terça-feira, 11 de agosto de 2020

Merval Pereira - Os onze

- O Globo

Dois temas da maior gravidade foram enviados esta semana para o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), sem que seus relatores quisessem decidir monocraticamente. O ministro Edson Fachin (foto), mesmo mantendo sua decisão de negar acesso à Procuradoria-Geral da República aos bancos de dados da Operação Lava-Jato, decidiu levar à decisão colegiada a palavra final.  

Também o ministro Gilmar Mendes preferiu enviar para o plenário do STF a decisão da ação do PTB que pretende impedir interpretações que permitam a reeleição para as presidências do Senado e da Câmara dos Deputados na mesma legislatura, proibida pela Constituição.  

A atitude dos dois não tem sido a tônica das decisões dos ministros do Supremo, que não por acaso são chamados de “ilhas”, o que significa que cada ministro é um Supremo, os “onze supremos”, no título do livro dos especialistas Joaquim Falcão, Diego Arguelles e Felipe Rocondo.  

As decisões monocráticas, quando um dos ministros decide sozinho, têm sido majoritárias nos últimos anos no Supremo Tribunal Federal (STF), a ponto de ter atingido em 2017, segundo estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a marca de 89,8% das mais de cem mil decisões daquele ano.   A criação das 1ª e 2ª Turmas, cada uma com cinco ministros, foi uma tentativa bem sucedida de desobstruir o fluxo de processos, mas não o suficiente.

Essa prática tem uma razão básica, o excesso de processos que chegam ao Supremo todos os anos, mais de cem mil, para espanto de outros ministros de Cortes Supremas, como a dos Estados Unidos, que decide por conta própria quais os casos que vai rever desde que, em 1925, para evitar o congestionamento de processos, foi editado um ato nesse sentido.  

A média de processos aceitos na Suprema Corte americana é de cerca de 200 por ano, nada além disso. Outra diferença fundamental: a Suprema Corte dos Estados Unidos só decide em colegiado, e em reuniões secretas. 

Também nos Estados Unidos, cujo sistema judicial nos serve como parâmetro, 97% dos processos criminais são solucionados através de negociação entre promotor público e advogado de defesa, sem interferência de um juiz (“plea bargaining”). Aqui, a Câmara dos Deputados rejeitou na Comissão de Constituição e Justiça a implantação do sistema proposto pelo então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro.  

Com isso, o Supremo continuará sobrecarregado até mesmo com casos criminais, que podem chegar à última instância. Ao contrário, a Câmara aprovou proposta do ministro Alexandre de Moraes que possibilita a negociação e a não persecução penal em crimes mais leves. No debate sobre o excesso de atribuições do Supremo, já houve mesmo a proposta de criação de um novo tribunal superior apenas para tratar de casos criminais, como o mensalão e o petrolão. Mas não prosperou.

A questão das decisões monocráticas tornou-se também um caso político, com a crescente crítica, como a de Bolsonaro contra decisões individuais “de certas pessoas”, referindo-se ao ministro do Supremo Alexandre de Moraes, que autorizara uma ação da Polícia Federal contra apoiadores do presidente acusados de espalharem notícias fraudulentas pelos meios digitais.  

Existe até mesmo em tramitação na Câmara uma proposta de emenda constitucional (PEC) que define que as decisões liminares em ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) só podem ocorrer pela maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF), isto é, seis votos dos 11, proibindo as decisões monocráticas. Outra proposta tenta limitar o número de decisões monocráticas que cada ministro poderá tomar durante o ano.  

Os dois casos enviados ao plenário tratam de questões delicadas politicamente, e a decisão colegiada é a melhor solução para o STF assumir como instituição.  

Correção

Na coluna de domingo, o terceiro parágrafo continha, por engano meu, uma informação errada. Como estava escrito imediatamente acima, o Brasil não é o segundo país com o maior número de mortos por milhão de habitantes, mas o segundo maior em números absolutos.   

Luiz Carlos Azedo - O gosto da governabilidade

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

 “A disputa em torno da manutenção ou não do ‘teto de gastos’, apontada como condição para ‘achatar a curva’ da dívida pública, está instalada dentro do próprio governo e no Congresso“

Houve uma mudança na relação do presidente Jair Bolsonaro com a política. É evidente que o convite, prontamente aceito, ao ex-presidente Michel Temer, para chefiar a missão de solidariedade ao Líbano, aproxima do seu governo de forma irreversível uma força política que sempre teve um papel decisivo para a governabilidade do país: o MDB. Simboliza outra estratégia de governo, que deixa a rota de colisão com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ainda que as tensões com o Judiciário tendam a se manter ao longo do processo, por causa do caso Fabrício Queiroz. Onde há política, há salvação para a democracia representativa.

A postura humanitária de Bolsonaro em relação ao Líbano é até um contraponto à espantosa falta de empatia com as mais de 100 mil famílias enlutadas por causa da covid-19. O luto oficial decretado pelo Congresso e pelo STF não mereceu o mesmo tratamento do Executivo. “Nos próximos dias partirá do Brasil, rumo ao Líbano, uma aeronave da Força Aérea Brasileira, com medicamentos e insumos básicos de saúde, reunidos pela comunidade libanesa radicada no Brasil. Também estamos preparando o envio, por via marítima, de 4.000 toneladas de arroz para atenuar as consequências das perdas de estoque de cereais destruídos na explosão”, anunciou o presidente da República, que até hoje não nomeou um ministro efetivo para a Saúde. Em algum momento, a pandemia cobrará seu preço.

