terça-feira, 21 de abril de 2020

Opinião do dia – Ulysses Guimarães*

A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo.

A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca.

Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.

Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra.

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. (Aplausos)

*Discurso na promulgação da Constituição, 5/10/1988.

Bolsonaro tem sido um fator de desestabilização – Editorial | O Globo

Em suas idas e vindas, presidente ataca as instituições e recua, mas com isso aumenta as tensões no país

Pode ser conveniente ao político Jair Bolsonaro avançar e recuar no seu radicalismo, mas não atende às exigências do cargo de presidente da República. A fórmula do ex-capitão de aumentar a carga ideológica do seu discurso de extrema direita para conclamar as claques que o apoiam quando se sente fragilizado, para depois voltar atrás, aumenta tensões já criadas pela maior crise da história ainda em sua fase inicial, também degrada a atmosfera política e atrapalha o próprio governo em ações para reduzir o número de mortes na epidemia da Covid-19 e conter ao máximo os estragos que a recessão já provoca no emprego e na área social. Bolsonaro presta um desserviço à nação e a ele.

Por cálculo político, preocupado apenas com os efeitos na economia causados pelo isolamento social — a única forma eficaz de se conter a expansão do vírus Sars-CoV-2 e dar tempo para o sistema de saúde conseguir salvar vidas —, o presidente deseja acelerar a volta das atividades econômicas a qualquer preço, e nisso tem o apoio das falanges bolsonaristas mais radicais que veem no Congresso e no Supremo dois obstáculos a seu intento. Têm razão. Para evitar decisões alucinadas do Executivo é que também existem o Legislativo e o Poder Judiciário.

Assim, as carreatas convocadas pelas redes bolsonaristas, alegadamente em favor da “volta ao trabalho”, para grandes cidades no domingo, transformaram-se em atos contrários à Constituição — favoráveis a um golpe militar, à reedição do funesto AI-5, ao fechamento do Congresso e do Supremo. O resto, a História ensina, vem por força da lei da gravidade: prisões, violência sem freios etc. E Bolsonaro, em Brasília, aderiu a este ato de agressão à Carta, em frente ao Quartel-General do Exército, o Forte Apache.

O preço da pusilanimidade – Editorial | O Estado de S. Paulo

Diante das bravatas bolsonaristas, pode-se riscar uma linha no chão e dizer que, deste ponto em diante, é o terreno do intolerável

O presidente Jair Bolsonaro assumiu de vez que é candidato a caudilho. Em comício para seus simpatizantes, de caráter escandalosamente golpista, anunciou: “Nós não queremos negociar nada. Queremos é ação pelo Brasil. Chega da velha política. Acabou a época da patifaria. Agora é o povo no poder. Lutem com o seu presidente”.

Não é possível dizer que Bolsonaro desta vez passou dos limites, pois, a rigor, ele já os havia ultrapassado quando, ainda militar, se insubordinou ou então, quando deputado, violentou o decoro parlamentar seguidas vezes. No primeiro caso, recebeu uma punição branda; no segundo, nem isso. Ou seja, a pusilanimidade das instituições ao lidar com Bolsonaro deu-lhe a segurança de que, para ele, não há limites, salvo os ditados por seu projeto autoritário de poder.

É reconfortante, no entanto, observar que, desta vez, integrantes de todas as instituições da República se manifestaram com firmeza contra mais essa afronta de Bolsonaro e de seus seguidores à democracia. Até mesmo o procurador-geral da República, Augusto Aras, que vinha se omitindo ante a escalada bolsonarista, anunciou a abertura de um inquérito para investigar “fatos em tese delituosos envolvendo a organização de atos contra o regime da democracia representativa brasileira”. O presidente não está entre os investigados, porque não há indícios de que tenha ajudado a organizar o comício, mas o simples fato de o procurador Aras ter qualificado como atentatório à democracia um ato que teve como sua estrela o presidente da República deveria ser suficiente para embaraçar Bolsonaro.

Mas será difícil constranger o presidente, cuja desconsideração pela opinião alheia, salvo quando é a dos filhos ou dos bajuladores que o cercam, é notória. Diante da repercussão negativa de seu discurso autoritário, o presidente, como sempre, tratou de minimizar o fato, insultando a inteligência de todos. No dia seguinte à afronta, Bolsonaro negou que tivesse atacado os demais Poderes e disse que, “no que depender do presidente Jair Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”.

