domingo, 12 de julho de 2020

Merval Pereira - O Tempo da Ciência

- O Globo

É preciso reverter o processo de desindustrialização do Brasil e recuperar os laboratórios da instituições de pesquisa

Convidei o presidente da Academia Brasileira de Ciências, o físico Luis Davidovich, professor titular da UFRJ, a utilizar a coluna para a campanha #CientistaTrabalhando, que celebra o Dia Nacional da Ciência. Ao longo do mês de julho, colunistas cedem seus espaços para abordar temas relacionados ao processo científico. Ninguém melhor do que ele para ressaltar a importância da ciência, especialmente nos dias de pandemia que atravessamos.

“A crise global provocada pela COVID-19 tem dado à ciência um papel de destaque, associado à esperança de que surja um remédio ou vacina que mitigue os efeitos da pandemia. Coloca em evidência, também, o amplo desconhecimento sobre os métodos e o tempo da ciência. O medo da doença transforma-se em pânico diante do inimigo invisível e estimula o consumo de medicamentos ineficazes ou ainda não suficientemente testados. Setores da sociedade recusam-se a aceitar as recomendações da ciência, acusando-a de ser permeada de críticas internas e de constantemente modificar conceitos anteriores, o que é exatamente sua característica intrínseca, fonte da sua força e da sua evolução.

Renato Lessa* - Sobre as ofensas de uma classe abastada

- O Globo

Lá estão a pequena e medíocre arrogância, a alucinação de superioridade e o direito autoconcedido de tomar satisfação

Com economia de adjetivos de fazer inveja a Graciliano Ramos, Jane Loureiro, da Vigilância Sanitária carioca, assim respondeu à indagação sobre o teor dos insultos recebidos de gente rompida com o restante da humanidade: “A maneira com a qual se ofende uma mulher”.

Com dignidade sociológica, acrescentou: “Ofensas de uma classe abastada, que a gente acha que tem respeito e educação”.

A ocasião: a reação iracunda de frequentadores de um bar, na Barra da Tijuca — núcleo impávido do bolsonarismo de raiz —, à ação da Vigilância, no zelo das regras mínimas de proteção diante da pandemia. Gente que bem sabe como “se ofende uma mulher”.

Na mesma noite, Flavio Graça, superintendente da mesma Vigilância e no mesmo bairro, viu-se diante de dois exemplares do horror pátrio e pétreo a qualquer fumaça de igualdade: um casal indignado com tratamento dispensado, que envolveu o emprego da palavra “cidadão”.

O apego atávico a marcas de distinção faz do termo uma imposição de rebaixamento. Cada um, afinal, deve ser chamado pelo que o distingue: daí o aceitável uso do termo “elemento” para os tidos por inferiores.

Lilia Moritz Schwarcz* - Uma definição para poucos

- O Globo

Uma sociedade acostumada a naturalizar a hierarquia social, democracia só existe como projeto inconcluso

Governos de matriz autoritária vêm sempre acompanhados por rituais, não menos autoritários, de subordinação.

Numa sociedade acostumada a naturalizar a hierarquia social — que eternizou o mandonismo colonial o qual desembocou nos coronéis da Primeira República e na atual “bancada dos parentes” da Câmara; que conviveu com a escravidão por quase quatro séculos e enraizou o racismo —, democracia só existe como projeto inconcluso e cidadania enquanto uma definição para poucos.

Cidadão vem de “aquele que mora na cidade” e que precisa, pois, estabelecer relações horizontais para com o “outro”, com quem divide espaços.

Cidadão é também aquele que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e políticos por este garantidos e desempenha os deveres que, nesta condição, lhe são atribuídos.

Já o conceito de cidadania foi historicamente definido como um ideal de libertação, uma vez que se dirige a uma comunidade política que compartilha expectativas e reivindicações.

Se cidadania é uma noção construída coletivamente, ela só ganha significado nas experiências sociais e individuais. Por isso, no Brasil, cidadania funciona, muitas vezes, tal qual história mal contada ou contada pela metade.

O episódio protagonizado pelo casal de engenheiros num bar do Rio virou “sintoma” do nosso pouco apego à cidadania.