Mais uma razão para a avaliação de que o gesto em relação ao Líbano vai além das motivações humanitárias e mira o futuro da relação do governo com o Congresso, uma vez que o MDB tem chances reais de liderar tanto a Câmara como o Senado. O deputado federal Baleia Rossi (SP), atual presidente do MDB, pode vir a ser o nome apoiado pelo deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) à própria sucessão. Além disso, no Senado, embora o presidente Davi Alcolumbre (DEM-AP) tenha a ambição de se reeleger –– quebrando a tradição —, a bancada do MDB já é a principal força de sustentação do governo na Casa. O líder do governo, Fernando Bezerra (PE); o líder da bancada, Eduardo Braga (AM); e a presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Simone Tebet (MT), são nomes capazes de liderar uma maioria robusta, mais governista ou mais independente, dependendo de quem for capaz de manter o partido unido e tecer uma aliança ampla.

Novas bases
Bolsonaro está descobrindo as vantagens da governabilidade, depois de quase pôr seu governo a perder numa trajetória suicida de confronto com os demais Poderes, ameaçando as instituições da democracia representativa. Por muito pouco não pautou o seu próprio afastamento pelo Congresso. Parece que os militares que ocupam o centro do poder no Palácio do Planalto, finalmente, conseguiram levar o governo a um ponto de equilíbrio institucional, na medida em que Bolsonaro colhe os frutos do pacote de medidas de emergência aprovadas pelo Congresso para combater os efeitos dramáticos da crise. Esse é outro elemento que explica os novos rumos adotados. Está havendo uma mudança de composição na base social de apoio ao governo: ao mesmo tempo em que perde apoio da classe média, cresce o prestígio de Bolsonaro com a população mais pobre do país, principalmente do Norte e do Nordeste.

De um lado, o caso Fabrício Queiroz, ex-assessor parlamentar do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho, e amigo do presidente da República, afasta cada vez mais a bandeira da ética do atual governo e, consequentemente, uma grande parcela da classe média. Blindado pela Constituição, Bolsonaro não pode ser investigado, mas a primeira-dama Michelle Bolsonaro pode. Além disso, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro é identificado como o grande protagonista da Lava-Jato; seus adversários, dentro e fora do governo, não conseguem desconstruir essa imagem. Em contrapartida, a aliança com o Centrão juntou a fome com a vontade de comer: o inesperado apoio popular conquistado com a migração das parcelas mais pobres da população do Bolsa Família para o abono emergencial e a aliança com os políticos patrimonialistas do Norte e Nordeste, que sempre souberam manipular as carências populares dessas regiões.

Toda calmaria, porém, precede a tempestade. O cenário da economia para o segundo semestre e 2021 não é nada bom. Com uma dívida interna de R$ 6,1 trilhões, que equivale a 85,5% do PIB, a dívida pública deve saltar de 75,8% para mais de 100% em 2022. A disputa em torno da manutenção ou não do “teto de gastos”, apontada pela maioria dos economistas como condição para “achatar a curva” da dívida, está instalada dentro do próprio governo, entre a equipe econômica e os ministros militares, e no Congresso. A linha que separa um governo conservador do populismo de direita está sob forte pressão, exacerbada ainda mais pela aproximação das eleições municipais. Os dados estão sendo lançados.

José Casado - No palanque, o bolsolulismo

- O Globo

Família Bolsonaro selou união com o PT para reeleger prefeito de Belford Roxo

Jair Bolsonaro avança em alianças com grupos hegemônicos na área metropolitana do Rio, onde se concentram 8,6 milhões de eleitores, dois terços do eleitorado fluminense.

Liberou verbas, filhos parlamentares e ministros para apoiar candidatos patrocinados pela oligarquia regional, que em 2018 o ajudou a obter mais de 60% dos votos em 40 das 49 zonas eleitorais do Rio e, acima disso, na Baixada Fluminense.

Bolsonaro viaja no vácuo de Wilson Witzel e antecessores do MDB, hoje encarcerados. Semana passada mobilizou o filho senador e o ministro do Desenvolvimento, Rogério Marinho, em visitas a Duque de Caxias (658 mil eleitores), Belford Roxo (325 mil) e Mesquita (133 mil).

Apoia candidatos da Assembleia de Deus, majoritária no eleitorado autodeclarado evangélico, e da Igreja Universal do Reino de Deus, que tem como líder político o prefeito do Rio, Marcelo Crivella (Republicanos), em batalha pela reeleição.

Também se aproxima de outros, cujas biografias confirmam o Rio como a metrópole onde o crime organizado mais avançou na política. Milícias, narcotráfico e empresas de jogos ilegais detêm controle real sobre fatia do eleitorado. Na capital, a Justiça Eleitoral já mapeou 468 seções, com mais de 618 mil inscritos (12% do total), onde há histórica concentração de votos em candidatos ligados ao crime no Chapadão, Maré, Jacarepaguá e Alemão.

Em novembro, o Rio teria o primeiro candidato a prefeito com origem miliciana atestada em tribunal. Mas Jerônimo Guimarães Filho, 71 anos, pioneiro de bandos na Zona Oeste, desistiu depois de dez meses de campanha. Jerominho foi vereador carioca por oito anos, até ser condenado por crimes como a chacina de nove pessoas.

A tradição clientelista do poder local magnetiza o presidente. Semana passada mandou seu filho senador a um comício em Belford Roxo, cidade onde teve 68,8% dos votos em 2018. Ali, a família Bolsonaro selou união com o PT de Lula para reeleger o prefeito Wagner Carneiro (MDB). Vice-presidente do PT, Washington Quaquá justificou a aliança: “Só é contra quem adora teorizar a Baixada tomando chope em Ipanema”. O bolsolulismo subiu no palanque.