Golpista que mia – Editorial | Folha de S. Paulo

Presidente apoia ato antidemocrático; Carta e instituições saberão silenciá-lo

Jair Bolsonaro agrediu a Constituição quando discursou no domingo (19) em favor à manifestação que defendia a volta da ditadura. Não foi a primeira vez em que o presidente se reuniu com o “gabinete do ódio” para escancarar na sequência suas aptidões ditatoriais.

À diferença do que faz parecer Bolsonaro em sua retórica de apoio ao ato golpista, não é a velha política ou qualquer outra quimera do gênero que o impede de governar.

Sua administração é obstruída, desde o início, pela pequenez dos objetivos de um mandatário cujo horizonte mental não vai além de multas de trânsito, porte de armas e bate-bocas em redes sociais.

O que ele diz querer neste momento —e serviu de pretexto para a algazarra dos celerados de domingo— constitui tão somente seu desejo patético de subverter a democracia no Brasil.

Concordam as autoridades sanitárias, praticamente sem dissenso, que não chegou a hora de relaxar as medidas de isolamento social imprescindíveis para evitar uma sobrecarga do sistema hospitalar.

O golpista da carreata não tem seus arroubos contidos apenas por governadores e prefeitos, Congresso e Supremo Tribunal Federal. É desobedecido também por seus subordinados, como o ministro da Saúde, o novo ou o anterior, e os generais palacianos, que com espírito público fazem o possível para enfrentar a calamidade.

Bolsonaro investe contra alvos fáceis, dados os conhecidos e arraigados vícios do sistema político, do Legislativo e do Judiciário brasileiros. A alternativa que sugere, agora com saliência inédita, é personalista, populista e autoritária.

Seu discurso encontra eco apenas em uma minoria fanática que pode clamar por AI-5 como mera palavra de ordem, sem noção de seu tétrico significado.

Com todas as suas imperfeições, a política e os contrapesos da democracia vão dando as melhores respostas à crise. Por interesse eleitoral ou não, governadores e prefeitos trataram de proteger seus cidadãos; a mesma motivação deve guiá-los no abandono paulatino dos regimes de quarentena.

Não sem falhas, excessos e oportunismos, deputados e senadores formularam as providências mais importantes até aqui para mitigar o impacto da inevitável recessão sobre o emprego, a renda e o caixa dos entes federativos. Enquanto isso, Bolsonaro vociferava contra inimigos imaginários.

Que as instituições —e a Constituição— façam do rugido golpista um miado sem consequências.

Merval Pereira - Quem controla?

- O Globo

Quem manda é a Constituição. Não Bolsonaro, embora ele tenha tido um ataque de Luiz XIV ao dizer ‘Eu sou a Constituição’

A melhor definição do momento atual foi dada pelo vice-presidente Hamilton Mourão outro dia, perguntado como iam as coisas.“Tudo sob controle”, respondeu o General, para complementar: “Só não se sabe de quem”.

A nota do ministério da Defesa de ontem, reafirmando que “as Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do País, sempre obedientes à Constituição Federal”, foi uma tentativa de mostrar quem está no controle. Importante é que o recado é claro: quem manda é a Constituição.

Não Bolsonaro, embora ele tenha tido um ataque de Luiz XIV ao dizer “Eu sou a Constituição”. Nem tampouco os próprios militares, pois tão nocivo quanto um auto-golpe, seria um golpe militar para tirar o presidente eleito democraticamente. Se for para sair, terá que ser através de métodos democráticos, como o “golpe” constitucional do impeachment.

Foi o desfecho de mais uma crise desencadeada pela retórica do presidente Bolsonaro no domingo, quando avalizou, com sua presença e discurso, uma manifestação que pedia a intervenção militar com o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília, no dia do Exército.

Míriam Leitão - O risco Bolsonaro sobre a democracia

- O Globo

Jair Bolsonaro repete o caminho de Hugo Chávez, militariza o governo, ataca as instituições e diz que com ele o povo está no poder

O presidente Bolsonaro tentou consertar ontem o que havia feito na véspera, como é de seu estilo. Mas, ao fazer isso, mostrou de novo que de democracia ele não entende. “A Constituição sou eu.” Não é não. A Lei Maior está sobre todos nós, e a ela todos devemos respeito, inclusive o presidente. O ato ao qual compareceu no domingo na prática pedia o fim da Constituição como foi pactuada entre os brasileiros em 1988, porque o que estava em faixas, cartazes e palavras de ordem era a defesa do fechamento do Congresso, do Supremo e a edição de um novo AI-5.

