domingo, 13 de dezembro de 2020

Luiz Sérgio Henriques* - Entre o centro e o centrão

- Revista Será? (PE)

Um governo como o de Jair Bolsonaro tem o caráter de desafio imprevisível e continuado. As provações a que submete a institucionalidade democrática se sucedem umas às outras, como num alucinante trem fantasma que não parece chegar nunca mais à estação terminal. Seria um tanto ofensivo invocar o cineasta Mario Monicelli, um convicto homem de esquerda, mas o fato é que a atual equipe dirigente lembra quase automaticamente a armata Brancaleone, com a arregimentação desregrada de militares, a trazer acentuadas preocupações sobre o papel das Forças Armadas, e a ação de um autoproclamado “núcleo ideológico” em guerra permanente contra a modernidade, praticamente confundida com o “comunismo”. A estes dois grupos, de resto conflagrados entre si, se acrescenta a cota bem nutrida dos incompetentes, ainda que, nisso tudo, as linhas de separação sejam muito difíceis de traçar.

Os otimistas sublinham a resiliência das instituições: elas não se submeteram ao assalto aberto, às manifestações subversivas, à tropelia das milícias reais ou digitais. O próprio presidente, num dado momento, sem abandonar a truculência verbal e as decisões irracionais, como na triste guerra das vacinas em que ora empenha seus generais e sua armata, passou a valer-se de modo mais regular dos poderes convencionais do Executivo. Passou a usar, em suma, a tal “caneta” cheia de tinta, não a Montblanc de antes, mas uma Bic incomparavelmente mais perigosa. No STF ainda não tomou assento o ministro “terrivelmente evangélico”, mas o primeiro voto importante do recém-empossado jurista conservador, confeccionado sob medida para aplainar o caminho do presidente do Senado e barrar o da Câmara, não deixa dúvida sobre o que se pode esperar.

O centrão amorfo, expressão consumada da “velha política”, reaparece com nobres e altas funções. Longe de ser exorcizado pelo refrão do samba de Bezerra da Silva, como se queria nos tempos “heroicos” da campanha eleitoral, agora está metamorfoseado na frente parlamentar que já funciona como dique contra qualquer impeachment e possivelmente, a partir de fevereiro de 2021, funcionará como suporte da agenda reacionária do governo, se derem certo os cálculos do estado-maior da armata. Dali para a frente, quem gritar “pega ladrão” irá encontrar, vai-se lá saber, uma pequena multidão de ministros e dirigentes acotovelados em secretarias e estatais, a cumprir ritos e preceitos franciscanos – não os do inquieto Papa argentino, mas os que, pondo de lado o disfarce das boas intenções, pavimentam o caminho de negócios e transações, muitas das quais tenebrosas, a julgar pelos precedentes.

Vera Magalhães - Se dividir, Bolsonaro leva

- O Estado de S. Paulo

É vital união entre forças divergentes e entre Câmara e Senado

Se o jogo da disputa pelas presidências da Câmara e Senado continuar a ser jogado de maneira desarticulada, e na base do cada um por si entre os partidos ditos opositores ao bolsonarismo, Jair Bolsonaro tem boas chances de emplacar aliados seus nas duas Casas do Congresso e com eles tocar seus dois últimos anos de mandato. E, bem no fundo, pode ser justamente isso que muitos dos atores do momento político querem. Vamos analisar um pouco a forma como cada um deles age.

Comecemos por Davi Alcolumbre. O presidente do Senado risca os dias na folhinha em pânico desde que o Supremo Tribunal Federal acabou com sua tentativa de dar um chega pra lá na Constituição e disputar novo mandato. Morto de medo de voltar ao baixo clero, tenta uma costura dissociada do correligionário Rodrigo Maia para eleger alguém sob sua influência para sua cadeira.

Para isso, vale até uma aliança com o presidente. Mais ainda se no pacote vier, quem sabe, um ministério para evitar que ele desça de volta à planície sem escala.

Se Alcolumbre fosse fechado com o DEM, seu partido, e se estivesse disposto a ajudar numa articulação para colocar alguém de fato independente em seu lugar, o jogo teria de ser casado com a Câmara, de forma a que o MDB fizesse o candidato lá, e o DEM ou algum partido sob a influência de Alcolumbre, o postulante à presidência do Senado.

Eliane Cantanhêde - Troféu dos 180 mil vai para...