Bernardo Mello Franco - O "enviado especial" de Bolsonaro

- O Globo

Quando Michel Temer anunciou a intervenção federal na segurança do Rio, em fevereiro de 2018, o então deputado Jair Bolsonaro cutucou: “Temer já roubou muita coisa, mas o meu discurso ele não vai roubar”. Quando o ex-presidente foi preso pela primeira vez, em março de 2019, o capitão sorriu: “Cada um  fazendo por merecer”.

Nas palavras de Bolsonaro, a prisão de Temer era a consequência de um modelo que ele prometia não repetir. “O que levou a isso é aquela velha história de Executivo muito afinado com o Legislativo, onde a governabilidade vem em troca de cargos. São ministérios, são estatais, são bancos oficiais”, condenou.

Um ano depois, o presidente deixou para trás a pregação contra a “velha política”. Loteou a máquina em troca de apoio, barganhou com os suspeitos de sempre e fez a dança do acasalamento com o centrão. Agora um dos padrinhos da união será premiado com uma viagem oficial ao Líbano.

Bolsonaro convidou Temer a chefiar a comitiva brasileira em Beirute. O ex-presidente deve embarcar amanhã cedo em avião da FAB. Antes da viagem, um constrangimento: para deixar o país, ele precisou pedir autorização ao juiz Marcelo Bretas, que o mandou duas vezes para a cadeia.

Em 2017, o capitão votou duas vezes pelo afastamento do antecessor. “Pelo fim da corrupção”, discursou, ao apoiar a segunda denúncia do procurador Rodrigo Janot. Em 2020, ele busca conselhos com quem chamava de ladrão. “Meu enviado especial”, cortejou, em videoconferência no domingo.

Temer é mestre na arte da sobrevivência política. Delatado e gravado no subsolo do palácio, conseguiu resistir no cargo. Nem a imagem de um assessor correndo com uma mala recheada foi capaz de derrubá-lo. Agora ele dá lições a Bolsonaro, enrolado com cheques para o primeiro-filho e a primeira-dama.

A viagem ajuda o ex-presidente a lustrar a biografia, mas não resolve seus problemas com a Justiça. Absolvido num processo em Brasília, ele ainda é réu em cinco ações por corrupção, peculato e lavagem de dinheiro.

Carlos Andreazza - Breve retrospectiva da infâmia

- O Globo

Não há dúvida de que Bolsonaro tenha responsabilidade sobre as mortes

O bolsonarismo é uma máquina para a ruptura. Um fenômeno reacionário que fareja oportunidades por meio das quais se enraizar e corroer. Uma pandemia, por exemplo. O que ofereceria melhores condições para a aceleração do rompimento de nosso tecido social do que o estado de calamidade decorrente da mobilização por enfrentar uma peste agressiva e desconhecida?

A história do bolsonarismo nesses meses, desde março, é a história da guerra cultural batalhada sobre corpos; em que, afinal, o fato foi desacreditado, desinformação em desinformação, até a inexistência, ali desde onde tudo será versão.

Nesse período até que chegássemos aos 100 mil mortos, a indústria bolsonarista avançou sua forja de teorias da conspiração. Ou teremos esquecido, vírus já entre nós, de o presidente acusando fraudes — teria até provas — no processo eleitoral de 2018?

Foi nesses cerca de cinco meses que Bolsonaro conseguiu implantar o estado da arte para a desconfiança entre nós; quando, contaminada a fé pública, não acreditamos que ele estivesse infectado pela Covid-19; quando supusemos que o sujeito mentisse — manipulando a própria saúde — para colher benefícios políticos ainda ocultos.

Um presidente que aproveitou o clima de exceção para não apenas aviar sua troca de pele, deixando as carcaças eleitorais lavajatista e guedista no caminho, mas também para afiar seu cerco autocrático às instituições. Ou não estará aí — implantado enquanto discutíamos uma possível polícia política a partir do aparelhamento bolsonarista da PF — um Ministério da Justiça que produz dossiês contra críticos do governo?

Ou já teremos apagado da memória que foi nesse intervalo que o golpismo bolsonarista encontrou picada para testar as instituições sobre uma perversão do artigo 142 da Constituição, de súbito apregoado para estabelecer as Forças Armadas como poder moderador a serviço do Executivo?

Quem se lembra de o presidente discursando diante do QG do Exército para aglomerados em cujas manifestações se lia “Intervenção militar com Bolsonaro no Planalto”? Quem não se recordou dessa passagem ao ser informado, segundo a revista “Piauí”, de que houve, em maio de 2020, o dia em que o presidente declarou que interviria no Supremo?

A ação de Bolsonaro nesse período foi consciente. Não há dúvida de que tenha responsabilidade sobre as mortes. Um vírus traiçoeiro, de letalidade antecipada noutros continentes — e o sujeito não apenas buscando o corpo a corpo como também estimulando, em palavras, que desprotegidos o fizessem. Haviam morrido 5 mil brasileiros. E assim ele — como um sociopata — reagiu: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.

Leitor, atenção: o presidente, em abril, questionou por que as escolas estavam fechadas. Repito: em abril; não agora quando, ainda paralisadas as aulas, discute-se alguma retomada. No mesmo abril, Bolsonaro afirmou que, segundo parecia, o vírus começava a ir embora. Nessa época, vendendo a ilusão da imunidade para a juventude, recorreu a seu passado de atleta para desdenhar da gripezinha. E, comerciando ignorância no mercado da miséria brasileira, multiplicou heróis da resistência entre os muitos entre nós que, mergulhados no esgoto por obra de um país do século XIX, teriam anticorpos contra a peste porque habituados ao cocô. Tudo seria resolvido se enfrentássemos o problema como homens — declarou o mito.