Bernardo Mello Franco - Sirkis, uma espécie rara

- O Globo

Devoto da causa ambiental, Sirkis era uma figura rara na política. O Rio deve a ele a preservação da Prainha, o retorno do verde nas e 160 km de ciclovia

Alfredo Sirkis era uma espécie rara na política brasileira. Idealista, devoto da causa ambiental, cultivava um espírito brancaleônico. Em 1998, depois de perder uma eleição para vereador, resolveu concorrer ao Planalto pelo PV. Teve apenas 0,3% dos votos, mas se divertia ao lembrar as trapalhadas da campanha.

No Recife, o presidenciável se meteu numa barqueata ecológica. No meio do trajeto, o motor pifou e o deixou à deriva. Ele resolveu voltar a nado. Ao chegar à Praia de Boa Viagem, percebeu que os banhistas o olhavam fixamente. “Estão me reconhecendo”, empolgou-se. Logo caiu na real: uma placa proibia o mergulho e alertava para a presença de tubarões.

No ano seguinte, Sirkis se envolveu em outra enrascada marítima. Para defender um transporte menos poluente, organizou uma viagem de catamarã da Praça XV à Barra. O passeio atraiu artistas, empresários e socialites. Mas o mar estava agitado, e a maioria dos VIPs passou mal a bordo. Um mico aquático.

A irreverência sempre marcou a atuação política de Sirkis. Na primeira campanha, em 1988, ele surgiu no horário eleitoral como se estivesse no “TV Pirata”. Enterrou-se na areia para denunciar a sujeira na praia e entrou num bueiro para pedir atenção ao saneamento. O carioca achou graça, e ele se tornou o vereador mais votado do Rio.

Míriam Leitão - Os mascarados do Planalto

- O Globo

Bolsonaro despreza máscara contra a Covid, mas tem assessores escondendo identidade atrás da máscara digital para ofender na redes

Quando Nelson Teich chegou ao Palácio do Planalto, em abril, para receber o convite para o Ministério da Saúde, ostentava máscara no rosto, como manda o protocolo médico. Assim que assumiu o cargo, ele passou a ser visto sem máscara nos eventos palacianos porque esse é o dress code do bolsonarismo. O uso de máscara no governo Bolsonaro é visto como sinal de fraqueza. Por isso eles sempre orgulhosamente mostram-se com o rosto preparado para a infecção do vírus. Os ministros acabaram constrangendo os servidores, e o governo impediu o afastamento de funcionários que tiveram contato direto com o presidente.

As máscaras que os bolsonaristas não usam contra a Covid-19 o bolsonarismo usa para atuar em redes digitais. Escondem-se atrás de perfis falsos para ofender, mentir, caluniar, manipular. O que é mais grave, para conspirar contra a ordem democrática. O importante da derrubada das páginas do Facebook é o que a ação revela. Ou comprova. Dentro do Palácio do Planalto, funcionários pagos com os impostos dos brasileiros estão simulando identidades para atacar pessoas e instituições e postar elogios ao próprio governo. O presidente e seus filhos são parte desse uso miliciano da internet. Eles foram desmascarados. E agora é Jair Bolsonaro quem tem que explicar o que fazem tão perto dele esses assessores e por que não teve qualquer atitude para impedir essa atuação.

Luiz Carlos Azedo - O grande jogo

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A intenção do Palácio do Planalto é conquistar o comando da Câmara, via articulação com o Centrão, para limitar o protagonismo do Congresso”

Em meio à tragédia da pandemia do novo coronavírus, discute-se intensamente o que virá depois da covid-19. Existem várias dimensões nesse debate, do cotidiano doméstico ao novo mundo das inovações tecnológicas, mas a política não perdeu centralidade. Destaco as eleições nos Estados Unidos e a escolha do novo comando do nosso Congresso, principalmente da Câmara dos Deputados. Nosso futuro imediato dependerá muito desses dois eventos.

A pandemia de coronavírus colocou em xeque a reeleição do presidente Donald Trump, republicano, no pleito de 3 de novembro. Joe Biden, vice-presidente de Barack Obama, hoje lidera a disputa com uma vantagem de 14 pontos. Trapalhadas no combate à pandemia e a recessão jogaram Trump para baixo. A sua esperança é a recuperação da economia em V, mas o coronavírus se espalha por todo o território e Trump terá mais dificuldades. Além disso, a violência policial, que estimulou, provocou forte reação da sociedade, principalmente dos jovens.