- O Estado de S. Paulo

Com plano confuso de vacinas, Saúde quer mesmo é desovar cloroquina contra o 'bichinho'

Acerta o ministro Paulo Guedes em deixar de lado o foco fiscal e se dispor a destinar até R$ 20 bilhões para a vacinação em massa contra a pandemia. Erra o ministro Eduardo Pazuello ao entrar numa guerra política insana e planejar gastar R$ 250 milhões na distribuição de um remédio encalhado e desautorizado para a covid em todo o mundo. 

Tão fundamental, o equilíbrio das contas públicas é sempre ignorado pelo Brasil, entra governo, sai governo, mas não é hora de pensar nisso e, sim, em como combater o maior mal do século. Dinheiro para vacinação não é gasto, é investimento: na vida, na volta à normalidade, na sustentabilidade do sistema público e privado de saúde, na recuperação da economia e na volta dos empregos.

Não basta, porém, a decisão de investir, é preciso ter no que investir. Ou seja: é obrigatório ter planejamento, cronograma, meta, acordos com fornecedores de luvas, seringas, embalagens, refrigeradores e, o mais importante, vacinas. O Ministério da Economia diz que tem dinheiro, o da Saúde tem o plano? Qual a consistência do que foi entregue ao STF?

Merval Pereira - Tragédia anunciada

- O Globo

Na marca superada de mais de 180 mil mortos na pandemia de Covid-19, no segundo país do mundo nesse ranking macabro, brasileiros vivem
em tensão permanente, sem saber quando será a vacinação e com que calendário.

Enquanto o presidente Bolsonaro continua na sua negação da gravidade da situação sanitária, fazendo piadas com a maioria de tementes à doença, corre nas redes uma chocante seleção dos piores momentos do presidente durante a pandemia. O mês de março, no começo da crise entre nós, mas quando o mundo já se encontrava em situação crítica, foi quando Bolsonaro falou mais barbaridades.

Não tínhamos nenhuma morte até então. No dia 9, Bolsonaro disse que a Covid-19 estava sendo “superdimensionada”. No dia seguinte, admitiu haver “uma pequena crise”, mas que não era “esse problema todo que a grande mídia propaga”. Mas, no dia 11, a Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia, e no dia 15 ele se superou. Disse que havia “interesses econômicos” por trás da pandemia.

No dia 20 de março, Bolsonaro disse que “depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar não”. No dia 22, já tínhamos 34 mortes, e Bolsonaro garantiu que a previsão era que não chegaríamos a 800 mortes, o número de mortos pela gripe H1N1.

Bernardo Mello Franco - Um presidente no diminutivo

- O Globo

Em 20 de março, o presidente Jair Bolsonaro afirmou que não estava preocupado com a Covid. O Brasil ainda registrava uma dezena de mortes, mas ele já havia sido alertado sobre a gravidade da doença. “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, tá ok?”, desdenhou.

Nesta quinta-feira, o Capitão Corona disse que o país vive “um finalzinho de pandemia”. Os números oficiais contam outra história. Das 27 unidades da federação, 22 registram alta nas mortes. Mais de 30 mil pessoas estão internadas com o vírus, e ao menos seis capitais já ultrapassam os 90% de lotação nas UTIs.

Entre as duas declarações presidenciais, passaram-se 265 dias e morreram mais de 179 mil brasileiros pela Covid. Confirmou-se o pior cenário projetado no início do ano pelo ministro Luiz Henrique Mandetta. Ele tentou convencer Bolsonaro a levar a pandemia a sério, mas foi demitido porque não se curvou ao negacionismo do chefe.

Luiz Carlos Azedo - O atraso na vanguarda

- Correio Braziliense

Estamos diante de uma nova ofensiva do presidente Bolsonaro para aumentar seu poder, desta vez voltada para controlar o Congresso e impor sua agenda política, social e ambiental regressiva

Uma das variáveis fortes das eleições municipais passadas – com exceção da disputa de Macapá, cujo segundo turno será domingo próximo, mas que ainda pode confirmar a regra — foi a atuação de forças centrífugas que fragilizaram a participação do presidente Jair Bolsonaro no pleito. O grande número de candidatos, o fim das coligações e as dimensões continentais do país atuaram nessa direção. O presidente Jair Bolsonaro subestimou esses aspectos e misturou o impacto do auxílio emergencial nas famílias de mais baixa renda e o peso específico da União como se fossem uma mesma coisa que o seu carisma pessoal, o que o levou a apostar suas fichas abertamente em Celso Russomano (Republicanos), em São Paulo, e no prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), no Rio, julgando-se o grande eleitor do país. O primeiro sequer foi ao segundo turno; o segundo, perdeu a reeleição. Essas derrotas, como as da maioria das demais cidades onde interferiu no pleito, caíram no seu colo.