O presidente: um agente para o conflito que conseguiu levar o seu nós contra eles total para o terreno imoral de uma oposição entre saúde pública (afetada preocupação elitista) e saúde econômica. Do que derivou haver Bolsonaro difundido um vídeo falso sobre desabastecimento de comida. Ele era a voz em defesa da economia popular, mas foi com os barões do capitalismo de estado que armou aquela blitz, dentro no STF, em nome da tese de que “o remédio não pode ser pior que a doença”.

Um curandeiro, o presidente, que oferece placebo ideológico — o remédio da direita — como se fosse o corpo de Cristo contra o vírus chinês. Ele é o ministro da Saúde. Fazendo o Exército de mula. Baixando num general da ativa, como se seu cavalo fosse, para o exercício de suas crendices populistas; para ver se colava um pacote de sonegação e maquiagem de dados oficiais sobre vítimas da doença.

Bolsonaro não faz milagre. Tampouco é coveiro. Investiu, porém, em seu futuro apostando em cavar o buraco em que nosso cansaço descansaria — apostando mesmo, diante do mantra das mil mortes diárias, em nossa anestesia. Apostou em que nos resignaríamos como as emas do Alvorada ante a “vida que segue”.

Para efeito de curto prazo, com vistas a 2022, não é improvável que esteja certo. Vê nova base social a explorar, e já botou o pé na estrada para cortejá-la. Vai gastar. Guedes que se vire. É bem possível que chegue à eleição com força. Certo é que seu verbete já está inscrito na história universal da infâmia.

Míriam Leitão - No centro da crise que devasta o país

- O Globo

A incapacidade de sentir a dor do outro e de viver o elo que liga uma pessoa ao seu próximo. Essa é a característica mais marcante da personalidade do homem que governa o Brasil. Foram muitos os erros que ele cometeu nestes meses do nosso desterro. Vivemos um exílio diferente, porque estamos apartados das virtudes que admiramos no país. Jamais saberemos quantas vidas teriam sido poupadas entre as 100 mil que perdemos se fosse outra a liderança. Carregaremos as dúvidas. Milhares de dúvidas. Dessa falta de sentimento humanitário, surgiram as frases ofensivas como o “e daí?” e o “eu não sou coveiro”.

Os coveiros trabalham duramente, em condições difíceis, em turnos dobrados, sob risco de contaminação em enterros sem choro e sem flores. O luto não tem cerimônia. Fica cravado no peito de cada um. Os que perderam as pessoas que amavam não puderam ser consolados. Não há mais abraços no mundo. Os coveiros viram. A esses profissionais, todo o respeito. Sim, o presidente não é coveiro. Ele não teria a grandeza de ajudar alguém em momento terminal.

Toda vez em que concedeu a frase “lamento as mortes” soou falso, porque era falso. Era seguida de adversativas e da platitude de que todos morreremos. Os médicos e os enfermeiros lutam diariamente para manter a vida, mesmo sabendo do destino final de cada um. Essa é a grandeza de quem trabalha com a sáude humana. Eles, elas podem se olhar no espelho e dizer: hoje venci várias vezes a luta desigual contra a morte. Às vezes, o preço é a própria vida, como a do jovem neurocirurgião Lucas Augusto Pires.


Foram muitas as demonstrações de falta de empatia e de compaixão nestes dolorosos meses. Não há mais o que esperar. Nem em sentimentos, nem em capacidade de liderar o país no meio de uma tragédia. Ele falhou completamente.

A falha cotidiana foi passar a mensagem perigosa de que não era necessário se proteger. A transferência de recursos aos estados e municípios não foi favor, o dinheiro é dos pagadores de impostos. O governo federal adiou o que pôde, com manobras regimentais, com deliberados atrasos burocráticos. Isso custou vidas humanas.


A ajuda às pessoas não foi concessão dele. A proposta saiu do executivo depois de muita pressão dos formadores de opinião, e no Congresso o valor foi elevado. A execução foi desastrosa, com as filas de pessoas lutando por seus direitos e a multiplicação dos casos de fraudes. Montou-se um sistema que negava o auxílio a um bebê porque não tinha CPF, mas entregava o dinheiro a uma pessoa rica sem averiguar sua renda. As linhas para sustentar as empresas em colapso foram tão tardias que falharam.

O governante inúmeras vezes usou a imagem da presidência para vender a ilusão da pílula mágica, produzida aos milhões nos laboratórios do Exército. Criou um tumulto administrativo no Ministério que coordena as ações da saúde. Convocou seus seguidores a invadir hospitais para perseguir a delirante versão de que era mentira a ocupação dos leitos. Quis suprimir os números das mortes. São muitos os crimes. Sim, a palavra é esta: crime.

Ele ofendeu e ameaçou governadores e prefeitos que se preocuparam em proteger a população, criou uma confusão na mensagem para as famílias, manipulou sentimentos conflitantes em um tempo difícil para alimentar a mentira de que não era o responsável. Numa federação e no presidencialismo não há quem substitua o presidente no trabalho de coordenação no enfrentamento de um flagelo coletivo. Isso custou muitas vidas.

Sua atenção esteve em uma pauta estrangeira à vida. Quer armar a população, aumentar o acesso a instrumentos de morte, tirou exclusividades das Forças Armadas em determinados armamentos mais poderosos. Eliminou legislação que permitia o rastreamento. Armas, armas à mão cheia. Esse é o lema do homem que governa o Brasil.

O presidente conspirou contra a democracia. Nos gabinetes fechados e à luz do dia. Estimulou aglomerações de manifestantes contra os poderes da República e alimentou milícias virtuais com ataques às instituições. Gritou ofensas e ameaças. Tudo isso enquanto os brasileiros tentavam se proteger de um inimigo mortal. Conseguiu duplicar as ameaças que pairavam sobre nós. Por semanas seguidas, o país teve que lutar pela vida e pela democracia. O nome disso também é crime. Crime de responsabilidade. Deveria ser punido com seu afastamento da Presidência. Ele não merece a cadeira que ocupa.