Os sinais de que a recuperação acelerada da economia norte-americana seria possível vinham da China, após dominar a pandemia, e também da Alemanha, que segue a mesma trajetória, o que ainda pode se reproduzir em outros países da Europa com economias fortes, principalmente a Inglaterra e a França. Entretanto, a projeção do PIB dos EUA aponta para uma queda de 6,5% em 2020.

Elio Gaspari - Bolsonaro precisa do tumulto

- Folha de S. Paulo / O Globo

Se o capitão Bolsonaro evitasse confrontos irracionais, seu governo mostraria a confusão em que está

Se o capitão Bolsonaro evitasse confrontos irracionais, seu governo mostraria a confusão em que está. Não tem ministro da Saúde, pasta que está com um interino, e na sexta-feira chegou ao quinto titular da Educação.

Dois episódios ilustram essa anarquia.

No dia 21 de maio, quando já se estava no patamar de mil mortos por dia pela Covid e a pandemia já havia matado 20.047 pessoas, a juíza Gabriela Hardt, da 13ª Vara Federal de Curitiba, mandou um ofício à Casa Civil, oferecendo R$ 508 milhões dos cofres da Lava-Jato para remediar a situação. Pedia apenas que lhe dissessem para onde o dinheiro deveria ir. Nada.

Gabriela Hardt reiterou a oferta a 17 de junho, e a Casa Civil respondeu apenas que havia recebido os dois ofícios. No dia seguinte o Ministério da Saúde informou que estava estudando o caso. Nessa altura batera-se a marca do milhão de infectados e 48.426 mortos.

Na semana passada o dinheiro continuava esperando um destino. Os mortos chegam a 70 mil.

(Em meados de abril o Itaú Unibanco anunciou que doaria R$ 1 bilhão para o combate à pandemia. Partindo do zero, criou um conselho, buscou iniciativas e já entregou mais de R$ 156 milhões. Foram 16 milhões de máscaras, cinco milhões de testes rápidos, 190 respiradores, cestas básicas para sete mil famílias, mais doações à Fiocruz e a hospitais de campanha em São Paulo.)

Durante todo esse tempo esteve natimorto na Casa Civil o tal “Plano Marshall” do ministro-general Braga Netto, reciclado com o nome de Pró-Brasil e detonado pelo doutor Paulo Guedes na fatídica reunião de 22 de abril com poucas palavras: “Não chamem de Plano Marshall, porque revela um despreparo enorme”.

O problema não está apenas no despreparo, mas na inércia produzida pela inépcia.

Janio de Freitas - Bolsonaro e o vírus, enfim sós

- Folha de S. Paulo

Veto do presidente aos socorros para os indígenas é de baixeza inominável

Entre Bolsonaro e o coronavírus, não se sabe qual contaminou o outro.

Está comprovada, no entanto, a associação de ambos para deslocar as atenções postas em três assuntos já próximos da implosão: os feitos e efeitos da ligação de Bolsonaro com o advogado e etc. Frederick Wassef; a inclusão do gabinete do filho Carlos nos desvios de verba pública que embrulham o filho Flávio e as 350 movimentações de cargos e remunerações no gabinete de Jair Bolsonaro quando deputado.

Esse levantamento, feito pelos repórteres Ranier Bragon e Camila Mattoso, desce a período bastante anterior às “rachadinhas” no gabinete de Flávio.

Com isso, sugere uma linhagem de práticas hereditárias cuja origem e o centro ficam claros. Uma face da trama ganha forma. A outra, que apresenta coadjuvantes como Fabrício Queiroz e sua mulher, é a da conexão miliciana que não cabe na responsabilidade pespegada em Queiroz.

A propósito, os vários celulares recolhidos com Adriano da Nóbrega, em seu assassinato na Bahia, sumiram nas artimanhas de polícias e promotorias, indicação certa de sua capacidade explosiva para poderosos na milícia, na polícia ou na política. Ou, sem ressalvas, nas três.

Bruno Boghossian – Bolsonaro e o sonho americano

- Folha de S. Paulo

Pandemia pode isolar o Brasil e deixar mais distante o ingênuo sonho americano do Planalto

Há um mês, Donald Trump citou o Brasil como exemplo negativo na pandemia. O americano errou tudo o que podia no combate ao coronavírus, mas disse que o país governado por Jair Bolsonaro enfrentava “um momento bem difícil” devido às suas escolhas durante a crise.