Entretanto, é um erro avaliar que as eleições municipais transformaram Bolsonaro num pato manco. Seria uma transposição mecânica do resultado eleitoral para o pleito de 2002. Pode ser até que isso ocorra, mas por outros motivos, que não são propriamente as eleições municipais: a desastrada atuação do Ministério da Saúde na pandemia do novo coronavírus, mitigada graças ao abono emergencial, mas cuja conta já está chegando; a falta de empatia em relação às vítimas da pandemia, que está provocando ojeriza em todo o pessoal da saúde e em parcelas da população que o haviam apoiado em 2018. Em plena segunda onda, vamos entrar o ano sem abono emergencial nem vacinação em massa, com déficit fiscal astronômico, inflação em alta e a economia ainda sem rumo.

Contraditoriamente, porém, o mesmo fator que levou à fragmentação da base eleitoral de Bolsonaro nas eleições municipais, agora, atua a seu favor, ao desagregar as forças de oposição, que continuam dispersas, em razão do mesmo pragmatismo que impera na política local. Além disso, abre-se novo ciclo de centralização política, cujo eixo é a força da União junto aos estados e municípios. Essa é uma tradição da política brasileira marcada por ciclos longos, como já foi demonstrado por Alberto Torres, no começo do século; Oliveira Viana, no Estado Novo; e general Golbery do Couto e Silva, em célebre palestra na Escola Superior de Guerra, em 1980, intitulada Sístoles e Diástolesl. A metáfora da contração e dilatação do coração serviu de base para a estratégia adotada por Geisel para que os militares se retirassem da política em ordem e tutelassem a transição à democracia. A Revolução de 1930, com a posterior implantação do Estado Novo (1937), e o golpe militar de 1964, com a fascistizaçao do regime militar a partir do Ato Institucional no. 5, em 1968 (que hoje completa 52 anos), foram grandes sístoles do período republicano.

Ricardo Noblat - Dê-se a Bolsonaro o que ele tanto se esforça por merecer

- Blog do Noblat /Veja

A coragem de um presidente que diz o que pensa e deseja

A lerem-se os fatos com as lentes dos bolsonaristas de raiz, o presidente da República acertou em cheio nos seus comentários sobre a pandemia da Covid-19 desde que ela se insinuou por aqui em março último. Pode ter errado ao estimar que o vírus mataria, se tanto, oitocentas pessoas. Corrigiu-se depois e falou em algo como três mil. O número já ultrapassou a casa das 180 mil mortes.

Sim, mas é daí? Quem poderia ter acertado na mosca? Bem, o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, muito antes de ser demitido por Bolsonaro, disse a ele que se nada fosse feito para deter a pandemia, em dezembro o número de mortos chegaria a 180 mil. Mandetta disse isso a Bolsonaro de corpo presente e também por escrito para que ele não esquecesse. Não adiantou.

Janio de Freitas – Um país no finalzinho

- Folha de S. Paulo

A conduta na balbúrdia da vacina basta para justificar impeachment

É impossível imaginar o que falta ainda para a única providência que salve vidas —quantas, senão muitos milhares?— da sanha mortífera de Jair Bolsonaro. Mas não é preciso imaginar a indecência da combinação de "elites" e políticos, para ver o que e quem concede liberdade homicida em troca de ganhos.

Pessoas com autoridade formal para o conceito que têm emitido, além de suas respeitabilidades, como o jurista Oscar Vilhena Vieira, o ex-ministro da Justiça e criminalista José Carlos Dias e o médico Celso Ferreira Ramos Filho, presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, entre outros altos quilates, têm qualificado com clareza e destemor a anti-ação de Bolsonaro e seus militares na mortalidade pandêmica. Crime, criminoso(s), organização familiar criminosa, homicidas, desumanidade —são algumas das palavras e expressões aplicadas ao que é feito contra a vida. Contra o próprio país, portanto.

A conduta da Presidência e de seus auxiliares na Saúde, na balbúrdia da vacina, basta para justificar o processo de interdição ou de impeachment, sem precisar dos anteriores crimes de responsabilidade e outros cometidos por Bolsonaro e pelo relapso general Eduardo Pazuello. Nem se sabe mais o número de requerimentos para processo de impeachment apresentados à Câmara. Sobre eles, Rodrigo Maia, presidente da casa, lançou uma sentença sucinta: "Não há agora exame de impeachment nem vai haver depois".

