheci ali o dogmatismo stalinista. E o vi com clareza porque, afinal, minhas relações com a esquerda eram antigas. Os intelectuais eram controlados, censurados, perseguidos. Então meus problemas começaram. Certamente foi um erro nomear um diplomata-escritor para servir em Cuba. Mas foi dessa experiência que nasceu meu livro Persona Non Grata.
Quando escreveu o livro?
Esse episódio aconteceu quando Allende chegou ao poder, em 1970. Fui para Cuba, passei três meses muito difíceis e de lá me mandaram diretamente a Paris, para trabalhar com Pablo Neruda na embaixada chilena. Ele era o embaixador e fez de mim ministro-conselheiro, ou seja, deu a mim o segundo posto. Não posso reclamar de ter sido removido para Paris e para perto de Neruda. Quando cheguei, comecei a escrever o livro porque não queria esquecer o que tinha vivido. São memórias do meu período em Cuba.
O livro gerou mal-estar entre os dois países?
Não, porque o publiquei depois do golpe. Ele ficou na gaveta algum tempo.
Como foi trabalhar com o poeta?
Conhecia Neruda havia muito tempo. Mandei meu primeiro livro para ele em 1952. Eu era um rapaz de 20 e poucos anos. Depois, Neruda mandou me chamar e então desenvolvemos uma amizade que durou muitos anos. Foi ele quem pediu a Allende que me transferisse para Paris. Neruda sentia-se muito doente. Estava com aquele câncer que afinal o matou.
Onde o senhor estava quando houve o golpe militar no Chile? Em Paris?
Havia terminado minhas funções na embaixada em Paris e sai em férias. Estava numa pequena praia no sul de Barcelona. Depois do golpe, fui expulso dos quadros diplomáticos e me mantive na Europa. Voltei ao meu país seis anos mais tarde.
E quando falou pela última vez com Neruda?
Em novembro de 1972, ele decidiu regressar ao Chile e eu fiquei na embaixada. O câncer avançara muito. Partiu com a mulher, Matilde, para uma temporada em sua casa de verão na Isla Negra, perto de Valparaíso. Estava debilitado, eu sabia disso. A última vez que nos falamos foi por telefone, meses antes do golpe. Havia um único telefone em Isla Negra. Quando consegui falar com o poeta, foi incrível. Ele disse, brincalhão como sempre: “Vem para cá, homem, vem que o mar está lindo”. Foi a última vez que ouvi sua voz.