Um
governo como o de Jair Bolsonaro tem o caráter de desafio imprevisível e
continuado. As provações a que submete a institucionalidade democrática se
sucedem umas às outras, como num alucinante trem fantasma que não parece chegar
nunca mais à estação terminal. Seria um tanto ofensivo invocar o cineasta Mario
Monicelli, um convicto homem de esquerda, mas o fato é que a atual equipe
dirigente lembra quase automaticamente a armata Brancaleone, com a arregimentação desregrada de
militares, a trazer acentuadas preocupações sobre o papel das Forças Armadas, e
a ação de um autoproclamado “núcleo ideológico” em guerra permanente contra a
modernidade, praticamente confundida com o “comunismo”. A estes dois grupos, de
resto conflagrados entre si, se acrescenta a cota bem nutrida dos
incompetentes, ainda que, nisso tudo, as linhas de separação sejam muito
difíceis de traçar.
Os
otimistas sublinham a resiliência das instituições: elas não se submeteram ao
assalto aberto, às manifestações subversivas, à tropelia das milícias reais ou
digitais. O próprio presidente, num dado momento, sem abandonar a truculência
verbal e as decisões irracionais, como na triste guerra das vacinas em que ora
empenha seus generais e sua armata,
passou a valer-se de modo mais regular dos poderes convencionais do Executivo.
Passou a usar, em suma, a tal “caneta” cheia de tinta, não a Montblanc de
antes, mas uma Bic incomparavelmente mais perigosa. No STF ainda não tomou
assento o ministro “terrivelmente evangélico”, mas o primeiro voto importante
do recém-empossado jurista conservador, confeccionado sob medida para aplainar
o caminho do presidente do Senado e barrar o da Câmara, não deixa dúvida sobre
o que se pode esperar.
O centrão amorfo, expressão consumada da “velha política”, reaparece com nobres e altas funções. Longe de ser exorcizado pelo refrão do samba de Bezerra da Silva, como se queria nos tempos “heroicos” da campanha eleitoral, agora está metamorfoseado na frente parlamentar que já funciona como dique contra qualquer impeachment e possivelmente, a partir de fevereiro de 2021, funcionará como suporte da agenda reacionária do governo, se derem certo os cálculos do estado-maior da armata. Dali para a frente, quem gritar “pega ladrão” irá encontrar, vai-se lá saber, uma pequena multidão de ministros e dirigentes acotovelados em secretarias e estatais, a cumprir ritos e preceitos franciscanos – não os do inquieto Papa argentino, mas os que, pondo de lado o disfarce das boas intenções, pavimentam o caminho de negócios e transações, muitas das quais tenebrosas, a julgar pelos precedentes.