Bruno Boghossian – A ressaca do Supremo

- Folha de S. Paulo

Divisão no julgamento sobre reeleições no Congresso volta a agitar rede de intrigas do tribunal

A divisão do Supremo no julgamento que barrou a reeleição dos atuais presidentes da Câmara e do Senado agitou mais uma vez a rede de intrigas do tribunal. A maioria do plenário não fez mais do que sua obrigação ao reafirmar aquele veto, mas a decisão acirrou disputas de poder que têm efeito direto sobre o comportamento dos ministros.

Logo depois da votação do último domingo (6), uma ala da corte acusava Luiz Fux de traição no processo. Ministros diziam que existia um pacto para liberar as reeleições e que o presidente do Supremo havia descumprido o acordo. Em retaliação, eles prometiam tomar decisões para dificultar a vida do colega.

Elio Gaspari - A Chernobyl pessoal de Bolsonaro

- O Globo | Folha de S. Paulo

A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil

Em abril, o general Luiz Eduardo Ramos disse o seguinte:

“No jornal da manhã, é caixão, corpo; na hora do almoço, é caixão novamente. No jornal da noite, é caixão, corpo e número de mortos. (...) Não tá ajudando. Ninguém aqui está dizendo que tem que esconder. Os senhores (jornalistas) têm que também... Eu conclamo e peço encarecidamente, tem tanta coisa positiva acontecendo”.

Naquele dia, a Covid havia matado 165 pessoas, e o total dos caixões já passava de 20 mil. Notícia boa, se houvesse, deveria ser procurada na patética reunião ministerial daquele mesmo dia, durante a qual Jair Bolsonaro emparedou Sergio Moro, o ministro da Educação propôs a prisão dos “vagabundos” do Supremo Tribunal Federal, e o da Economia sugeriu o retorno da jogatina de grife.

Ramos falou com a alma. Ele realmente acreditava que as sepulturas incomodavam, mas acreditava também que com menos imagens de caixões mudava-se a natureza do problema. Passaram-se oito meses, e as imagens são outras. Pessoas sendo vacinadas na Inglaterra, e governos anunciando o início de programas de imunização para as próximas semanas. No Brasil, só caixões, brigas e o general-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, atarantado.

A pandemia já matou no Brasil três vezes mais gente que a radiação liberada pela explosão do reator nuclear de Chernobyl, da União Soviética, desde 1986. Segundo um artigo do “International Journal of Cancer”, as mortes ficaram entre 30 mil e 60 mil.

Vinicius Torres Freire – Pobres e o prestigio de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Base social do presidente mudou, mas é incerto que crise de 21 abale avaliação

Pelo menos desde o início da epidemia, a oposição a Jair Bolsonaro espera que a popularidade do capitão da extrema direita descambe para um nível crítico. Não aconteceu até agora.

O motivo da resistência bolsonariana seria o auxílio emergencial, argumenta-se com obviedade. Uma vez findo o benefício, a pobreza renovada e ampliada deve se voltar contra Bolsonaro, ainda mais porque sua base mudou desde o início do ano, sendo agora majoritariamente composta de pessoas de renda menor.

Pode até ser. Mas o argumento supõe que o auxílio emergencial faz com que muito brasileiro seja indiferente à selvageria, à negligência e à incompetência de Bolsonaro ou as tolere (aqueles 30% que o avaliam como “regular”). Se é verdade, temos problema mais profundo. Além do mais, o prestígio resistente mesmo depois de tanta atrocidade faz lembrar de Donald Trump e de sua votação imensa na eleição deste ano, fenômeno que escapa a explicações econômicas, sociais ou regionais rudimentares.

José Roberto Mendonça de Barros - Andar de lado e enxugar gelo

- O Estado de S. Paulo

O desemprego ainda se elevará até o início do ano, quando projetamos taxa superior a 16%

Este é o último artigo do ano de 2020, um período totalmente dominado pela surpresa do aparecimento da pandemia, bem como pelos seus importantes impactos negativos na vida das pessoas e na economia. 

O ponto positivo é que o Natal chegará com uma esperança, trazida pelo início da vacinação em vários países do mundo e que também chegará ao Brasil, começando por São Paulo, que fez um belo trabalho com o Butantã.

Entretanto, após o bom número na variação do PIB do terceiro trimestre, passaremos por um período mais difícil agora e no início do ano. Vários fatores concorrem para isso.

