domingo, 15 de março de 2020

Opinião do dia – Luiz Werneck Vianna*

• Na sua avaliação, as instituições estão ameaçadas?

Ah, estão. Tenta-se destituir as instituições. As instituições têm resistido. Há uma possibilidade de conseguirem destituir as instituições. Há a possibilidade. O fato é que a imprensa, a mídia, tem se comportado de forma muito valorosa em relação a isso. Os articulistas… A situação está cada vez mais clara. Estão pondo a nu as circunstâncias em que estamos envolvidos. Agora, depende de uma força política que interrompa essa maluquice, né?

• Mas existe essa força?

Não, não existe. Por ora, não existe.


*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, professor da PUC-Rio. Entrevista ao Estado de S. Paulo, 14/3/2020.

Luiz Sérgio Henriques* - A Venezuela como questão de método

- O Estado de S.Paulo

Com seus remédios salvadores, hipóteses ‘revolucionárias’ arruínam sociedades

A palavra “venezualização” passou a fazer parte do vocabulário político, por motivos óbvios. E como é próprio de palavras que nascem em contexto de ódio, divisão e radicalismo, trouxe consigo uma atemorizante carga negativa. Segundo próceres da direita, ou, mais propriamente, da extrema direita, a começar por Donald Trump, processos degenerativos como os que aquele termo implica decorrem inevitavelmente de qualquer experimento ou política associados, ainda que remotamente, ao “socialismo” e à “esquerda”.

Bem verdade que não há modos suaves para qualificar a tragédia venezuelana. Houve quem, no campo progressista, desconfiasse desde o princípio - e claramente a ela se opusesse - da aventura do comandante Hugo Chávez, mas é forçoso reconhecer que boa parte da esquerda brasileira e latino-americana não viu motivos para se distanciar de um militar ultranacionalista que prometia refundar ou regenerar o país, explorando a crise da democracia liberal e a debilidade da estrutura econômica, incapazes ambas - aquela democracia e aquela economia - de se abrir para uma participação maior dos venezuelanos. Com aguçado faro para a demagogia, Chávez relançou, pela primeira vez no século, menos a ideia do que o slogan do socialismo, o que bastou para que muitos deixassem num canto, sem uso, as armas da crítica e aceitassem como verossímeis as bravatas do caudilho.

O chavismo e o madurismo, para também mencionar o precário sucessor, constituem também, e sobretudo, um método. Como tal, o processo de venezualização não está restrito a uma desafortunada nação latino-americana, sangrada ainda por cima pela fuga de parte expressiva da população, não só dos setores mais ricos. E também não se restringe aos episódios massivos de tortura, violência policial e miliciana, que ninguém mais pode desconhecer - quando menos desde a publicação, em meados de 2019, do relatório da ONU sobre sistemáticas violações de direitos humanos organizado sob a direção de Michelle Bachelet, egressa das fileiras do socialismo chileno e vítima, ela própria, da ditadura no seu país.

Se nos limitássemos a esse tipo de constatação, diríamos que Chávez e depois Maduro seriam “somente” a versão populista de esquerda de um ditador infame como Pinochet. No entanto, o método que passaram a simbolizar tem que ver com algo ainda mais grave, a saber, o esvaziamento obstinado e contínuo das formas da democracia, rumo a um regime autocrático supostamente legitimado por expedientes plebiscitários e pela ligação direta entre o povo e seu líder. Um e outro se identificam a ponto de tornar tendencialmente impossível o papel da oposição e a alternância regular de poder. Opor-se ao líder, que encarna sem restos a pátria e as virtudes cívicas (quando não as religiosas!), é trair o povo, agindo como quinta-coluna de inconfessáveis interesses. E é nesse ponto que governantes extremistas se dão as mãos: nenhuma diferença essencial entre todos os que, a exemplo do presidente Jair Bolsonaro, prometem “varrer” os opositores, tratando-os ora como agentes do império norte-americano, ora como emissários do comunismo apátrida.

Celso Lafer* - ‘Diários da Presidência, 2001-2002’

- O Estado de S.Paulo

No errático momento atual do Brasil, a palavra e a sabedoria de FHC merecem atenção

A publicação deste quarto volume finaliza o disciplinado empenho de Fernando Henrique Cardoso em dar acesso ao registro que fez do dia a dia de suas atividades nos oito anos que presidiu o País. É empreitada de largo fôlego, cujo enredo esclarece como caminhou sem perder o rumo no “grande sertão” da política brasileira no democrático exercício das responsabilidades da Presidência.