Ricardo Noblat - Os Bolsonaro, uma família do barulho e do dinheiro em espécie

- Blog do Noblat | Veja

Aversão ao sistema bancário

Em outubro de 2016, como foi que o senador Flávio Bolsonaro pagou a prestação no valor de R$ 16.564,81 da compra de um imóvel no bairro das Laranjeiras, na zona sul do Rio? Na verdade, quem pagou por ele foi Diego Sodré de Castro, cabo da Polícia Militar, então investigado por oferecer serviços ilegais de segurança. Flávio o reembolsou com dinheiro em espécie.

E em 2018, como foi que Flávio pagou R$ 86.000 pela compra de 12 salas comerciais no Barra Prime Officer, no Rio? Em dinheiro vivo. Dinheiro tomado emprestado do pai e de um dos seus irmãos que ele não diz qual – se Carlos, vereador, ou Eduardo, deputado federal. Foi também em dinheiro vivo que Fabrício Queiroz pagou despesas pessoais de Flávio e da mulher dele.

O uso de dinheiro vivo é uma das marcas da família que prefere ignorar o sistema bancário brasileiro. Rogéria, a primeira mulher de Jair Bolsonaro, mãe de Flávio, Carlos e Eduardo, comprou em 1999 um apartamento no zona norte do Rio por R$ 95 mil, o equivalente, hoje, a R$ 621,5 mil. Pagou com dinheiro vivo. O casal separou-se entre 1997 e 1998. Rogéria saiu muito machucada.

Com o apoio do então marido, ela se elegeu e se reelegeu vereadora no Rio. Candidata ao terceiro mandato, foi derrotada por Carlos, então com apenas 17 anos, lançado pelo pai. Flávio recusou-se a disputar contra a própria mãe. Junto com a segunda mulher, Ana Cristina Valle, Bolsonaro comprou 14 imóveis no Rio avaliados, hoje, em R$ 5,3 milhões. Como pagou? Parte em dinheiro vivo.

O caso mais recente de operação financeira dos Bolsonaro que se tornou público não envolveu dinheiro em espécie, mas cheques. Entre 2011 e 2016, Queiroz depositou 21 cheques na conta de Michelle, a primeira-dama, no valor total de R$ 72 mil. Na mesma época, Marcia Aguiar, mulher de Queiroz, depositou mais seis cheques no valor total de R$ 17 mil.

Quando algo errado é feito errado, não importa se em cheque ou em dinheiro vivo, acaba dando errado – pelo menos às vezes.

Um presidente fora da lei

Bolsonaro, outra vez sem máscara

Não basta ao presidente Jair Bolsonaro desrespeitar leis. De tanto fazê-lo, as pessoas parecem que deixaram de ligar para isso. E muitas até o imitam. Afinal, se ele procede assim impunemente, por que elas não? E daí? Vida que segue.

Agora, é o próprio Bolsonaro que posta vídeos em suas contas nas redes sociais onde se exibe violando leis mais uma vez. A última dele foi mostrar-se, ontem à noite, em uma via pública de Brasília comendo churrasquinho comprado a um vendedor ambulante.

Sem máscara, novamente. E cercado por apoiadores que se aglomeraram para tirar fotos. Tal comportamento contraria decreto em vigor no Distrito Federal que obriga o uso de máscaras em todos os espaços públicos, sob pena de multa de R$ 2 mil.

Em junho último, Bolsonaro já fora advertido a respeito pelo juiz federal Renato Borelli, da 9ª Vara Cível do Distrito Federal: “O presidente possui obrigação constitucional de observar as leis, bem como de promover o bem geral da população”.

Bolsonaro ignorou a advertência. E, além do vídeo, escreveu que no Brasil são 38 milhões de trabalhadores informais. “Volta ao trabalho, o melhor remédio”, aconselhou no dia em que o país registrou mais 721 mortes e 20.730 novos casos do Covid-19.

Hélio Schwartsman - Bolsonaro tem futuro?

- Folha de S. Paulo

Depender do centrão é arriscado, e manter novos simpatizantes requer manter programas de renda

número de mortos pela Covid-19 não para de aumentar no Brasil, mas isso não parece ter afetado muito a popularidade do negacionista Jair Bolsonaro. A descoberta de novos cheques de Fabrício Queiroz para a mulher do presidente, que, em condições normais, derrubaria um governante —Collor caiu por muito menos—, não bastou nem sequer para convencer Rodrigo Maia a pôr em tramitação algum dos muitos pedidos de impeachment que dormitam em seu escaninho. Nem a reportagem da revista Piauí que conta como Bolsonaro quase atentou contra o STF reverberou como deveria.

O que está acontecendo? Ficamos tão acostumados com os desatinos presidenciais que perdemos a capacidade de nos indignar com eles? É claro que a habituação, o processo psicológico que faz com que seres humanos se acostumem com quase qualquer coisa, até a viver num campo de concentração, está dando a sua contribuição para a normalização de Bolsonaro, mas acho importante frisar que nem o presidente nem seus apoiadores são os mesmos de alguns meses atrás. Houve mudanças tectônicas na paisagem política.

O fato mais notável é que Bolsonaro abandonou o discurso antiestablishment para tornar-se refém do centrão. Sua base também sofreu abalos. Ele conserva a devoção de uns 15% dos eleitores, cujos cérebros são invulneráveis à realidade, mas perdeu apoio entre os mais ricos e escolarizados, que foi compensado pela incorporação de beneficiários dos programas emergenciais. O detalhe irônico é que o governo inicialmente se opôs a esses programas, que teve de engolir por imposição dos parlamentares.