O consumo das famílias deve desacelerar bastante por conta do fim dos pagamentos do coronavoucher, o que deixará milhões de pessoas com o caixa reduzido no fim do ano. Devemos lembrar que, para 2021, a única coisa garantida é o Bolsa Família, que paga menos de R$ 200 e atinge aproximadamente 14 milhões de pessoas. 

A forte aceleração recente da inflação de alimentos também ajuda a reduzir o poder de compra das pessoas. Na verdade, já começaram a aparecer pressões em outros itens, como energia elétrica, higiene e limpeza. Mais ainda, as projeções mostram o IPCA em 12 meses crescendo continuamente pelo menos até maio, quando, nas nossas projeções, a inflação estará bem acima de 5%. 

Em paralelo, a taxa de desemprego, já bastante alta, ainda se elevará até o início do ano, quando projetamos um número superior a 16%.

Rolf Kuntz - Aleluia: armas e tilápias no ‘finalzinho da pandemia’

- O Estado de S. Paulo

Números não batem com as boas notícias trazidas pela cúpula da Ilha da Fantasia

Sobram boas notícias na Ilha da Fantasia. A melhor delas – o Brasil está vivendo um “finalzinho de pandemia” – foi anunciada em Porto Alegre pelo capitão-mor da terra abençoada, também conhecido como presidente Jair Bolsonaro. A segunda melhor novidade foi apurada no mesmo dia, quinta-feira, pelo Estadão. O governo estava preparando um plano de R$ 250 milhões para distribuir um “kit covid”. O kit contém, naturalmente, hidroxicloroquina e azitromicina, receitados como infalíveis, em outros tempos, pelo guru Donald Trump.

Enquanto o chefe proclama a vitória contra o vírus e ensina a receita salvadora, o provedor-mor, Paulo Guedes, continua festejando uma fabulosa recuperação em V, depois do tombo em março-abril, e a fartura de oportunidades para os trabalhadores. Essa fartura já havia sido celebrada em novembro, quando saiu o balanço de outubro do Caged, o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados.

“Nunca o Brasil criou tantos empregos”, comentou o ministro sobre os 394.989 contratos assinados em um mês. Ainda havia um saldo de 171.139 postos fechados, mas 2020 poderá terminar, disse ele na ocasião, sem perda de vagas formais. Essa expectativa tem sido reafirmada.

Marcas inconfundíveis distinguem os bons governos, e uma delas é a sabedoria na escolha de prioridades. Isso vale também para a ilha encantada. É preciso prolongar a recuperação e garantir maior crescimento em 2021. Por isso, o presidente continuou atento às questões mais importantes. Na mesma semana, assinou um decreto para zerar o imposto de importação de revólveres e pistolas e anunciou a decisão de criar peixes, principalmente tilápias, em represas de 73 hidrelétricas.

Pedro S. Malan* - Quadriênios: Trump e Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

É duro imaginar que possa continuar a disfuncionalidade que o Brasil exibe ao mundo

Na campanha eleitoral de 2014, em discurso feito para a militância do PT, Lula afirmou que já se via “com Dilma, em 2022, nas comemorações dos 200 anos da nossa independência, defendendo tudo o que haviam conseguido conquistar nos últimos 20 anos”. Referi-me a essa fala de Lula na abertura do artigo publicado neste espaço há exatos seis anos, Quadriênios: velhos e novos. Apontei então que é perfeitamente legítimo qualquer pessoa expressar de público suas “memórias do futuro”, a bela expressão de Borges para caracterizar desejos, expectativas, sonhos e planos.

Antes de chegar às eleições de 2022 haveria, no entanto, que vencer em 2018. Era óbvio que já não seria fácil explicar, então, as conquistas dos “últimos 16 anos” (2002-2018) como se fossem um período singular, um todo coerente, como havia feito a marquetagem política em 2014 a propósito dos “últimos 12 anos”. Porque Lula 1 foi diferente de Lula 2; Dilma 1, diferente de Lula 2; e (afirmei) Dilma 2 seria muito diferente de Dilma 1, “e o mais difícil dos quatro quadriênios”. Como escrevi à época, “quem viver verá, ou já está vendo”.

Quem viveu viu até mesmo as consequências – notadamente a vitória de Bolsonaro em 2018 e o início de outro problemático quadriênio. Volto ao tema de “quadriênios”, agora a propósito de Trump e Bolsonaro. Este último estará agora privado de sua fonte inspiradora e modelo de comportamento. O quadriênio de Trump terminou de facto na primeira semana de novembro, com as claras evidências da vitória de Biden.