As Forças Armadas ficaram em silêncio durante um dia inteiro. No começo da noite de ontem, o Ministério da Defesa disse que as Forças Armadas trabalham “com o propósito de manter a paz e a estabilidade” e disse que são obedientes à Constituição. Em seguida, a nota passa a falar do assunto que deveria concentrar todas as atenções de Bolsonaro, a pandemia para a qual “nenhum país estava preparado”. Eu falei com dois generais que participam do governo. Um deles disse que o Estado Democrático de Direito é o pilar desta geração que está agora no comando das Forças Armadas. “Não existe a mínima possibilidade de aventuras golpistas.” Mas esse integrante do governo acha que o único reparo a fazer é o local. “Foi ruim o local, nada além disso.” Outro general disse que Bolsonaro é “um ex-militar que virou político” e completou que tem absoluta certeza de que as “Forças Armadas não se prestam a aventuras”.

Carlos Andreazza - O ar do vírus e do golpismo

- O Globo

Bolsonaro quer o choque e investe na desordem

Bolsonarismo aula zero: técnica desviante. Apertou aqui, abre-se outro pasto para o gado mugir ali. O presidente é mestre em lançar o que se chama de cortina de fumaça. Sob forte pressão, acuado pelas consequências de suas escolhas irresponsáveis ante a peste, informado de que seu comportamento sociopata no curso de crise sem precedentes lhe esvazia a base social, Jair Bolsonaro reage cultivando modalidade de conflito que o coloque em zona de conforto e atraia a atenção da sociedade a um ponto distante daquele em que se dá seu grotesco chamamento a que o povo vá às ruas respirar o vírus.

Bolsonaro é um girassol publicitário cujo sol é o pulso das redes. Esse é o termômetro do populista do século XXI. Ele decerto se baliza em pesquisas. Não apenas as que apontam perda de apoio em decorrência de haver se referido à Covid-19 como gripezinha; mas também as que lhe indicam o remédio para minimizar o estrago: o discurso lavajatista de combate à corrupção, de criminalização da atividade política e de luta contra o sistema “patife”.

O lavajatismo é o mais eficaz agente aglutinador que atua no país. É o próprio espírito do tempo. A melhor materialização da mentalidade autoritária a que vamos submetidos sem nem sequer perceber — a mesma que concorreu decisivamente para a eleição de Bolsonaro. Ele sabe que a sociedade tem raiva da figura do político e aversão à ideia de elite política. De modo que, quando ante a mais mínima desmobilização de sua militância, logo sopra o apito lavajatista. Opera assim com maestria.

Não é, portanto, que seja o popular, o amado, centro irradiador de popularidade e atração. Não. Com rara capacidade para identificar oportunidades e com extraordinária vocação para interpretar, Bolsonaro se associa a demandas populares, aquelas que disparam o gatilho da comoção,e as incorpora. Faz isso há décadas — e, sob todos os holofotes, diariamente, há 16 meses.

Fico perplexo com a constatação de que haja alguém ainda surpreso com o comportamento revolucionário — palavra que, registro, tenho na pior conta — do presidente no último domingo. O sujeito procede dessa maneira desde que assumiu, líder escancarado de um fenômeno reacionário de ímpeto para a ruptura. Alegoricamente, está sobre um carro (poderia ser boleia de caminhão), diante de quartel, projetando discurso autocrático a uma plateia que pede intervenção militar e ostenta pregações por fechamento do Congresso e do Supremo, desde que assumiu.

Bernardo Mello Franco - A tática da intimidação

- O Globo

Jair Bolsonaro tirou o domingo para praticar seu esporte preferido: a ameaça à democracia. Mais uma vez, as instituições reagiram com tuítes e notas de repúdio

Jair Bolsonaro tirou o domingo para praticar seu esporte preferido: a ameaça à democracia. O presidente participou de uma manifestação que pedia o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. As faixas defendiam uma “intervenção militar”, eufemismo rasteiro para golpe.

A ambição autoritária de Bolsonaro não é novidade, mas desta vez ele conseguiu inovar. O capitão improvisou um palanque em frente ao Quartel-General do Exército. Ao escolher o cenário, buscou passar a mensagem de que os militares estariam a seu lado numa ofensiva contra as instituições.