O novo arranjo dá sobrevida a Bolsonaro, mas talvez não um futuro. Depender do centrão, como bem sabe Dilma Rousseff, é arriscado. Já a manutenção do novo contingente de simpatizantes requer a continuação de generosos programas de renda até 2022. Não é óbvio de onde Bolsonaro possa tirar dinheiro para isso.

Cristina Serra - Bolsonaro disse: "Vou intervir!". E agora?

- Folha de S. Paulo

Os donos do dinheiro grosso seguem firmes com Paulo Guedes, e a oposição continua fazendo política com o fígado

Reportagem de Monica Gugliano, na revista Piauí, reconstitui em detalhes uma reunião no dia 22 de maio, no Palácio do Planalto, entre o capitão-presidente, seus generais de pijama e alguns ministros civis. A reunião era, na verdade, uma conspiração contra a democracia. “Vou intervir!”, esbravejou Bolsonaro.

O presidente queria destituir os 11 ministros do STF e substituí-los por dóceis lambe-botas para pôr a casa “em ordem”. Tudo isso porque o ministro Celso de Mello tomara medida de praxe em investigação relacionada ao presidente. Os conspiradores chegaram a discutir como dar uma fachada de legalidade ao autogolpe.

O desatino não encontrou ressonância entre militares da ativa, que tem o comando das tropas. Evitou-se o insano propósito com uma “nota à nação brasileira”, assinada pelo general do GSI, Augusto Heleno, que, no entanto, ameaçou o Supremo com “consequências imprevisíveis” se houvesse “afronta” à autoridade presidencial.

Que reunião de tal teor tenha ocorrido e que não se veja reação ou providências das instituições para punir os sabotadores da República mostra a profundidade do abismo em que estamos metidos. À época do conluio sinistro, o Brasil chorava mais de 20 mil mortos pela pandemia, e Bolsonaro reagia com indiferença. “E daí?”

Daí que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, afirmou, há uma semana, não ter “elementos” para abrir um processo de impeachment. Os donos do dinheiro grosso seguem firmes com Paulo Guedes e a oposição continua fazendo política com o fígado. E assim todos vão se acomodando à “nova ordem”.

Bolsonaro sempre mostrou quem é. Em 2017, afirmou: “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar ninguém”. A ditadura deixou 434 mortos e desaparecidos e milhares de torturados. Na democracia, os generais a serviço do colecionador de mortalhas tornaram-se sócios no massacre das 100 mil vidas imoladas, até aqui.

Pablo Ortellado* - Mais amor por favor?

- Folha de S. Paulo

Estudo argumenta que empatia não apenas não diminui como promove a intolerância política

Em artigo recente publicado na American Political Science Review, pesquisadores da Universidade de Houston e da Universidade da Virginia apresentaram evidências bastante contraintuitivas de que a empatia promove, ao invés de combater, a polarização política.

Estudos anteriores, de natureza experimental, tinham sugerido que a empatia por membros de um grupo estigmatizado (portadores de HIV, por exemplo) reduzia o preconceito e que a empatia por grupos étnicos e raciais gerava maior apoio a direitos civis de imigrantes ilegais e acusados de terrorismo.

Havia por isso a suposição de que a polarização política pudesse estar ligada a uma espécie de déficit de empatia (como sugeriu, por exemplo, o ex-presidente americano Barack Obama quando ainda era senador).

Os pesquisadores mediram o grau de consideração empática por meio do Índice de Reatividade Interpessoal, uma medida consagrada e bem validada na psicologia, e o correlacionaram com medidas também amplamente utilizadas na ciência política para medir polarização afetiva (a hostilidade contra grupos políticos adversários).

A análise mostrou que quanto mais uma pessoa apresentava uma disposição empática, mais hostilidade demonstrava contra o campo político adversário. Assim, se era democrata, quanto mais empático, mais hostilidade demonstrava contra republicanos —e vice-versa.

A explicação para o fenômeno parece ser o fato bastante conhecido de que a empatia é mais prontamente experimentada em relação a membros do próprio grupo do que em relação a membros de outros grupos. Como a polarização afetiva geralmente está associada à convicção de que a ação do grupo adversário ameaça nosso próprio grupo e a sociedade em geral, a empatia com o próprio grupo anula e reverte eventual empatia em relação ao adversário político.

Em outras palavras, como pessoas de esquerda acreditam que as pessoas de direita ameaçam o bem-estar de pobres, negros e mulheres, a precedência da empatia para pessoas desses grupos subalternos não apenas impede qualquer empatia com as pessoas de direita como intensifica a hostilidade contra elas. O mesmo, claro, acontece com as pessoas de direita em relação às pessoas de esquerda.

Se é isso mesmo o que está acontecendo, não estamos vivendo um déficit de empatia. A natureza do nosso problema parece ser uma hipertrofia das identidades políticas, que intensificam nosso sentimento de pertencimento a um grupo construído em oposição a um outro, intolerável, e que vai se tornando efetivamente mais intolerável à medida que é hostilizado.

*Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

Joel Pinheiro da Fonseca* - Rumo ao aumento de impostos?

- Folha de S. Paulo

A ideia da reforma tributária seria a de mantê-la inalterada

Em algum momento a equipe econômica do governo terá de admitir que a reforma tributária, além de simplificar nossos impostos e, idealmente, torná-los mais justos, terá também de aumentar a carga tributária. Guedes nega enquanto pode qualquer aumento de imposto ou de gastos.

Enquanto isso, o governo vai aceitando novas despesas. Renda Brasil, investimentos do setor público, novo Fundeb, capitalização de empresas estatais. O ministro Rogério Marinho propõe abertamente a agenda de gastos públicos, e a aliança do governo com os partidos do centrão também empurra nessa direção: não se sela amizades com austeridade.