É uma obra original na sua feitura. Não é um diário na acepção usual da literatura confessional da sensibilidade de estados de espírito. Nada tem que ver com uma burocrática agenda comentada do expediente do dia a dia. Não é uma autobiografia política, mesmo porque o registro feito no calor da hora não permite uma narrativa organizadora, decantada pela memória da experiência, no tempo mais longo da reflexão. Não é igualmente uma discussão elaborada com rigor acadêmico sobre como mesclar pensamento e ação. Essa mescla, no entanto, está presente nos Diários, pois com frequência FHC se posiciona como analista observador da ação, extraindo do cotidiano de sua experiência presidencial o alcance mais amplo dos movimentos das forças sociais e políticas, da lógica política das instituições e das pessoas com quem interagiu.

FHC tem os dotes da facilidade da narrativa. É o que dá sabor aos Diários, nos quais não falta o realismo político da objetividade nem, ocasionalmente, a acrimônia da irritação, sempre permeada pela educada civilidade que caracteriza o seu modo de ser.

Todos os ingredientes dos gêneros acima mencionados têm presença, mas não dão a identidade intelectual dos Diários da Presidência. Trata-se de uma obra singular, única na sua amplitude, no campo da ciência política sobre o que é o processo decisório no ápice do sistema político brasileiro. “Governar é escolher”, afirmou Mendès-France, e os Diários explicitam circunstanciadamente, com a disciplina da responsabilidade, “de dentro”, e não “de fora”, o desafio de conduzir a pauta decisória de um país grande e complexo.

Merval Pereira - Política de atritos

- O Globo

Imaginar que a morte do ex-ministro Gustavo Bebianno poderia ser “queima de arquivo” é ir longe demais, mas ela não ajuda a imagem presidencial

As circunstâncias desta vez não estão do lado do presidente Bolsonaro. Imaginar que a morte do ex-ministro Gustavo Bebiano poderia ser “queima de arquivo” é ir longe demais na teoria conspiratória, repetindo o comportamento paranóico do clã Bolsonaro. A autópsia do IML de Teresópolis acabou com essa paranóia. Confirmando que ele morreu de infarto

Mas é uma morte que traz para o centro da disputa política as emoções de uma amizade rompida à base de intrigas palacianas e traições.

As entrevistas com acusações por parte de Bebiano ao presidente e seus filhos, a percepção de que a tristeza pode ter ajudado a matar um fiel amigo largado de mão por interesses mesquinhos, as revelações de uma relação conturbada no Palácio do Planalto, prejudicada por um comportamento desequilibrado de Bolsonaro, tudo isso junto e misturado não ajuda a imagem presidencial.

Assim como não ajudou o fuzilamento do miliciano Adriano, que trouxe de volta as circunstâncias que uniram a família Bolsonaro a ele.

Mesmo que, por dever de responsabilidade, não se faça a ligação das mortes com ações premeditadas com objetivos políticos, as circunstâncias das duas mortes levam os Bolsonaro novamente a um terreno pantanoso, onde sobram insinuações de envolvimento com ações ilegais.

Míriam Leitão - Democracia na armadilha

- O Globo

Bolsonaro espalha o vírus da dúvida na democracia em vários dos seus atos e palavras, e as instituições não sabem responder

A democracia brasileira está numa armadilha. Autoridades de outros poderes tentam manter o decoro diante de um presidente que as afronta, e desta forma se enfraquecem. Mais fracas ficariam se imitassem o destempero presidencial. Os governadores reagem com cartas conjuntas aos ataques de Bolsonaro, mas o sentido delas não chega à população. A imprensa segue a pauta aleatória jogada sobre ela a cada manhã de desatino do mandatário. Os ministros têm medo do presidente e só ganham prestígio os que imitam o estilo do chefe.

Os eventos se repetem. Os ministros do TSE reagiram em nota contra a acusação do presidente de que houve fraude na eleição de 2018. A ministra Rosa Weber superou a alergia que tem às entrevistas e falou com os jornalistas. Isso é suficiente? Não. Se algum cidadão sabe de um crime, tem que comunicá-lo ao Ministério Público. Bolsonaro disse: “Minha campanha, eu acredito que, pelas provas que eu tenho em mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito no primeiro turno, mas no meu entender teve fraude. E nós temos não apenas palavras, nós temos comprovado, brevemente eu quero mostrar, porque nós precisamos aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos. Caso contrário, passível de manipulação e de fraudes.”

Ficou claro, apesar da costumeira oscilação. Ele disse que tem provas. E depois diz que no seu “entender, houve”. Horas depois, desconversou. “Eu quero que você me ache um brasileiro que confia no sistema eleitoral.”

