A três anos do bicentenário da independência, especialistas refletem sobre os caminhos para o país e apontam uma nação na encruzilhada
Por Cristian Klein e Rafael Rosas | Eu & Fim de Semana | Valor Econômico
RIO - Do país em formação de José Bonifácio à terra em transe de Jair Bolsonaro (PSL), o Brasil que chegará em 2022 não está para festas. A três anos do bicentenário da Independência, as preocupações são imediatas - em meio à maior crise econômica, política e ambiental da história -, mas o marco já chama à reflexão especialistas que apontam uma nação na encruzilhada. Convidados pelo Valor, eles respondem a duas perguntas básicas: que projeto de país trouxe o Brasil até aqui e qual o levará adiante.
De uma sociedade jovem, católica e em crescimento por longos períodos, o Brasil do bicentenário terá o desafio de se reencontrar como uma nação envelhecida, evangélica e presa à armadilha da renda média, em que está enredada desde a década de 1980, afirma o cientista político e professor da FGV-Rio Octavio Amorim. A dificuldade de se construir um projeto de país não vem apenas da aguda polarização política ou do desequilíbrio fiscal na economia. Passa pela perda da janela demográfica. Depende ainda das consequências de um fenômeno mundial que afeta a sobrevivência da ordem constitucional.
"A questão da democracia é um problema. Há uma propensão autoritária grande do atual presidente. Mas esse nacional-populismo não é uma jabuticaba brasileira. Está nos Estados Unidos, na Itália, na Hungria, na Turquia, nas Filipinas, na Índia. O Brasil nunca esteve à margem das grandes ondas mundiais", diz Amorim.
Se há quase 200 anos as terras tupiniquins eram afetadas pelos ventos internacionais do liberalismo da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas, que enfraqueceram a metrópole Portugal, hoje o Brasil balança com as turbulências da reação iliberal à globalização econômica. Para Renato Lessa, professor associado de filosofia política da PUC-Rio, o projeto de país baseia-se, antes de qualquer coisa, na "recuperação da normalidade", "do processo civilizatório" e na desintoxicação do ambiente político. Com a Itália, diz, o Brasil se tornou um laboratório de teste para "um mundo distópico, protagonizado por sujeitos que querem desconstruir".
Lá fora, o grande projeto, não de um país, mas de um continente inteiro, erguido em torno da União Europeia, é atacado por líderes como o presidente americano Donald Trump, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson e o ultradireitista italiano Matteo Salvini. Na esteira desses movimentos, o Brasil põe em xeque a concepção e até mesmo os limites de nação, construídos desde a Independência. É o que alerta Lessa e também o professor Matias Spektor, pesquisador de relações internacionais da FGV-SP.
Ponto de convergência entre os especialistas, se o império fracassou, como descreve Amorim, de forma "patética" na economia escravagista, por outro lado o principal legado político dos reinados de Pedro I e Pedro II foi a construção de um território gigantesco com uma única língua. Para Spektor, porém, esse espaço de dimensões continentais - "a distância do Oiapoque ao Chuí é maior do que a de Lisboa a Moscou" - está em risco, seja pela expansão do crime organizado, à frente o Primeiro Comando da Capital (PCC), seja pela crise de países vizinhos, como a Venezuela.
"Nesses casos, tudo que era fronteira segura deixou de ser. É um fenômeno novo para o qual não se tem resposta. A solução não é a militarização, como foi na Colômbia. O processo agora é de erosão, na direção contrária a desses 200 anos, quando o território só aumentou", diz.
Outra concordância entre os especialistas, como o economista José Alexandre Scheinkman e o consultor Darc Costa, é que o único momento claro em que o Brasil teve um projeto consensual de nação - que "uniu elites, esquerda e direita, civis e militares", conforme também pontua Amorim - foi a Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas. O projeto de modernização e de industrialização do país, de estilo nacional-desenvolvimentista, perdurou até o fim da ditadura militar, lembra Costa, presidente do Instituto Brasilidade.
Scheinkman pondera que, a partir da Grande Depressão, o Brasil encampou um projeto que o isolou paulatinamente do restante do mundo. Para o professor de economia da Universidade Columbia, o objetivo foi tornar o país um "minimundo" onde os bens e serviços eram produzidos e consumidos, com pouca conexão com o restante do mundo.
"Esse foi um projeto muito dominante no Brasil, que começa a ser desmontado a partir do governo Collor, embora a partir da década de 1980 as evidências internacionais já apontassem que ele estava fadado ao fracasso", diz Scheinkman, que também é professor emérito da Universidade Princeton.
Ele ressalta que, apesar de já não ter a força de antes, esse projeto do "minimundo" brasileiro "de uma certa maneira continua até hoje". "Esse projeto ainda tem força, evidentemente beneficia uma parte do empresariado", avalia Scheinkman.
Mas Costa, que foi vice-presidente do BNDES, critica o abandono do projeto após a redemocratização, em 1985, em prol de um modelo liberal baseado nos interesses do capital paulista, representados por PSDB e PT, que, por sua vez, foi derrotado na última eleição pela ascensão do fenômeno bolsonarista.
Para Lessa, assim como os líderes congêneres da direita mundial, Bolsonaro é portador de um "desprojeto". "O que vejo no futuro imediato é a desconfiguração da ideia de nação. O Brasil deixa de ser um país e passa a ser um lugar, um território, para se fazer negócio, com um mínimo de regulação. Como era na época da colônia, quando o Brasil não era um país. Era um espaço de predação, inclusive no regime de trabalho, em que podia se usar mão de obra sem qualquer restrição", afirma.
O professor da PUC-Rio diz que a destruição do arcabouço de instituições ligadas ao projeto pós-1930 é a "revolução que está acontecendo no momento", cujo principal aspecto está na figura do ministro da Economia. Paulo Guedes seria "o mais deletério de todos" os "operadores demoníacos" do bolsonarismo, critica. "Esses caras são os bolcheviques de direita. São os primeiros bolcheviques, para valer, que apareceram no Brasil. O velho Partido Comunista era reformista, queria reformas lentas", diz.