Sempre que se sente enfraquecido, o presidente lança a carta da radicalização. A agitação dominical serviu para reagrupar sua tropa, que estava abatida desde a demissão do ministro da Saúde. Os extremistas voltaram a mobilizar as redes e organizaram carretas contra as medidas de isolamento social.

Bolsonaro não quer governar. Isso o obrigaria a ler relatórios, assumir responsabilidades e abandonar o discurso populista sobre o coronavírus. Ele prefere terceirizar os problemas e eleger bodes expiatórios. Após a queda de Henrique Mandetta, o novo alvo é Rodrigo Maia.

José Casado - Os novos sócios de Bolsonaro

- O Globo

Ele atravessou os últimos 15 dias em acertos com líderes do Centrão

O negro gato desfilou diante das lentes do fotógrafo Orlando Brito e buscou abrigo do sol de domingo embaixo do automóvel presidencial, estacionado numa quadra da Asa Norte, em Brasília. No apartamento em frente, Jair Bolsonaro e filhos degustavam milho com ketchup, ao lado de uma metralhadora na parede.

O negro gato fugiu antes de o presidente subir no carro preto e seguir para o QG do Exército. Ativistas o aguardavam, como vivandeiras mascaradas, temerosas da morte pelo vírus, invisível e democrático na contaminação. Apelavam para uma ditadura liderada, claro, por Bolsonaro.

Na cena havia algo fora da ordem institucional. O comandante em chefe das Forças Armadas usava a portaria do QG do Exército para um comício planejado, com coro contra o “bando de ladrões no STF, Senado e Câmara”. Presidia um ato de potencial desqualificação do poder militar, inédito também porque jamais se permitiu comício no portão do Forte Apache, como é conhecido o Setor Militar de Brasília. Bolsonaro sorria e, frequentemente, tossia.

Luiz Carlos Azedo - O jogador

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Seu gesto pode ser interpretado como crime de responsabilidade, se houver ligações entre os organizadores do ato de domingo e o chamado ‘gabinete do ódio’”

O pior dos mundos nesta pandemia de coronavírus no Brasil seria uma crise institucional, num momento em que as instituições políticas precisam convergir para combater a doença e mitigar os seus efeitos na economia. Em circunstâncias normais, o maior interessado nesse esforço coordenado seria, sem dúvida, o presidente da República, mas acontece que Jair Bolsonaro faz tudo ao contrário. Como no domingo, quando foi ao ato de extrema-direita em frente ao quartel-general do Exército para apoiar manifestantes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e uma intervenção militar.

É difícil compreender seu comportamento, que foge à racionalidade, num momento tão dramático da vida nacional. O gesto de domingo, como não poderia deixar de ser, aprofundou o isolamento político de Bolsonaro. Foi repudiado pelos ministros do Supremo, pelos líderes da Câmara e do Senado, por instituições da sociedade civil e provocou um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para que o STF apure as responsabilidades pela organização do ato, que atenta contra a democracia, nos termos da Lei de Segurança Nacional. Bolsonaro foi poupado pelo Ministério Público Federal, mas o presidente do Cidadania, Roberto Freire, e o líder do partido na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (SP), se encarregaram de requerer à PGR que investigue também os que participaram do ato.

Ontem, ao sair do Palácio da Alvorada, Bolsonaro minimizou os acontecimentos de domingo. Disse que em nenhum momento endossou os pedidos de fechamento dos demais poderes e de intervenção militar. Ironizou: “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou presidente da República (…). Eu estou conspirando contra quem, meu Deus do céu? Falta um pouco de inteligência para aqueles que me acusam de ser ditatorial. O que eu tomei de providência contra a imprensa? Contra a liberdade de expressão?”

Mas Bolsonaro revelou preocupação com o que aconteceu, quando nada porque sabe que seu gesto pode ser interpretado como crime de responsabilidade, sobretudo se houver ligações efetivas entre os organizadores do ato e o chamado “gabinete do ódio”, o grupo ideológico que o assessora na Presidência. “Em todo e qualquer movimento tem infiltrado, tem gente que tem a sua liberdade de expressão. Respeite a liberdade de expressão. Pegue o meu discurso, dá dois minutos, não falei nada contra qualquer outro poder, muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso, é invencionice, é tentativa de incendiar uma nação que ainda está dentro da normalidade”, disse Bolsonaro, em defesa prévia.