Essa é uma das artimanhas que Bolsonaro usa. Para agitar os seguidores virtuais e alimentar os bots, ele jogou uma isca: “Houve fraude”. Para as instituições, ele diz que “confia no sistema eleitoral”. E as autoridades respondem com uma nota formal. “Eleições sem fraudes foram uma conquista da democracia” e há “absoluta confiabilidade do sistema”. A resposta foi divulgada, mas o tom é fraco e incapaz de neutralizar o efeito do vírus da dúvida que o presidente quis deliberadamente espalhar.

Bernardo Mello Franco – A conta dos cortes

- O Globo

O coronavírus chegou e Paulo Guedes insiste na conversa das reformas. Para a professora Monica de Bolle, o ministro está perdido e não entende a gravidade da crise

Em visita à Fiesp, o ministro da Economia foi questionado sobre o risco de o dólar ultrapassar a marca dos R$ 5. A resposta foi puro Paulo Guedes: “É um câmbio que flutua. Se fizer muita besteira, pode ir para esse nível”.

A profecia levou apenas uma semana para se realizar. Na quinta-feira, a moeda americana chegou a ser negociada a R$ 5,02. A semana terminou com a cotação em R$ 4,81, maior valor nominal desde o Plano Real.

Seria injusto culpar Guedes pelo derretimento do câmbio. A guerra do petróleo e a chegada do coronavírus produziram um estrago maior que a sua capacidade de autossabotagem.

No entanto, as besteiras do ministro não ajudam o país a sair da crise. Além de tumultuar o ambiente com falas desastradas, ele resiste a tomar medidas para amenizar o tombo anunciado.

Na quinta, Guedes tentou empurrar responsabilidades para os outros. Retomou a conversa das privatizações e cobrou a aprovação de reformas que ainda nem foram enviadas ao Congresso.

Elio Gaspari - A realidade paralela de Bolsonaro

- O Globo / Folha de S. Paulo

Bolsonaro abriga-se numa verdade só dele onde misturam-se crenças, manias e até mesmo visões

‘Eu acho... Eu não sou médico, não sou infectologista. Do que eu vi até o momento, outras gripes mataram mais do que essa’.

Que Jair Bolsonaro não é médico, todo mundo sabia. Sendo presidente da República, podia ter acompanhado a serenidade de seu ministro da Saúde, do governador de São Paulo e de David Uip, que é infectologista, e há semanas lidam com o caso do coronavírus. Outras gripes mataram mais que essa, inclusive a espanhola, que em 1919 levou o presidente Rodrigues Alves. (Como Tancredo Neves, ele foi eleito mas não assumiu.)

Noves fora papagaios do Irã, Bolsonaro foi o único governante a minimizar o risco do coronavírus. Contrariou quem é médico, a Organização Mundial da Saúde e seu ídolo Donald Trump.

Desde moço o capitão Bolsonaro abriga-se numa realidade paralela. Ele tinha 32 anos quando encrencou-se na carreira militar. Deixou o Exército pela porta lateral de uma carreira política num episódio que envolvia a autoria de um croqui primitivo de um atentado a bomba contra uma adutora. Dois laudos periciais disseram que ele havia sido o autor do desenho. O Superior Tribunal Militar entendeu que os laudos eram quatro e exonerou-o, sabendo que ele passaria para a reserva. Essa história está contada e documentada no livro “O cadete e o capitão”, de Luiz Maklouf Carvalho.

Passou o tempo e Jair Bolsonaro elegeu-se presidente da República. Logo no início do seu mandato ele se viu assombrado pelas traficâncias de seu chevalier servant Fabrício Queiroz, protetor do miliciano Adriano da Nóbrega. Dele nada se ouviu, salvo que “sou um homem de negócios, eu faço dinheiro”. Em mais de um ano, todos os envolvidos nessa trama recorreram a uma constrangedora blindagem. Nos dois casos, a realidade paralela foi uma forma defesa.

Na Presidência, o Bolsonaro desenvolveu o que parece ser um folclore diversionista que vai do “golden shower” ao negacionismo das queimadas da Amazônia. Quando o estoque parece esgotado, ele volta a duvidar da lisura das urnas eletrônicas. No caso do coronavírus, o folclore atravessou a rua, misturando-se com a voz do presidente da República numa questão de saúde pública. Continua sendo folclore, mas foi uma atitude pessoal, pois o governo está trabalhando noutra direção, a certa.