A reação do brasileiro ilustrou perfeitamente a postura de um país que escolheu a bajulação como pilar de sua política externa. Bolsonaro mandou um abraço para Trump, afirmou que gostaria de aprofundar as relações com os EUA e disse torcer pela reeleição do colega.

O Planalto recebeu, nas últimas semanas, algumas amostras dos efeitos de sua ingenuidade. O impacto econômico da pandemia, as barbeiragens do governo brasileiro na crise e sua negligência ambiental tornaram a subserviência aos americanos uma ferramenta diplomática inútil.

Hélio Schwartsman - Uma defesa do consequencialismo

- Folha de S. Paulo

Ele é o que de mais próximo temos de uma teoria ética completa e universalizável

Sempre sagaz, Reinaldo Azevedo escreveu na sexta (10/7) um texto em que me defende da alucinação jurídica do ministro da Justiça —pelo que lhe fico grato—, mas em que lança acusações que não me pareceram justas contra o consequencialismo, que simploriamente equiparou à ideia de que os fins justificam os meios.

Passo, então, à defesa dessa família de teorias éticas que, em sua essência, dizem que as ações podem ser julgadas positiva ou negativamente apenas pelos resultados que produzem.

Reinaldo obviamente não disse isso, mas muitas pessoas me escreveram afirmando que o consequencialismo está no cerne da barbárie nazista e que eu, como judeu, jamais poderia tê-lo invocado.

Não dá para falar em ética nazista sem incorrer em antinomia, mas, se há um teórico que tenta dar base racional e jurídica ao Estado hitlerista, é Carl Schmitt, autor complexo que bebe principalmente de fontes da teologia católica.

Vinicius Torres Freire - Mourão e a cerca do atraso eterno do Brasil

- Folha de S. Paulo

Empresários criticam ruína ambiental; vice-presidente ignora mudança mundial

O Brasil está com o filme queimado também porque bota fogo na Amazônia, o que causa repulsa a alguns financistas e pode provocar boicotes aos produtos de exportação brasileiros, diz o chavão sobre o vexame do país. É muito pior do que isso, porém.

A catástrofe da pandemia deve acelerar mudanças tecnológicas, investimento na reconstrução “verde” das economias e exigências de padrões sociais mínimos. Há indícios de tal evolução na Europa, na China e deve ser o caso dos EUA, se acordarem do pesadelo Trump.

O Brasil está em autodestruição acelerada faz sete anos. Dificilmente se cura até 2022. As mudanças no mundo rico podem tornar o país tão obsoleto quanto a vela e o cavalo depois da luz elétrica e do motor a explosão.

Empresários e banqueiros civilizados notaram o tamanho do problema, embora se limitem a enviar ao governo cartas diplomáticas de protesto, “notas de repúdio” mais aguadas do que as emitidas pelas “instituições” (Congresso e Supremo) contra ameaças golpistas de Jair Bolsonaro e de generais do Exército.

Na semana passada, escreveram a Hamilton Mourão para pedir, grosso modo, que se dê um basta à destruição da Amazônia e à ruína da reputação brasileira; para sugerir investimentos e planos de reconstrução da economia baseados em princípios ambientais.

Ricardo Noblat - Covid: Gilmar alerta para o risco de o Exército associar-se a um genocídio

- Blog do Noblat | Veja

“É preciso pôr fim a isso”, disse o ministro
Foi, de longe, a mais dura advertência feita por um ministro do Supremo Tribunal Federal ao governo e às Forças Armadas desde que o coronavírus se espalhou pelo país e colheu a primeira vida no final de março último. Atém ontem, a pandemia matou cerca de 71.500 pessoas e contaminou pouco mais de 1.840 mil.

Ao comentar o fato de um general (Eduardo Pazuello) estar como ministro interino da Saúde há mais de 25 dias, Gilmar disparou: “Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”.

Pazuelo substituiu o médico Nelson Teich que sucedeu o médico Luiz Mandetta. Teich não ficou no cargo sequer 30 dias. Largou-o para não ceder às pressões do presidente Jair Bolsonaro que queria que ele recomendasse o uso da cloroquina no tratamento da doença mesmo contra a opinião de médicos e de cientistas.

Martin Wolf* - Se não pensarmos como cidadãos, a democracia fracassará

- Financial Times / Folha de S. Paulo

A atual pandemia da Covid-19 abre a possibilidade de um choque transformador para as sociedades ocidentais
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“Está claro, então, que a melhor parceria em um Estado é aquela que opera através da classe média, e esses Estados em que a classe média é maior e mais forte, se possível, que as outras duas classes somadas, ou pelo menos, em que ela é mais forte que qualquer das outras duas isoladamente, terão todas as chances de ter uma Constituição bem gerida.”
“Política”, de Aristóteles.