Hamilton Garcia de Lima* - A covid-19, os interesses e a política

Faz um mês estamos imersos em intensa discussão sobre a COVID-19, sob a ótica dos infectologistas e epidemiologistas, o que foi importantíssimo para aprendermos como lidar com a moléstia e sua propagação – não obstante as inevitáveis tolices, como a da ineficácia das máscaras para a proteção individual e coletiva. Aprendida a lição, cuja divulgação não pode cessar, é chegada a hora de abrirmos o leque da discussão sobre a pandemia, sobretudo em relação a seus efeitos de médio e longo-prazos.

Tornada pública em dezembro de 2019 pelas autoridades chinesas – depois de três semanas de abafamento por meio de prisões e censura –, a epidemia está provocando, além de muitas mortes, um colapso nas economias, em escala mundial, cujos desdobramentos políticos ainda são incertos. O consenso é que sérias consequências sociais advirão do esforço de contenção da doença, embora se esteja longe de qualquer convergência programática de como lidar com o problema.

A crença ingênua de que a emergência faria cessar a disputa entre indivíduos e povos pela supremacia não resiste à simples observação da vida cotidiana. Ao contrário, o medo e as incertezas se constituem em ingredientes ainda mais picantes em meio aos dilemas e desafios políticos e econômicos que o mundo e o Brasil já vinham enfrentando, onde as fraturas entre sociedade e Estado apresentam cenários potencialmente explosivos de solução.

No caso brasileiro, o Governo Bolsonaro saiu em desvantagem ao menosprezar os sinais vindos do exterior e tentar minimizar os riscos e custos locais da epidemia – mesmo sendo observador privilegiado do erro dos governos europeus, enredados em querelas ideológicas sobre a globalização –, deixando seu Ministério sem rumo e o terreno aberto aos opositores acantonados nos Governos estaduais e no Congresso.

Já em fevereiro, a evolução da COVID-19 no Irã e na Itália chamavam atenção pelo crescimento rápido dos casos e mortes, e, embora o intercâmbio turístico entre Brasil e Itália fosse intenso, o Governo, por meio do Ministério da Saúde, se limitou a alterar a definição de casos suspeitos, incluindo pacientes provenientes destes países – no mesmo dia, o primeiro caso, importado da Itália, foi identificado em São Paulo –, deixando abertos portos e aeroportos sem qualquer alerta ou triagem sanitária, possibilitando a penetração livre do vírus no país.

A medida capital para frear o início da doença, em todos os países depois da China – e tempo, nesses casos, é vida, como se viu no bem sucedido caso alemão –, seria o confinamento temporário dos viajantes e/ou o fechamentos das fronteiras, o que, àquela altura, parecia inconcebível pelo perfil do público afetado (turistas e negociantes) e pelas políticas abusivas das empresas aéreas e hoteleiras, resistentes ao cancelamento/adiamento das viagens. A resistência também vinha dos devotos da globalização, que tachavam a medida de xenófoba e inócua, como fez o comentarista Demétrio Magnoli, na GloboNews, às vésperas do fechamento das fronteiras europeias, críticando os líderes da extrema-direita europeia nos seguintes termos: “o vírus não tem nação”.

Ricardo Noblat - À falta do comunismo, Bolsonaro é quem ameaça a democracia

- Blog do Noblat | Veja

Um presidente subversivo

Tem algo de muito errado em um país onde o ministro da Defesa, depois de reunir-se com os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, solta uma nota para dizer que as Forças Armadas renovam o compromisso de respeitar a Constituição.

Um trecho da nota: “As Forças Armadas trabalham para manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal”. O que pôs em dúvida o compromisso dos militares de respeitar a Constituição? Eles teriam alternativa?

A nota, em seguida, diz que o momento que o país atravessa exige “entendimento e esforço de todos os brasileiros” e ressalta que nenhum país está preparado para uma pandemia. A maioria dos brasileiros se esforça para escapar ao Covid-19.

De fato, nenhum país está preparado para enfrentar uma pandemia, ainda mais essa que só por aqui, do final de fevereiro para cá, já contaminou 40.581 pessoas, matando 2.575 até ontem. Nas últimas 24 horas, foram 1.927 novos casos e 113 mortes.

O que obrigou o ministro da Defesa a soltar a nota foi a reação de políticos, ministros togados e entidades de classe à participação do presidente da República em uma manifestação de rua dos seus devotos que pediu a volta da ditadura.