Dorrit Harazim - Mentalidade bunker

- O Globo

Era do coronavírus deve abrir uma caixa de pandora. Mudamos nós, mudou nossa percepção de espaço, de tempo

Não faz tanto tempo assim. Passaram-se só quatro meses desde o 17 de novembro último, cuja única notícia internacional relevante era a crise institucional na vizinha Bolívia, e no Brasil a festa do Flamengo em cavalgada rumo ao heptacampeonato nacional. Foi naquele domingão que um cidadão chinês de 55 anos deu entrada num hospital da província de Hubei infectado por uma mutação viral então ainda desconhecida.

Esta semana a China conseguiu apontar o cidadão de Hubei como o “paciente número 1” da atual pandemia global da Covid-19. Entre aquele dia e hoje o colosso comunista parece ter contido o pico da epidemia sem afrouxar as rédeas do regime. Dos mais de três mil mortos e perto de 85 mil infectados oficiais desde novembro, apenas 22 casos novos e oito mortes teriam ocorrido dois dias atrás. Mas a semente da desconfiança popular em relação à narrativa do governo está plantada.

No resto do mundo a era do coronavírus também deve abrir uma caixa de pandora. Mudamos nós, mudou nossa percepção de espaço, de tempo e de relações humanas. De um dia para outro, comportamentos sociais enraizados perderam naturalidade. Começamos a nos sentir estrangeiros em relação a nós mesmos.

Em tempos recentes, só a devastadora disseminação do vírus da Aids na década de 1980 gerou insegurança e incompreensão semelhantes, agravada pela recusa dos governantes da época a lidar com o problema. Ficou na biografia do presidente americano Ronald Reagan a mancha de só ter liberado verbas federais para combate e pesquisa da Aids quando toda uma geração de jovens já havia definhado, carcomida pelo HIV.

Luiz Carlos Azedo - O xadrez do coronavírus

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Economistas como Mônica de Bolle e André Lara Resende, antes mesmo do coronavírus, já haviam questionado a absolutização do aspecto fiscal”

Shahmat em persa quer dizer rei (shab) morto (mat), o antigo nome do xadrez. Por corruptela, e não por acaso, o final do jogo virou xeque-mate (checkmate, em inglês). Foi inventado por um grão-vizir, que criou um tabuleiro com 64 quadros, vermelhos e pretos, cuja peça mais importante era o rei; a segunda peça, o próprio grão-vizir, que foi substituído pela rainha com passar dos anos. É um mistério a razão de um rei aceitar um jogo no qual o objetivo era matá-lo, mas o fato é que o xadrez encantou toda a corte, inclusive o monarca. O rei gostou tanto da invenção que pediu ao grão-vizir para determinar sua própria recompensa.

Conta-nos o físico Carl Sagan, num artigo intitulado O tabuleiro de xadrez persa (Bilhões e bilhões, Companhia de Bolso), que o grão-vizir desejou apenas uma recompensa aparentemente modesta: apontando para o tabuleiro com oito colunas e oito filas, pediu ao rei que lhe fosse dado um único grão de trigo no primeiro quadrado, dois no segundo, quatro no terceiro e assim por diante, dobrando sempre as quantidades. O rei achou a recompensa muito insignificante e protestou, oferecendo joias, odaliscas, palácios, mas o grão-vizir recusou. Só desejava os montes de trigo.

Entretanto, quando o administrador do celeiro real começou a contar os graus, o rei teve uma surpresa muito desagradável. O número de grãos começou pequeno: 1, 2, 4, 8, 16, 32 (…) e foi crescendo, 128, 256, 512, 1024… Quando chegou na última das 64 casas do tabuleiro, era de quase 18,5 quintilhões. Quanto pesa cada grão de trigo? Se cada um tiver um milímetro, pesariam 75 milhões de toneladas métricas, muito mais do que havia nos armazéns reais. “Se o xadrez tivesse cem quadrados (dez por dez), em vez de 64, a quantidade de grãos teria pesado o mesmo que a Terra”, compara Carl Sagan. Os persas foram pioneiros na matemática.

Janio de Freitas - Um vírus que se trai, e morre

- Folha de S. Paulo

Os interessados no ato contra o Congresso e o Supremo persistem no seu propósito

A receosa intranquilidade de muitas das pessoas mais informadas e experientes, no decorrer da semana, teve motivos que o coronavírus, paradoxalmente, abrandou. Mas só por um tempo incerto.

O conjunto de indícios comuns a investidas antidemocráticas fez concluir por um alto risco: a propensão do ato contra o Congresso e o Supremo, marcado para hoje, de tornar-se movimento de agitação de massa — sem controle do seu desenvolvimento, como é próprio das ações de turbas incitadas.

O coronavírus esvaziou o ato, sem deixar dúvida de que os interessados, os organizadores e os empresários pagadores persistem no seu propósito.