A Covid-19 está sendo um choque global. Mas será um choque transformador? A resposta é que ela pode ser um evento transformador para várias sociedades ocidentais, especialmente os Estados Unidos e o Reino Unido.

Para as democracias liberais ocidentais, a era do pós-Segunda Guerra Mundial pode ser dividida em dois sub-períodos. O primeiro, mais ou menos entre 1945 e 1970, foi a era de um consenso “social democrata”, ou, como os americanos talvez dissessem, um consenso “New Deal”. A segunda, que começou por volta de 1980, foi a do “mercado livre global”, ou “o consenso Thatcher-Reagan”.

Entre esses dois períodos houve um interregno –a década de 1970, marcada pela inflação alta. Parece que agora estamos vivendo outro interregno, que começou com a crise financeira global.

Essa crise prejudicou a ideologia do livre mercado. Mas esforços valorosos foram feitos em todo o mundo ocidental para restaurar o “ancien régime”, com o resgate do sistema financeiro, a adoção de regulamentação financeira mais rigorosa e a austeridade fiscal.

O coronavírus expôs fragilidades de nosso modelo econômico e social.

Na verdade, a ascensão do nacionalismo populista veio depois desta tentativa de restauração. Com seu protecionismo e bilateralismo, sua promessa de preservar a previdência social e a sua ênfase inicial (desde então esquecida) sobre a reconstrução da infraestrutura, Donald Trump tornou-se líder de seu partido justamente por não ser um republicano tradicional, defensor do livre mercado.

Com sua promessa de ajudar as regiões mais pobres e suas referências favoráveis ao "New Deal" de Franklin Delano Roosevelt, também Boris Johnson vem indicando um novo rumo a seguir. Esses líderes enterraram Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

O coronavírus, agora, causou um retorno ainda mais dramático ao papel central do governo do que o que se viu com a crise financeira. Isso pode assinalar o fim do segundo período de transição do pós-guerra.

Em torno de qual ideia a política, a sociedade e a economia podem girar agora? A resposta deveria ser a cidadania, um conceito que remete às cidades-Estado dos gregos e de Roma. Isso é mais do que uma mera ideia política.

Como Aristóteles também disse, “o homem é um animal político”. Para ele, só somos plenamente humanos quando somos participantes ativos em uma comunidade política.

Em uma democracia, as pessoas não são apenas consumidores, trabalhadores, empresários, poupadores ou investidores. Somos cidadãos. Esse é o elo que vincula as pessoas em uma empreitada comum.

Vera Magalhães - Quem banca?

- O Estado de S.Paulo

Investigação do Facebook pode dar caminho do dinheiro ao STF e à CPMI

O medo ronda o bolsonarismo. Diferentemente de outras vezes em que a rede de destruição de reputações, disseminação de notícias falsas e de desinformação e conclamação de atos antidemocráticos por meio das redes sociais e WhatsApp foi exposta, um silêncio acovardado, seguido de alguns muxoxos só para constar, foi a tônica das reações à ofensiva do Facebook (e do Instagram, por extensão) contra essas práticas.

Não é à toa a mudança de tom. Desta vez, foi uma gigante das mídias digitais, contra a qual não adianta nada vociferar bobagens como “comunista!”, “globalista!”, “bancada pelo George Soros!” que tomou a iniciativa de investigar o uso de plataforma pelo que chamou de perfis ou páginas inautênticos. E foi essa auditoria, independente e levada a cabo pelo Atlantic Council, que ligou diretamente as práticas de disseminação de conteúdo falso à Presidência da República e a assessores lotados em gabinetes no Congresso e em Assembleias Legislativas. Portanto, funcionários públicos.

Há outro aspecto importantíssimo revelado pelo relatório que resultou no banimento de dezenas de perfis e páginas nas duas redes sociais. O gasto milionário para impulsionar esses conteúdos. Mais especificamente de US$ 1,5 milhão. E é aí que a ligação com o que já vem sendo apurado pelo Supremo Tribunal Federal e a CPMI das Fake News pode complicar a vida de Jair Bolsonaro.