Bolsonaro, ontem, negou que tivesse pregado a volta da ditadura. Mas com sua presença endossou o pedido dos seus seguidores. A manifestação foi encomendada por ele. Bolsonaro sabia de antemão que seria uma manifestação golpista.

Eliane Cantanhêde - Chance zero?

- O Estado de S.Paulo

Além de recados, cúpula militar tem de manifestar claramente repúdio a golpes e AI-5

Enquanto Jair Bolsonaro fazia discurso inflamado em manifestação não só contra o Supremo e o Congresso, mas a favor de um golpe militar e a volta do famigerado AI-5, um de seus filhos divulgava o vídeo de uma fila de sujeitos praticando tiro, alguns metidos em camisetas pretas com o rosto do presidente e todos gritando: Bolsonaro!

No mesmo domingo, o presidente e seus três filhos mais velhos, um senador, um deputado federal e um vereador licenciado, postavam a foto do café da manhã familiar com uma curiosidade: o quadro na parede não era de uma natureza morta ou da tradicional Santa Ceia, tão comuns nos lares brasileiros, mas de uma metralhadora AK-47, deveras inspiradora.

No dia seguinte, circulava um vídeo em que várias dezenas de soldados corriam num calçadão da zona sul do Rio e no fim se aglomeravam, ainda na praia, à luz do dia, gritando “Bolsonaro” e “mito”. Fariam isso sem orientação de superiores? Esses superiores pediram autorização ao Comando Militar do Leste? O comandante consultou o Comando do Exército em Brasília? Afinal, pode?

O que mais impressionou civis e até militares, porém, foi o local onde Bolsonaro discursou para militantes pró-golpe e AI-5: o Setor Militar Urbano, com o Quartel-General do Exército ao fundo. Um oficial pergunta: e se os políticos decidirem fazer protesto ali? Eu acrescento: e se a CUT e o MST também?

Cláudio Gonçalves Couto* - Presidente sempre retrocede taticamente após atacar

- O Estado de S.Paulo

Questionado, desconversa, sai pela tangente, acusa má interpretação ou distorção – para, em seguida, retomar o estilo que lhe distingue.

Nos últimos dias, Bolsonaro reiterou o comportamento que adota há muito tempo: o morde-e-assopra. No domingo, prestigiou manifestantes que, diante de um quartel, em Brasília, clamavam por intervenção militar com Bolsonaro no poder, fechamento do Congresso Nacional e do Supremo, novo AI-5. Não só lhes acenou, mas proclamou que estava ali porque neles acreditava. Disse nada negociar, pois acabou a patifaria da velha política e agora o povo ocupa o poder por meio de seu presidente.

Nem um só gesto a desencorajar clamores por ruptura institucional, golpe militar e encerramento dos demais Poderes. Ao enaltecer os manifestantes, endossou seus anseios; dizendo que acreditavam no Brasil ao lhe prestigiar diante de um quartel, Bolsonaro equiparou-se ao próprio País. Síntese do populismo autoritário.

Nesta segunda-feira pela manhã, diante do Alvorada, aproveitou o conveniente apelo de um seguidor para repelir ideia que, na véspera, endossara: fechar os demais Poderes. Por que o fez? Pressionado por militares? Assustado com a repercussão? Tendo como parâmetro a longa trajetória de Bolsonaro: recuou porque sempre retrocede taticamente após atacar. Porém, o “mito” se construiu não com recuos, mas com ataques. Segue idêntico, sempre avançando mais que recuando.

Fez assim com manifestações misóginas, racistas, homofóbicas, autoritárias e desumanas. Questionado, desconversa, sai pela tangente, acusa má interpretação ou distorção – para, em seguida, retomar o estilo que lhe distingue.

*Cientista político, coordenador do mestrado profissional em gestão e políticas públicas da FGV Eaesp

Pedro Fernando Nery* - A desigualdade planejada

- O Estado de S.Paulo

Sentenciamos os mais pobres a um futuro pior ao empurrá-los para a periferia distante

A história humana é marcada pela tensão entre os benefícios de nos aglomerarmos em cidades e os custos das doenças infecciosas. Assim observou Matthew Yglesias, do jornal Vox, sobre o coronavírus. Já no ótimo livro Cidade Caminhável, pré-covid, o urbanista Jeff Speck pontificara sobre as vantagens do adensamento, criticando as espaçadas cidades americanas baseadas em desenhos tidos como mais salubres.