Por vias institucionais, o caminho lhes é hostil, com Câmara e Senado mostrando-se mais altivos do que as últimas legislaturas. O bolsonarismo crente ou ganancioso é parte da massa pastosa que se amolda a qualquer sedução esperta ou endinheirada. É a alternativa, portanto.

Bolsonaro esperou sair de Brasília para, em Boa Vista no sábado (7), deixar de fingir-se alheio à manifestação contra as duas principais instituições democráticas, e chamar o povaréu a engordá-la.

A convocação original era explícita contra o Congresso e o Supremo, e ainda engrossava suas intenções com menção ao general Heleno, remanescente do mais antidemocrático na ditadura.

Hélio Schwartsman - Palavra de presidente

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro mente ou perde a oportunidade de ficar calado

Qual o valor da palavra de Jair Bolsonaro? Julgue você mesmo.

Ao longo da última semana, o presidente abordou quatro assuntos principais: manifestações contra o Congresso, Orçamento impositivo, fraude eleitoral e coronavírus. Em duas dessas ocasiões, Bolsonaro mentiu e, nas outras duas, deveria ter ficado quieto.

As mentiras são facilmente demonstráveis. Na quarta (11), ele disse que não convocou ninguém para as manifestações que ocorreriam neste domingo (15). Mas há um vídeo, gravado em Roraima no sábado (7), em que o presidente fala da manifestação e instrui seus simpatizantes a participarem.

Na terça (10), ele voltou a afirmar em suas redes sociais que não havia negociação entre o governo e o Parlamento em torno da verba do Orçamento disponível para investimentos. Mas há farta documentação mostrando que o governo negociou, sim, e longamente, para ter acesso a ao menos parte do dinheiro.

Bruno Boghossian – Mais Bolsonaro do que nunca

- Folha de S. Paulo

Presidente deve dobrar aposta em comportamento conflituoso na política e na economia

O Jair Bolsonaro que surgiu de máscara nas redes não é diferente daquele que se instalou no Palácio do Planalto há pouco mais de um ano. Suas últimas reações à crise do coronavírus mostram que o presidente está disposto a dobrar a aposta num comportamento conflituoso na política e na economia.

Apesar de ter recomendado o adiamento dos protestos deste domingo (15), Bolsonaro sai da novela das manifestações cada vez mais inclinado a fazer um chamado às ruas quando quiser pressionar o Congresso.

Durante sua última transmissão ao vivo nas redes, o presidente indicou que pretende guardar esse megafone no coldre. Ele disse que a mera convocação dos protestos já foi “um tremendo recado ao Parlamento” e que uma nova manifestação poderá ser feita em “um ou dois meses”.

Angela Alonso - Vírus e bolhas

- Folha de S. Paulo \ Ilustríssima

É hora dos imunizados contra o autoritarismo se darem as mãos, em vez de distribuir pontapés

O jeito é acenar de longe, na linha do adeuzinho da Angela Merkel, trabalhar remotamente, vide nos Estados Unidos, e mesmo viver à distância, como os italianos.

Um ente biológico está sacudindo mais o modo de vida contemporâneo do que toda a temida tecnologia. Falava-se tanto em sociedade digital, que prescindiria de contato humano direto, pois a noção entrou em fase de testes.

Não só coronavírus isola. A emergência sanitária realça a distância criada por dissensos políticos, o convívio restrito a bolhas digitais autorreferidas. As novas fronteiras são físicas, nada de beijo, abraço, aperto de mão. Mas não são novas, os cartazes dos protestos de 2013 já diziam: “acabou o amor”.

Desde então, as rodinhas políticas se imunizaram, expurgando os contaminados pelo vírus rival. E se retroalimentam com mensagens de reforço contra o Bozo ou a favor do Mito. O autoconfinamento criou realidades paralelas à esquerda e à direita, cada lado com seus sites, facebooks, twitters, slogans, heróis e inimigos. Uma foge da outra como bactéria de antibiótico.

Em meio às febres opostas, calhou a orientação do ministro da Saúde, afinal membro do governo Bolsonaro, de cumprimentar chutando o sapato do interlocutor. O pontapé combina mais com os tempos do que a proverbial simpatia brasileira.

As relações entre quem votou ou anulou o voto (não é o mesmo, mas deu no mesmo) e quem jamais cogitou votar no presidente são de ressentimento, evitação ou ataque. Os dois lados chamaram manifestações, como fazem desde o processo de impeachment de Dilma, na expectativa de que a demografia virtual da respectiva bolha se materializasse inteira na rua. Mas entre prometer e ir há a vida com suas intercorrências.

