• A Flórida dos anos 1950 já revelava a alma republicana do americano médio
- O Globo
O mundo está mergulhado em crises sem solução, e isso provoca uma fome de simplismo e irracionalismo na política interna e externa dos países. O caos é hoje uma trágica novela sem fim, como vemos na TV: Islã virado em barbárie, Oriente Médio enterrado no lixo da primavera árabe, a miséria se afogando em barquinhos de borracha na costa da Itália, a progressiva impotência de Barack Obama nos Estados Unidos, sabotado pelo rancor até racista dos republicanos. A chamada “direita” (mesmo disfarçada de “esquerda”, como no Brasil) renasce em todo o mundo sem barreiras de contenção.
A América se prepara para um tempo de boçalidade e desprezo pela “sensatez” dos “fracos e covardes” democratas. A paranoia está de volta. O cowboy vingador já montou em seu cavalo de batalha. A verdade é que o americano médio tem a “alma republicana”.
Eu vi isso na Flórida, onde morei no fim dos anos 1950. A cidade era igual àquela do “Show de Truman”. Ruas, pessoas, rituais, sorrisos e lágrimas, tudo parecia programado por uma máquina social obsessiva. A vida e a morte eram padronizadas, previstas: abraços gritados, roupas iguais, torcidas histéricas no beisebol, finais felizes, alegrias obrigatórias, formando uma missão comunitária cheia de fé, como um carrossel de certezas girando para um futuro garantido.
A violência dos alunos me assustava. Eu era um nerd comprido e meio bobo nos meus 15 anos de virgindade e me chocava com as botas de cowboy marchetadas de estrelas de prata, as facas de mola de onde a lâmina pulava, os casacos de couro negro que já vestiam a chamada “juventude transviada”, uma rebeldia reacionária e “republicana” dos anos de Eisenhower.
Vi brigas de ferozes galalaus se arrebentando até o sangue no focinho e o desmaio, onde nem os diretores do colégio podiam interferir, pelo sagrado direito da porrada, na cultura de vaqueiros e pioneiros. Não havia espaço para dúvidas naquela cidade, mas dava para sentir que a solidez de certezas, se rompida, provocaria um grave desastre. Os ídolos da época eram Elvis Presley rebolando na TV e James Dean, cadáver presente nos gestos e roupas.
Pairava um clima de intolerância entre os próprios brancos; eram os fortes contra os fracos, eram as meninas bonitas contra as feias, eram as sérias contra as “galinhas”. Eu, turista tropical, era um tipo misterioso; tímido, fraco mas, como era estrangeiro e falava bem inglês, provocava um respeito cauteloso, e os machões me poupavam por minha habilidade em dar-lhes cola em spelling, soletrando palavras de raiz latina que, para eles, eram enigmas.
Algumas meninas saíram comigo para beijos na boca e nada mais, claro. Mas Brenda, mais pirada e sexy, me largou e sumiu com Warren Caputo, que tinha um Hot Rod com pneus de trator. Eu não era “legível” para eles. Eu navegava naquela cultura obsessiva e, bem ou mal, conseguira namorar Melinda Mills, loura pálida, filha de um ex-Marine que estivera no Rio durante a guerra e que me mostrou um cartão-postal do Mangue, onde ele certamente conhecera a zona e as polacas.
Mas havia uma outra América dentro da cidade: os negros. Eles passavam de cabeça baixa, o rosto torcido de humilhação, num ódio sufocado e inútil. Amontoavam-se no fundo dos ônibus, em pé, mesmo com os carros vazios e moravam num bairro de madeira e terra, perto do braço de mar onde fediam os barcos pesqueiros de camarão.
Aquela injustiça tipicamente “republicana” me espantava pela falta total de compaixão, eu que vinha de babás negras me beijando, eu que amava as mulatas lindas que já povoavam meus desejos aos 15 anos.
Eu só via gente negra moldada pelo sofrimento e exclusão, disformes, deprimidos, frágeis mulheres engelhadas, jovens pretos trêmulos e esfarrapados. No ônibus amarelo do colégio, meus colegas louros e brutos berravam contra os negros que passavam: “Hey, nigger, por que teu nariz é tão chato? Hey, nigger, por que teu cabelo é pixaim?” Depois, na época da “integração racial”, vi os mesmos negros sendo espancados pela ousadia de se banhar em piscinas públicas. Eu tinha medo era dos brancos.
Até que um dia chegou a notícia devastadora. Tinha subido aos céus o satélite russo Sputnik, girando como uma bola de basquete na órbita da Terra. Pânico na cidade. Desde 1949, com a explosão da bomba H pelos soviéticos, destronando a liderança dos destruidores de Hiroshima, os americanos esperavam outra catástrofe, que viria como um filme de ficção cientifica tipo “A invasão dos feijões gigantes”. Em minutos, a cidade parecia um campo de refugiados, com cabeças inchadas, humilhados pelos comunistas invasores. No colégio, começaram fire drills incessantes, alarmes evacuando os alunos para porões e abrigos atômicos. O então senador Lyndon Jonhson berrou: “Brevemente estarão jogando bombas atômicas sobre nós, como pedras caindo do céu...”
No alto, o satélite Sputnik humilhava os americanos, com seus “bip-bips” como gargalhadas de extraterrestre. A partir desse dia, lá embaixo, na cidadezinha da Flórida, eu mudei. Não para mim, mas para os outros. Os colegas porradeiros me investigaram com perguntas: “Que você acha? Teu país gosta dos russos?” Eu tremia e escondia minha vaga admiração juvenil pelo socialismo. Eles me olhavam desconfiados: brasileiro, latino, sabe-se lá? Depois disso, não me pediam mais cola de palavras, mal me olhavam. O pai de Melinda, putanheiro do Mangue, não me cumprimentou de sua poltrona esfiapada. Melinda ficou mais pálida e nosso namoro definhou.
Há muitos anos, eu vi o “choque e pavor” da América profunda. Essa era a época da chamada “silent generation”, passiva e ignorante. Sua reação é a mesma dos fundamentalistas do Tea Party hoje. Sempre que algo acontece fora de seu controle, eles bloqueiam o presente e querem voltar ao passado. São mais perigosos que os islamitas guerreiros, que explodem trens e aviões mas não destroem o Ocidente, por rancor, vingança e racismo, como fez o Bush, ídolo dos pequenos canalhas que humilhavam os negros na Flórida, quando eu apareci por lá.