Os ganhos econômicos da cidade densa podem ser vislumbrados em um “experimento” do governo americano no século passado, que pagou para que famílias pobres se mudassem para partes ricas de sua cidade. Como mostrou Raj Chetty, de Harvard, a nova vizinhança se mostrou fundamental para a mobilidade social. Isto é, o bairro em que uma criança cresce afeta o seu salário quando adulto.
Ainda que o mecanismo não seja completamente compreendido pelos economistas, especula-se que estar mais próximo de melhores serviços e de pessoas mais escolarizadas e de maior renda contribua para o resultado. Assim, cidades com regras rígidas de construção, ao empurrar os mais pobres para periferias distantes, os sentenciariam a um futuro pior.

Ninguém deve fazer isso tão bem quanto a aniversariante do dia, Brasília. Passadas seis décadas da sua inauguração, sua utopia de igualdade deu lugar a umas das capitais mais desiguais do Brasil. Seu zoneamento rígido faz com que parte expressiva da população tenha de viver bem longe do seu Plano-Piloto. A partir dali, garimpam oportunidades em uma economia em que boa parte da renda é distribuída pelo instrumento elitista do concurso público.

Ranier Bragon - Os cúmplices

- Folha de S. Paulo

É preciso parar de tratar Bolsonaro como se ele fosse apenas um moleque travesso

Perplexos, políticos não sabem como lidar com Jair Bolsonaro. Apelo ao bom senso, de nunca adiantou. Impeachment ainda não tem força para decolar, avaliam. Ignorá-lo? Mandetta está aí para provar que não dá. Sobram as notas de repúdio que, feitas por quem parece estar pisando em ovos, já merecem todas elas uma nota de repúdio.

Como agir? Ficar como os engravatados da brilhante charge de João Montanaro, a refletir sobre o limite do tolerável até que nenhum mais haja?

Um bom começo poderia ser parar de tratar o sr. Jair Messias Bolsonaro, 65 anos, cinco filhos, mais de 30 anos de velha política nas costas, como um mero moleque travesso.

O método é o mesmo. Avanço, choque, recuo tático. Num dia, ele trepa numa caçamba para estimular ato pró-ditadura de um bando de delinquentes idiotizados. No outro, dá uma amenizada, por assim dizer.

Hélio Schwartsman - É ético torcer para alguém morrer?

- Folha de S. Paulo

Ele continua a atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias

Ele fez de novo. Em plena pandemia, participou de um protesto com pauta golpista e provocou aglomeração. Ao final de seu discurso, apareceu uma tossezinha suspeita. A pergunta que se impõe é se é ético torcer para que Bolsonaro contraia uma forma grave de Covid-19 e deixe de atrapalhar o trabalho das autoridades sanitárias.

A resposta depende do tipo de ética que você abraça. Para o consequencialista, que valora as ações pelos resultados que elas produzem, até a morte de um líder inepto pode ser classificada como positiva, se ela, por exemplo, acarretar mais vidas poupadas do que perdidas. O bonito das éticas consequencialistas é que elas são perfeitamente igualitárias. A vida do presidente vale o mesmo que a de um mendigo viciado em crack.

Assim, aqueles que estão convencidos de que a atitude de Bolsonaro, ao fragilizar o isolamento, resultará em mais doença e mais mortes estão filosoficamente legitimados a torcer para que ele experimente o seu "resfriadinho".

Pablo Ortellado* - Impasse

- Folha de S. Paulo

Ameaça às instituições sugere necessidade de impeachment. Apoio consolidado ao presidente desaconselha a medida

Embora ainda possa enganar incautos com sua estratégia da confusão, feita de avanços audaciosos seguidos de recuos táticos, não deveria haver mais dúvida de que Bolsonaro persegue um regime iliberal como o de Orbán ou Maduro.

Como seu projeto não busca ruptura, mas corrosão paulatina e enfraquecimento gradual dos contrapesos institucionais, não há linha clara demarcada a ser cruzada. E como, a despeito da sua irresponsabilidade, seu apoio segue firmemente estacionado em 35% do eleitorado, sua remoção não parece politicamente viável. Esse é nosso impasse: É preciso remover Bolsonaro, mas não há condições para um impeachment.

Podemos esperar que os fatos se imponham: que quando tenhamos no Brasil imagens chocantes como as que vimos em Bergamo, Guayaquil ou Nova York, o discurso negacionista perca verossimilhança e a base de apoio do presidente se reduza a 10% ou menos do eleitorado, o que permitiria sua remoção, ainda que de forma traumática.