Num ato projetivo, o presidente chamou a pandemia médica de “fantasia”. É que o vírus atrapalhava a concretização de sua própria fantasia autoritária nos protestos. Ao seu costume, instituiu o caos: convocou, desconvocou, tornou a convocar, para, ao fim, desconvocar oficialmente, em cadeia de rádio e TV, a manifestação que afirmou nunca ter convocado.

Agiu tarde. Antes do cancelamento, o medo da doença vencera a esperança militante. A guerra política perdeu para a virótica no Twitter.

Samuel Pessôa* - A marcha da insensatez

- Folha de S. Paulo

Há a sensação de nau desgovernada; urge que os Poderes se entendam

O clássico da historiadora Barbara Tuchman “A Marcha da Insensatez” apresenta diversos episódios históricos em que governos agem como o escorpião que é carregado por um sapo na travessia de um rio.

O enfrentamento entre o Legislativo e o Executivo caminha para produzir grande número de vítimas. Estas serão os desempregados e os que sofrerão com a renda em queda que resultará da incapacidade de centralização das ações da Presidência da República e da irresponsabilidade do Congresso.

Na quarta-feira (11), o Congresso mandou uma conta para o Tesouro de R$ 20 bilhões sem apontar a fonte de receita ou aprovar medidas que reduzam o gasto em outras rubricas do Orçamento.

Vivemos uma dupla crise. Um choque externo brutal —apesar do presidente minimizar— da pandemia da Covid-19.

Por alguns meses as economias irão parar. Retomarão em seguida. Diferentemente da crise de 2008, esta não foi produzida pelo próprio funcionamento do sistema produtivo. Não deixará resíduo em um horizonte de uns dois anos se o sistema financeiro internacional prover a infraestrutura para que os contratos sejam cumpridos e os mercados consigam transpor o deserto.

Será necessária farta oferta de liquidez e a garantia de que dívidas —tanto as bancárias quanto as de mercado de capitais— sejam roladas no momento da crise.

Por aqui uma crise política crônica, devido ao pouco apreço do presidente à política, torna-se aguda com a infeliz declaração, hostil ao Congresso, do general Heleno, em 19 de fevereiro. Em seguida, na Terça-Feira de Carnaval, o presidente distribuiu para amigos convocação para uma manifestação pública contra o Congresso e o STF. O terceiro ato foi o Congresso, na quarta-feira, desfazer ¼ do que tinha feito com a reforma da Previdência.

Vinicius Torres Freire - Mãos limpas contra a banana suja

- Folha de S. Paulo

Brasil pode ter epidemia mais lenta que a europeia, mas Bolsonaro é risco

Neste domingo (15), é possível que mais de mil brasileiros estejam doentes de Covid-19. O número de casos confirmados talvez chegue a uns 150, mas muito mais gente já com sintomas ainda não terá recebido um diagnóstico.

Pelos registros oficiais, o começo da epidemia no Brasil anda no mesmo ritmo visto nos países europeus maiores, afora a Itália. Não parece bom, mas uma reação inteligente e solidária ao alerta pode atenuar a progressão da doença. Enquanto o governo nos dá bananas sujas pelas mídias sociais, podemos manter as mãos limpas na vida real.

O Brasil ainda está a duas ou três semanas de chegar à situação atual dos grandes países da Europa. Não precisamos repetir seus erros, apesar da doença sinistra do nosso desgoverno.

Campanhas educativas maciças e restrições à aglomeração de pessoas podem ao menos colocar um freio na epidemia. Em países asiáticos que tomaram tais atitudes, a velocidade do adoecimento foi de um terço da europeia (ou menos). Nem foi preciso adotar algo parecido com o toque de recolher à beira de lei marcial que se viu em certas regiões da China e que se vê agora na Itália.

Para começar, é preciso adotar as medidas de higiene recomendadas pelos médicos, que de tão simples parecem tolas, mas vão salvar muita vida. Lavar as mãos, manter-se isolado em caso de sintomas ruins etc., não apenas limita a proliferação do novo coronavírus mas diminui também outras contaminações, como a da gripe.

Celso Ming - Impacto político do coronavírus e do petróleo

- O Estado de S.Paulo

Brasil é um país dividido e até agora não apareceram lideranças capazes de enfrentar um processo dessa gravidade

Não há ainda um mínimo de clareza a respeito dos desdobramentos do duplo choque, do coronavírus e do petróleo. Mas já se esboçam impactos sobre as relações de poder, no exterior e por aqui.

O mais importante deles sugere enfraquecimento da força do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não só porque seu jogo unilateralista ficou disfuncional e passou a ser fortemente questionado diante da maior necessidade de coordenação global de políticas entre as grandes potências, mas, também, porque algumas áreas que o apoiam estão agora prostradas e mais propensas a mudar de lado.