Contudo parte expressiva dos 74 milhões de americanos que votaram em Trump acredita ter havido fraude eleitoral; que Trump fez bem em se recusar a reconhecer o resultado das urnas. “Frankly, we won” foi o tuíte com que se declarou vencedor na madrugada de 4 de novembro, quando ainda faltavam milhões de votos a contar, em vários Estados-chave. Advogados a seu serviço ajuizaram dezenas de ações nesses Estados, enquanto o candidato anunciava sua ida à Corte Suprema, com a qual disse “estar contando” para lhe dar um segundo quadriênio.

Cristovam Buarque* - Letras e Cores

- Blog do Noblat/Veja, 13/12/2020)

Passadas as eleições municipais, as lideranças nacionais se dedicam a imaginar alianças para 2022. Tentam composições com base em nomes de candidatos e siglas. Não se fala qual o propósito de cada aliança, salvo vencer o nome e a sigla do adversário. Uma disputa por letras, não por cores.

Deve ser assim nos países onde tudo funciona bem e o presidente deve apenas gerenciar o governo. Mas diante da crise que o Brasil atravessa, as siglas deveriam ser menos importantes do que as cores das propostas para o futuro.

As alianças deveriam construir as bases políticas para enfrentar:

- a violência generalizada que domina nossas cidades;

- quais os instrumentos para manter a estabilidade monetária;

- qual estratégia para retomar o crescimento econômico com sustentabilidade; para eliminar a tragédia da pobreza, e desfazer a brutal desigualdade de renda entre pessoas e regiões;

- como dar eficiência na gestão, eliminar corrupção e garantir ética na definição das prioridades do Estado;

- como elevar a qualidade e garantir equidade na educação de base, independente da renda e do endereço do aluno e como erradicar o analfabetismo de adultos;

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O alto custo da desconfiança – Opinião | O Estado de S. Paulo

O serviço público, como o nome sugere, deve funcionar de maneira exemplar e, sobretudo, impessoal, seja qual for o governo

Nenhum Estado supera suas crises mais profundas sem que haja confiança dos cidadãos tanto no governo como na estrutura burocrática. A crença no serviço público é essencial para que a sociedade respeite as determinações das autoridades em situações críticas como a pandemia de covid-19. 

Foi o que se viu recentemente em países como Nova Zelândia, Coreia do Sul, Alemanha e Taiwan, lembrados pela historiadora norte-americana Anne Applebaum, em entrevista ao Estado, como exemplos de nações com alto grau de “fé na burocracia pública, nos serviços e nos servidores públicos” e que, não por coincidência, foram bem-sucedidas no controle da doença.

Os contraexemplos são óbvios: Brasil e Estados Unidos estão entre os países com mais mortes pelo coronavírus justamente porque, entre outras razões, suas autoridades, em diversos níveis do serviço público, não inspiram confiança na sociedade.

No Brasil, não se trata apenas da confusão criada pelo negacionismo do presidente Jair Bolsonaro, que desde o início faz pouco da doença, desrespeita as orientações sanitárias universalmente aceitas como as mais eficientes no combate ao coronavírus e desestimula a vacinação – embora só isso já seja suficiente para minar todos os esforços para convencer a população a aceitar as limitações da vida cotidiana sob uma pandemia. 

Trata-se da sensação mais ou menos generalizada de que o serviço público, no caso do combate à pandemia, está dominado por interesses políticos – sejam os do presidente Bolsonaro, sejam os de seus desafetos, como o governador de São Paulo, João Doria.

Assim, por exemplo, se a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) demorar-se um pouco mais na análise da vacina contra a covid-19 apresentada pelo governo paulista, atrasando sua liberação e prejudicando o calendário de imunização anunciado com estardalhaço pelo governador Doria, não serão poucos a ver nisso um estratagema político do presidente Bolsonaro. Neste caso, pouco importam as razões científicas que a Anvisa possa ter, pois o ambiente já está contaminado de desconfiança a respeito da independência da agência.

Música | João Bosco - O Ronco da Cuíca

 

Poesia | Fernando Pessoa - A chuva desce a ladeira

A água da chuva desce a ladeira. 
É uma água ansiosa. 
Faz lagos e rios pequenos, e cheira 
A terra a ditosa. 

Há muitos que contam a dor e o pranto 
De o amor os não qu'rer... 
Mas eu, que também não os tenho, o que canto
É outra coisa qualquer.