Pode ser, porém, que o isolamento imposto pelos governadores tenha bom resultado e a epidemia seja contida em níveis compatíveis com a capacidade do SUS, o que poderia respaldar o discurso de retomada das atividades econômicas.

Pode ser também que, a despeito de uma situação caótica, o bolsonarismo consiga oferecer explicações que funcionem com seu público, atribuindo a responsabilidade pela epidemia ao complô chinês, ao descaso com a cloroquina ou às aglomerações no Carnaval.

Se, por algum desses motivos, Bolsonaro permanecer com apoio e seguir promovendo o desgaste gradual das instituições, vamos ser obrigados a enfrentar o impasse.

Joel Pinheiro da Fonseca* – O normal é uma utopia

- Folha de S. Paulo


Imagine não ser governado por um psicopata ignorante cercado de puxa-sacos que estimulam o medo

Toda semana, um novo “absurdo” do presidente monopoliza as discussões. Já passou da hora de as instituições agirem. Enquanto isso não acontece, em vez do desgosto de contemplar a realidade, vou fazer o que nos resta neste isolamento: sonhar com o Brasil que poderia ser. Encarnando o John Lennon de “Imagine”, convido o leitor a imaginar um mundo ideal.

Imagine se o presidente, em vez de fazer um discurso —entrecortado por estranhas tosses secas— para inflamar centenas de manifestantes que pediam um novo AI-5, fosse às TVs e às redes sociais para acalmar a população. Mostraria que todos estamos juntos no combate ao vírus, que a quarentena traz sim custos enormes, mas que o governo está preparado para ajudar financeiramente os mais vulneráveis e impedir o desemprego em massa e a quebradeira generalizada de empresas.

Assolados pela pior ameaça de saúde pública dos últimos cem anos, nem passaria pela cabeça da Presidência trocar o ministro da Saúde no momento crítico da epidemia pelo simples motivo dele seguir as orientações de epidemiologistas. Tampouco nós teríamos motivo para temer que seu substituto fosse um pau mandado seguidor das ideias de Olavo de Carvalho, figura que aliás nada teria a ver com a condução de nenhuma parte do governo.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Golpista que mia – Editorial | Folha de S. Paulo

Presidente apoia ato antidemocrático; Carta e instituições saberão silenciá-lo

Jair Bolsonaro agrediu a Constituição quando discursou no domingo (19) em favor à manifestação que defendia a volta da ditadura. Não foi a primeira vez em que o presidente se reuniu com o “gabinete do ódio” para escancarar na sequência suas aptidões ditatoriais.

À diferença do que faz parecer Bolsonaro em sua retórica de apoio ao ato golpista, não é a velha política ou qualquer outra quimera do gênero que o impede de governar.

Sua administração é obstruída, desde o início, pela pequenez dos objetivos de um mandatário cujo horizonte mental não vai além de multas de trânsito, porte de armas e bate-bocas em redes sociais.

O que ele diz querer neste momento —e serviu de pretexto para a algazarra dos celerados de domingo— constitui tão somente seu desejo patético de subverter a democracia no Brasil.

Concordam as autoridades sanitárias, praticamente sem dissenso, que não chegou a hora de relaxar as medidas de isolamento social imprescindíveis para evitar uma sobrecarga do sistema hospitalar.

O golpista da carreata não tem seus arroubos contidos apenas por governadores e prefeitos, Congresso e Supremo Tribunal Federal. É desobedecido também por seus subordinados, como o ministro da Saúde, o novo ou o anterior, e os generais palacianos, que com espírito público fazem o possível para enfrentar a calamidade.

Música | Gilberto Gil / Roberta Sá - Afogamento

Poesia | Graziela Melo - Palavras

Palavras!
São diletas
filhas
do tempo,

amigas
da solidão
reproduzem
dores
da alma,

clamores
no
coração!!!

Palavras,
as que
causam
espanto!!!

Tristeza
ou
alegria,

as vezes
pronunciadas
à noite...
são
desmentidas
de dia!!!

Palavras!
algumas
as mais
verdadeiras,

outras,
mentiras
corriqueiras,

flácidas
lânguidas,
derretem
à luz
do sol!!!

Existem
os belos
vocábulos

que soam
aos nossos
ouvidos

como
o canto
de um
rouxinol!!!