O setor da economia dos Estados Unidos mais atingido pela derrubada dos preços do petróleo é o do óleo e gás de xisto, responsável pela produção de aproximadamente 10 milhões de barris ou equivalentes por dia, mais do que as exportações da Arábia Saudita até agora. Se os preços do barril persistirem à altura dos US$ 30, grande parte dos produtores desse segmento quebrará ou será obrigada a suspender a produção por tempo indeterminado, porque opera a custos bem mais altos. Isso implicaria perda de renda e enfraquecimento fiscal de importantes Estados do Sul do país e de municípios que vinham apoiando Trump. O vigor da economia, apontado como grande trunfo eleitoral do presidente, pode deixar de ser tão estratégico, como foi até agora.

A ação da Rússia, crucial na decisão da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) de derrubar os preços, parece ter sido, também, de represália ao governo Trump, pelas sanções por ele impostas a empresas europeias participantes do projeto de construção das instalações do gasoduto Nord Stream 2, desenhado para facilitar as exportações russas para a Europa, principalmente para a Alemanha. Ou seja, a Rússia, que dizem ter ajudado Trump nas eleições de 2016, agora parece estar no lado oposto.

Carlos Pereira - Tubarões, inundação, vírus e o governo

- O Estado de S.Paulo

É pouco provável que essa pandemia seja aproveitada pela gestão Bolsonaro como uma oportunidade para implementação de mudanças

Em julho de 1916, a costa leste dos EUA, especialmente Nova Jersey, foi acometida por uma série de ataques de tubarão que ocasionaram a morte de vários americanos. Esses eventos inesperados alcançaram grande repercussão no noticiário e considerável sofrimento emocional, especialmente da população das comunidades costeiras. O então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, concorria à reeleição no fim daquele ano.

Embora o presidente Wilson não tenha tido responsabilidade direta pelos ataques aleatórios de tubarão, estudos (Achen e Barthels, 2012) identificaram uma forte correlação entre aqueles ataques e a significativa redução no número de votos a favor da reeleição do presidente naquela região em relação à quantidade de votos no pleito de 1912, quando Wilson foi eleito presidente pela primeira vez.

Por outro lado, o devastador desastre provocado pelas inundações que aconteceram na Alemanha em 2002 trouxe consequências bem distintas para o seu governante. O governo ofereceu ajuda monetária imediata e, estrategicamente, organizou uma visita do chanceler, Gerhard Schröder, usando botas de borracha, às vilas inundadas. Esta atitude foi interpretada pela mídia como símbolo da credibilidade do chanceler como gerente de crises. Após as inundações e, pelo menos em parte pelo que foi percebido como bem-sucedida gestão de desastres, o governo ganhou apoio popular e venceu as eleições federais vários meses depois.

Desastres nem sempre têm impacto político negativo. Dependendo do contexto, as consequências para os líderes políticos também podem ser positivas. Se o governo de plantão for capaz de liderar com autoridade moral e ofertar respostas adequadas ao problema, é possível que desastres se transformem em janelas de oportunidade para galvanizar apoio e conseguir implementar reformas.

Vera Magalhães - Nós que lutemos!

- O Estado de S.Paulo

Brasil enfrenta pandemia e crise econômica sem liderança segura

O Brasil viveu na semana passada o ensaio geral do que deve ser um período de restrições da vida diária das pessoas, crise econômica com extensão imprevisível e possibilidade de colapso do sistema de saúde. À frente desse quadro, um governo que tem um Ministério da Saúde tentando organizar uma resposta técnica à pandemia do novo coronavírus, mas um presidente que ainda demonstra incapacidade de liderar.

A fase aguda da epidemia no Brasil foi precedida de um desarranjo geral promovido por exclusiva obra e graça de Jair Bolsonaro e seu entorno mais amalucado.

O presidente, só nos menos de três meses deste ano, comprou briga com Sérgio Moro e com o Congresso, promoveu mexidas aleatórias no Ministério, enquanto mantinha ministros ineptos ou acusados de corrupção ou ambos, segurou as reformas estruturais, convocou e depois desmobilizou a contragosto manifestações de viés golpista, desdenhou dos riscos do coronavírus, entregou seu posto a um humorista e disse que a eleição que venceu foi fraudada.

Esqueci algum fato? Com certeza, já que não é possível dar conta do arsenal diário de crises bizarras provocadas por Bolsonaro contra seu próprio governo.