Eliane Cantanhêde – Cobra naja e tubarões

- O Estado de S.Paulo

Aliança com PGR para devassa na Lava Jato ameaça união do Supremo pela democracia

O Supremo Tribunal Federal (STF) está de parabéns por liderar a resistência democrática com posições firmes que por vezes extrapolaram alguns limites, mas, no conjunto, foram decisivas para inverter os ataques e, assim, “cortar as asinhas” e “baixar a bola” do Executivo e de bolsonaristas assanhados, loucos por golpes e aventuras. Mas a união exemplar do Judiciário no primeiro semestre pode não se repetir no segundo.

Quando estão em jogo a democracia, arroubos do presidente, ameaças dos meninos do presidente, bravatas de ministros do presidente e ataques virtuais ou reais de seguidores do presidente, o Supremo se une, é um monobloco. Decisões e manifestações do presidente Dias Toffoli, do decano Celso de Mello e do relator das fakenews, Alexandre de Moraes, são acatadas, em geral, por unanimidade. Mesmo com críticas e muxoxos nos bastidores.

Saindo da esfera democrática, porém, emergem ideologias, idiossincrasias, divergências e velhos rancores. O que detona isso? Toffoli tomar partido da Procuradoria Geral da República (PGR) contra a Lava Jato. Ao determinar que as Forças Tarefas de Curitiba, Rio e São Paulo entreguem todos os seus arquivos à PGR, incluindo dados financeiros de 38 mil cidadãos, Toffoli não só autoriza a devassa na Lava Jato e dá excesso de poder ao procurador geral Augusto Aras como reabre as feridas no Supremo.

*Bolívar Lamounier - Entre dois vazios

- O Estado de S.Paulo

O presidente quer extravasar impulsos narcisistas que não consegue controlar?

Na tradição liberal, a atividade política é entendida como a arte de equacionar os problemas da sociedade com o mínimo possível de confronto e violência. Uma arte que pressupõe o uso do poder do Estado, mas de forma comedida, guiada por um sentimento de proporção.

Em seu primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro ignorou solenemente esse ensinamento fundamental da história política ocidental. Orientado, segundo se diz, pelo sábio da Virgínia, ele adotou uma linguagem radical, como se as urnas lhe houvessem conferido autoridade para mudar as próprias bases da sociedade e do sistema político. Como se a maioria eleitoral lhe tivesse outorgado autoridade para fazer o que lhe aprouvesse. Para refazer os fundamentos da economia e liquidar o que denominou “velha política”. Não hesitaria sequer em intervir no campo dos valores e comportamentos, implantando uma nova moralidade.

Por mais críticos que sejamos das estruturas e práticas públicas vigentes em nosso país, salta aos olhos que o bolsonarismo da primeira fase não se deixava pautar por uma perspectiva de comedimento e proporção. Em vez de se acomodar à distribuição de forças e objetivos corporificada na Constituição e nas leis, não disfarçava sua preferência por uma linha de terra arrasada, bem próxima do que o filósofo Bernard Yack denominou o mito da revolução total.

Nem de longe advogo uma opção pelo status quo. Sabemos todos que o Estado brasileiro está desde há muito corroído por interesses patrimonialistas e corporativistas, e pela corrupção sistêmica. Que nossa economia está travada, desprovida de dinamismo, excessivamente fechada e, portanto, incapaz de superar a chamada “armadilha do crescimento médio”. Que nossas desigualdades sociais, em si inaceitáveis, são diariamente reforçadas por um sistema educacional calamitoso. Que nosso sistema político é manifestamente disfuncional. Não há como ignorar ou subestimar a gravidade de tais desafios, mas o imperativo de superá-los terá de ser compatibilizado com o regime democrático, cujos pilares são, como antes argumentei, o comedimento e um sentimento de proporção.

Rolf Kuntz - Cloroquina é inútil contra o desgoverno

- O Estado de S.Paulo

Desprezando o direito à vida, Bolsonaro busca reeleição sem nunca ter governado

Não tentem curar despreparo, ignorância, incompetência ou irresponsabilidade com cloroquina. Não vai dar certo, como já foi comprovado no Brasil e nos Estados Unidos. Consumidor, defensor e propagandista desse medicamento, o presidente Jair Bolsonaro já testou positivo para o novo coronavírus, mas continuou testando negativo para as funções de governo. No meio de uma pandemia, o Brasil completou na última sexta-feira quase dois meses sem titular no Ministério da Saúde. No mesmo dia, um novo ministro da Educação, o quarto em pouco mais de um ano meio, poderia ser anunciado. Na véspera, numa de suas lives, o presidente havia tentado mostrar otimismo. “A economia vai pegar”, disse ele, atribuindo a profecia ao ministro da Economia. “Se a economia não pegar, fica complicado. Mas acredito no Paulo Guedes”, acrescentou. Acredita mesmo?