A carga tributária atual já está espremida ao limite pelos gastos obrigatórios, que continuam crescendo. Se a trajetória da dívida pública já era insustentável antes de tudo isso (e antes dos gastos excepcionais da Covid), agora, então, vai se tornar incontrolável. Exceto se o governo aumentar a arrecadação.

Talvez a voz mais eloquente na defesa da flexibilização da agenda fiscal tenha sido o filho senador do presidente, Flávio Bolsonaro. Em entrevista para O Globo na semana passada, disse o que muitos membros formais do governo ainda relutam em admitir: "Acredito que o Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações que têm impacto social e na infraestrutura".

Ora, e onde é que Guedes irá "arrumar" esse "dinheirinho"? O próprio ministro sabe a resposta.

E ainda tem o teto de gastos. Segundo projeção da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, o teto de gastos já será rompido em 2021 caso não seja feita nenhuma alteração. Com a inflação baixa que tivemos na primeira metade do ano —comprimida ainda mais pela pandemia— o aumento de despesas permitido pelo teto para o ano que vem é de apenas 1,9%. Ainda nos iludimos de que ele será mantido?

O compromisso fiscal —o imperativo de colocar as contas públicas em ordem, de modo que gerem superávit— não precisa de grandes decisões para ser abandonado. Não há nada mais fácil do que ir aceitando esse e aquele gastos a mais (cada um deles pouco relevante em si mesmo). Por outro lado, é no mínimo antipático negar uma nova despesa; e propor corte numa já existente é positivamente malvado.

Como Bolsonaro vive pela popularidade de curto prazo e ainda tem os novos aliados do centrão para agradar, é muito improvável que banque o discurso da austeridade dos gastos.

A ideia da reforma tributária seria a de manter a carga tributária inalterada. Troca PIS e Cofins por CBS; troca encargos de folha por nova CPMF. Mas se ficar no zero a zero não há como bancar as novas despesas.

O Brasil tem carga tributária alta —cerca de 34% do PIB— para um país de renda média. Somos, inclusive, o país capitalista com a maior carga tributária da América Latina. Mesmo assim, falar em aumento de impostos não é pecado. Se os gastos forem aumentar mesmo —se Bolsonaro não quiser dizer "não" às demandas por mais "dinheirinho" que chegam de todos os lados—, é melhor ser transparente e fazer a discussão agora com clareza do que escamotear um aumento escondido na reforma —o que não enganará ninguém— ou, pior ainda, empurrar a bomba fiscal com a barriga na esperança de que no futuro, como que por mágica, dar-se-á "um jeito". Não precisamos de uma cloroquina das contas públicas.

*Joel Pinheiro da Fonseca, Economista, mestre em filosofia pela USP.

Eliane Cantanhêde - Cavalo de pau

- O Estado de S.Paulo

O presidente é um, o candidato é outro, mas Bolsonaro será sempre Bolsonaro

Se dá de ombros para 100 mil mortos pelo coronavírus, passou décadas defendendo torturadores como Pinochet, Stroessner e Brilhante Ustra, criou atritos em série com parceiros tradicionais do Brasil e nunca deu bola para inclusão social e combate ao racismo, à homofobia e ao machismo, o agora nova e prematuramente candidato Jair Bolsonaro deu um cavalo de pau e mudou tudo em favor da reeleição em 2022.

Os dois novos exemplos são a surpreendente manifestação do presidente em defesa do entregador de aplicativo ofendido por um grandalhão racista e, também, sua decisão de enviar uma missão humanitária em grande estilo para o Líbano. Decisão tão acertada, principalmente do ponto de vista do marketing, que ele vai a São Paulo amanhã para o embarque da missão – ao vivo, em cores e pronto para fotos.

Em 2017, Bolsonaro prometeu que, se eleito, “não teria um centímetro demarcado para reserva indígena e quilombola”. E explicou: “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais (...) Se eu chegar lá (à Presidência), não vai ter dinheiro pra ONG. Esses vagabundos vão ter que trabalhar”.

Com Bolsonaro de volta ao palanque, o papo é outro. Foi por isso, e porque seus assessores lhe deram o texto mastigadinho, que ele saiu em defesa do motoboy Matheus Pires, negro, 19 anos, alvo de Mateus Prado Couto, que, mostrando a própria pele, muito branca, atacou: “Você tem inveja disso aqui”.

Se Bolsonaro fosse falar de improviso, não ia dar certo. Então, ele assumiu o texto do Planalto: “Atitudes como esta devem ser totalmente repudiadas. A miscigenação é uma marca no Brasil. Ninguém é melhor do que ninguém por conta de sua cor, crença, classe social ou opção sexual”. Nem parecia Bolsonaro. E não era mesmo. Era o assessor.

Na campanha de 2018, Bolsonaro também criou dificuldades diplomáticas para o então presidente Michel Temer e uma confusão dos diabos com o mundo árabe ao anunciar que acompanharia Donald Trump e trocaria a embaixada brasileira em Israel, de Tel-Aviv para Jerusalém – o centro da disputa entre judeus e palestinos.

O Egito cancelou uma visita do chanceler de Temer, a Liga Árabe se rebelou, mas, apesar disso, e da ameaça às exportações de U$ 5 bilhões em carnes para os países árabes por ano, Bolsonaro manteve a ameaça após a posse. Até os generais brasileiros entraram em ação para explicar ao presidente algo de geopolítica, diplomacia, interesse nacional, questões de Estado e importância das exportações. A ideia foi adiada.