Despiciendo, neste momento, especular por que ele faz o que faz. Cortina de fumaça para desviar a atenção de outros assuntos? Preparação de algum plano de supressão da democracia tendo cavaleiros templários como exército, mais à frente? O fato é que esse surto de bobagens tirou a concentração do Brasil do que deveria ter sido feito desde que a China parou: nos preparar para os desafios econômicos, de saúde e sociais que certamente viriam.

O Congresso, alvejado por Bolsonaro e mais preocupado em assegurar seu quinhão do Orçamento, ajudou com sua cota de irresponsabilidade ao, já depois do derretimento dos mercados e do alarme de que o coronavírus viria para valer, aprovar uma sangria de R$ 20 bilhões nas contas públicas para se vingar do presidente.

Eliane Cantanhêde - Isolamento

- O Estado de S.Paulo

Presidente, bananas não salvam vidas e não reduzem danos numa economia já combalida!

Tudo o que este mundo enlouquecido precisava para um freio de arrumação era um inimigo comum a toda a Humanidade, mas veio o novo coronavírus e o que se vê, assustadoramente, é o contrário: os líderes aproveitando para reforçar fronteiras e se isolar ainda mais, enquanto o presidente Jair Bolsonaro se ocupa em dar bananas para jornalistas, incorrigível, entre um teste e outro para o vírus.

A história está cheia de exemplos comprovando que é nos piores momentos que se forjam os grandes líderes, mas o inverso também é verdadeiro: nas crises, líderes ou emergem ou desaparecem. Há décadas não se vê uma crise da dimensão atual. Vamos ver quem sobrevive e quem sucumbe.

O novo coronavírus contamina as pessoas e as economias de países de todos os continentes. Nos dois casos é potencialmente letal e ele veio com tudo justamente num ambiente de desaquecimento global e quando a migração é uma das questões mais graves na agenda internacional. É hora de testar os líderes, saber quem tem ou não visão estratégica e grandeza pessoal. Restarão poucos, nesses tempos de Trump, Putin, Erdogan e tantos outros.

No Brasil, o presidente deveria aproveitar o isolamento para deixar de lado a obsessão por bananas, parar de atacar tudo e todos e refletir sobre sua imensa responsabilidade. O mundo está em crise, o Brasil está em crise, os casos de coronavírus vão disparar, a Bolsa teve a maior queda desde 2008, são 12,5 milhões de desempregados. E, antes mesmo do tsunami, o pibinho já foi de 1,1%.

O que a mídia pensa – Editoriais

As falsas crises, e a verdadeira – Editorial | O Estado de S. Paulo

Já é possível dizer que a grande crise que o Brasil enfrenta não é a economia travada ou a ameaça do coronavírus; a verdadeira crise é não ter governo quando ele é mais necessário

A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a disseminação do coronavírus atingiu a proporção de pandemia global. A designação é, na prática, pouco mais que simbólica, mas com ela a OMS pretende chamar a atenção de todo o planeta para os graves riscos econômicos e de saúde pública associados à expansão desenfreada da doença. “Estamos profundamente preocupados tanto com os alarmantes níveis de disseminação e de severidade da pandemia como com os alarmantes níveis de inação”, disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Assim, a OMS torna oficial o que já era a conclusão de epidemiologistas de várias partes do mundo, inclusive do Brasil. A crise do coronavírus é concreta, não uma “fantasia” criada pela “grande mídia”, como disse o presidente Jair Bolsonaro. Preocupa sobremaneira que o governo brasileiro, a julgar pelas declarações inconsequentes do presidente, esteja propenso a considerar a pandemia como sendo apenas uma “pequena crise”. Isso é “brincar com fogo”, como comentou o biólogo Fernando Reinach em sua coluna no Estado. “E provavelmente vamos nos queimar”, completou ele, ao lembrar que o sistema de saúde da Itália já entrou em colapso e que tal perspectiva levou diversos países a adotar medidas drásticas para tentar frear a expansão do vírus. No Brasil, contudo, as autoridades nem sequer decidiram quais são os cenários possíveis e, como escreveu Reinach, parecem preferir “esperar para ver”.

É assim que Bolsonaro encara crises verdadeiras: menospreza seus riscos e as considera criações da imprensa. Tem sido assim também no trato da crise econômica: enquanto milhões de cidadãos continuam a enfrentar a dura realidade do desemprego graças ao crescimento pífio do PIB sob Bolsonaro, o governo tenta convencer o distinto público de que tudo vai bem.

Música | Moacyr Luz - Saudade da Guanabara

Poesia | Ferreira Gullar - Agosto 1964

Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro-Leblon.
Volto do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.

O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógio de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito policial-militar.

Digo adeus à ilusão
mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do horror,
retiramos algo e com ele construímos um artefato
um poema
uma bandeira