Confiando no ministro, mas nem tanto, na mesma live o presidente voltou a cobrar a reabertura mais pronta das atividades. “Há sinais de retomada na economia, mas precisamos de governadores e prefeitos que comecem a abrir o comércio, caso contrário as consequências vão ser danosas para todo mundo no Brasil”, disse Bolsonaro. A insistência contrasta com seu desinteresse, exibido até recentemente, pelos assuntos econômicos. Como explicar a mudança? Uma súbita iluminação?

Bolsonaro completou seu primeiro ano de mandato com a economia em pior estado do que em 2018. O produto interno bruto (PIB) cresceu apenas 1,1% em 2019, menos que em qualquer dos dois anos precedentes.

José Roberto Mendonça de Barros - Muitas mudanças após a pandemia

- O Estado de S.Paulo

Provavelmente veremos a valorização de uma vida mais simples, a ampliação do comportamento “faça você mesmo”

Mesmo com uma estimativa melhor do desempenho da economia no segundo trimestre, a maior parte das projeções para este ano está na faixa de uma queda de 6%, que também é a da MB. Nestas condições, o PIB per capita brasileiro terá caído, desde 2015, algo como 15%, ou seja, ficamos inequivocamente mais pobres e isto tem de ser bastante bem avaliado por todas as empresas, especialmente, nos mercados de bens de consumo. Genericamente, se elevará a demanda de produtos mais simples, o que já é totalmente visível no setor de alimentos.

Entretanto, devemos concentrar nossa atenção nas mudanças de comportamento que existirão após a experiência do distanciamento social que a Covid-19 impôs ao País.

Pesquisas disponíveis sugerem que as pessoas deverão alterar parcialmente suas percepções enquanto cidadãos, consumidores e trabalhadores.

No primeiro caso, provavelmente veremos a valorização de uma vida mais simples, a ampliação do comportamento “faça você mesmo” (mais matérias-primas e menos produtos finais) e o reforço à ideia de maior preservação do meio ambiente. Acredito também que o bairro e a proximidade sairão mais apreciados nas cidades grandes.

Entretanto, o confinamento e a valorização das regras de higiene aceleraram a entrada no mundo virtual, algo que já ocorria lentamente. De uma hora para outra, foi preciso aprender a trabalhar em casa, a comprar pela internet e a utilizar extensivamente os pagamentos digitais.

Auditoria no Face pode ajudar lei das fake News – Editorial | O Globo

Ilegalidades cometidas na rede social justificam propostas para haver transparência na internet

A prática de crimes ou violação de direitos por meio da divulgação de informações falsas sempre existiu. No entanto, a Constituição e a lei sempre foram capazes de enfrentar o problema, limitando seus efeitos danosos, equilibrando, de um lado, a liberdade de pensamento e expressão, vedado o anonimato, e, de outro, a responsabilização do autor da mensagem falsa pelos danos que causar e os crimes que cometer — injúria, calúnia, difamação, racismo etc.

O advento das redes sociais e dos sites de postagens criou um ambiente perfeito para a explosão desse tipo de crime, pela ampliação do alcance das mensagens falsas e pelo acobertamento da identidade dos autores das mensagens. Robôs disparam conteúdos sabidamente falsos, induzindo os usuários a acreditarem que têm origem em pessoas reais, e por meio desses disparos são propagadas ofensas de toda sorte, quando não graves ameaças. Um processo que destrói reputações, afeta de forma ilegítima processos eleitorais e cria uma tensão social profundamente prejudicial para a democracia.

O cenário se agrava porque as plataformas utilizadas para a divulgação de notícias falsas são dominadas por um pequeno grupo de empresas multinacionais, com alta dominância ou mesmo poder de monopólio em seus mercados, grande cacife financeiro, capacidade praticamente ilimitada de influenciar, além de um discurso poderoso e com grande apelo, especialmente para a juventude, a favor da liberdade de expressão e de informação.

A liberdade de expressão e informação não é incompatível com a responsabilidade pelos danos causados a terceiros. Muito ao contrário, liberdade e responsabilidade são conceitos interdependentes: na prática democrática, liberdades somente podem ser exercidas na medida em que não interfiram na esfera de direitos do outro; quando isso ocorre, o caminho passa a ser o da responsabilização do agente pelo dano causado. É esta possibilidade de responsabilização que permite que as liberdades continuem sendo garantidas e exercidas em sua plenitude: se não existir ou falhar a atribuição de responsabilidade por eventuais abusos, abre-se espaço para que remédios amargos como o da censura prévia passem a ser cogitados, em total afronta ao nosso regime constitucional. Algo que obviamente não se pode admitir.

Bolsa com teto – Editorial | Folha de S. Paulo

Maior ação social, desejável, deve respeitar limite de gasto para ser eficaz

Em quase todo o mundo, o enfrentamento da pandemia trouxe consigo a necessidade de atuação dos governos para proteger os vulneráveis. No Brasil, o auxílio emergencial de R$ 600 mensais até agora se mostra crucial para preservar a renda das famílias pobres e evitar danos sociais ainda maiores.

De outro lado, é preciso considerar o custo para os cofres públicos, que até agora chega a R$ 250 bilhões com o auxílio, e o dobro disso se considerados outros gastos.

No agregado, incluindo a queda da receita de impostos ocasionada pela recessão, o déficit governamental pode superar a marca de R$ 1 trilhão neste ano, quase dez vezes o estimado antes da crise, e levar a dívida pública para perto de 100% do Produto Interno Bruto.

Persistir na mesma toada a partir de 2021 seria insustentável. A administração federal precisará sem demora enfrentar o desafio de racionalizar o Orçamento de forma a manter de pé o teto de despesas inscrito na Constituição —o principal pilar da solvência do Estado.

A tolerância para o debate aberto – Editorial | O Estado de S. Paulo

Espécie de ajuste de contas com o passado não pode levar a uma restrição do debate, fazendo com que, a cada dia, mais assuntos, temas ou opiniões sejam proibidos

No dia 7 de julho, a revista americana Harper's publicou em seu site uma carta assinada por mais de 150 professores, escritores e artistas de renome mundial, na qual apoiam as manifestações por justiça racial e social que se iniciaram nos Estados Unidos e se difundiram pelo mundo inteiro, após a morte de George Floyd em Minneapolis no final de maio. Ao mesmo tempo, os signatários da Carta sobre justiça e debate aberto – entre eles, Francis Fukuyama, Noam Chomsky, Gloria Steinem, J. K. Rowling e Salman Rushdie – alertam para o “clima de intolerância que se instalou por todos os lados”. O texto oferece uma interessante reflexão sobre a chamada “cultura do cancelamento”.

A carta relata perseguições que vêm ocorrendo em nome da justiça social: “Editores são demitidos por publicar materiais controvertidos, livros são removidos por suposta inautenticidade, jornalistas são impedidos de escrever sobre certos assuntos, professores são investigados por citarem livros de literatura durante a aula, um pesquisador é demitido por circular um estudo acadêmico revisado por pares”. E constata que, “quaisquer que sejam os argumentos relativos a cada caso em particular, o resultado tem sido estreitar constantemente os limites do que pode ser dito sem a ameaça de represália”.

Trata-se, portanto, de um clima oposto ao que se deve esperar de um ambiente no qual se respeitam as liberdades. Por exemplo, a liberdade de expressão significa precisamente que cada um deve dispor de tranquilidade para expressar o que bem entender, sem medo de represália ou punição. Não pode haver em um Estado Democrático de Direito mais limites à liberdade que aqueles determinados pela lei.

No entanto, os autores da carta afirmam que “a livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, está se tornando cada vez mais restrita”. A atitude de censurar quem pensa de forma diferente já não está restrita a alguns grupos extremistas. Ela “está se expandindo em nossa cultura”, denunciam.

Música | Inma Cuesta - Una de esas noches sin final

Poesia | Fernando Pessoa - Dela Musique

Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas,
A figura dela emerge e eu deixo de pensar...

Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo...

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago....

... As duas figuras sonhadas,
Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha,
E uma suposição de outra coisa,
E o resultado de existir...

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras
Na clareira ao pé do lago?
( ... Mas se não existem?...)
... Na clareira ao pé do lago?...