Hoje, com a embaixada mantida em Tel-Aviv e após viagens e salamaleques para os árabes, Bolsonaro tem um gesto de grandeza – ou de oportunismo – e envia uma missão humanitária para Beirute. Um avião da FAB levará medicamentos e equipamentos médicos, sob comando do próprio Temer, filho de libaneses. Só para lembrar, há mais libaneses no Brasil do que no próprio país. Um oceano de votos.

Bolsonaro vai trocando a indumentária incômoda de presidente pela fantasia agradável de candidato. Em vez de tortura e crises diplomáticas, missão humanitária; em vez de arroubos racistas, machistas e homofóbicos, discurso inclusivo; em vez de tudo para ricos e grileiros, ajuda emergencial e um novo Bolsa Família para chamar de seu. E, em vez de bater na “velha política”, um abraço no Centrão.

Só não peçam para Bolsonaro voltar atrás na negação da pandemia. Aí, já seria demais. No sábado, dia em que o Brasil chorava mais de 100 mil mortos e de 3 milhões de contaminados, Bolsonaro estava em outra galáxia, comemorando na redes: “Parabéns Palmeiras, campeão paulista 2020!” O presidente é um, o candidato é outro, mas Bolsonaro será sempre Bolsonaro.

Rubens Barbosa* - As eleições presidenciais nos EUA e o Brasil

- O Estado de S.Paulo

Bom senso recomenda menos ideologia e geopolítica e mais interesse nacional

Em 90 dias o mundo conhecerá o futuro presidente dos EUA. As pesquisas de opinião pública indicam hoje uma vitória de Joe Biden sobre Donald Trump, com margem de cerca de 10 pontos porcentuais. Esse número daria a vitória a Biden caso a eleição fosse majoritária. Cabe, porém, um elemento de cautela, visto que nos EUA a eleição para presidente é decidida em colégio eleitoral, composto por delegados de todos os Estados, eleitos a partir dos resultados nas votações locais. Refletindo a profunda divisão da sociedade americana, a eleição deverá ser decidida nos Estados que oscilam entre conservadores e democratas, (Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Flórida, Idaho) e Trump ameaça contestá-la.

A mudança do cenário eleitoral nos últimos três meses deveu-se à percepção negativa sobre a forma como Donald Trump vem conduzindo as medidas contra a pandemia, a queda no crescimento econômico, o aumento do desemprego e sua reação aos movimentos raciais que se espalharam por todo o país. Passou a haver, assim, uma chance de Joe Biden vencer as eleições de novembro, com mudanças significativas nas políticas econômica, ambiental e externa.

O Partido Democrata, no governo, tentará uma política econômica que recupere o dinamismo da economia e reduza o desemprego. Deverá prevalecer viés nacionalista, que incluirá forte componente ambiental (Green New Deal), modificações no sistema de saúde e busca de liderança no combate à pandemia. Os EUA voltarão a dar prioridade aos organismos multilaterais, com o retorno à Organização Mundial de Saúde, o fortalecimento da OMC e a adesão ao Acordo de Paris. As crescentes tensões geopolíticas entre EUA e China, no governo democrata, deverão continuar e mesmo ampliar-se. Nesse contexto, deverão aumentar a pressão sobre governos autoritários e a defesa da democracia, agravando as tensões nas áreas comercial, tecnológica e militar, pois Beijing é tratada hoje como adversário pelo establishment norte-americano.

Como ficariam as relações Brasil-EUA com um presidente democrata?

Numa de suas lives semanais, o presidente Jair Bolsonaro, ao comentar o cenário da eleição presidencial americana, confirmou que torce por Trump, mas vai tentar aproximação caso Biden seja o vencedor. “Se não quiserem, paciência”, simplificou. Bolsonaro ouviu e está seguindo o conselho de John Bolton, ex-secretário de Segurança Nacional de Trump, de buscar fazer pontes com o candidato democrata.

Costumo fazer distinção entre a relação pessoal Bolsonaro-Trump e a relação institucional entre as burocracias brasileira e norte-americana.

Caso Biden seja eleito, vai terminar a relação pessoal estabelecida com Trump por influência ideológica. Manifestação de Eduardo Bolsonaro a favor de Trump recebeu imediata resposta de deputado democrata, presidente da Comissão de Relações Exteriores: “A família Bolsonaro precisa ficar fora da eleição dos EUA”.

Em termos institucionais, o relacionamento bilateral continuará a ter baixa prioridade e o novo presidente poderá até fazer alguns gestos para afastar o Brasil da China. As críticas continuarão, como vimos recentemente, quando, por conta da política ambiental e de direitos humanos em relação aos índios, Comitê de Orçamento da Câmara, relatório do Departamento de Estado e carta de deputada democrata criticaram o governo brasileiro e pediram que não seja negociado nenhum acordo comercial com o Brasil, haja sanções contra Brasília e seja vetada ajuda na área de defesa ao Brasil como aliado da Otan. O alinhamento com os EUA, nem sempre concretizado nas relações bilaterais, tornou-se automático nas votações de resoluções sobre costumes, mulheres, direitos humanos, saúde e sobre o Oriente Médio nos organismos multilaterais (ONU, OMS, OMC). Em muitos casos o Brasil fica isolado com EUA e Israel e nas questões de costumes fica acompanhado de países conservadores, como Arábia Saudita, Líbia, Congo e Egito. Com a mudança na política de Biden nos organismos multilaterais, o Brasil tenderá a ficar ainda mais isolado, sem a companhia dos EUA.

A geopolítica será o dilema mais sério para o governo brasileiro caso Biden vença a eleição. A crescente presença da China na América do Sul está na raiz da decisão de Washington de apresentar candidato a presidência do BID contra um representante brasileiro, e pode ser indício de um renovado interesse político dos EUA para conter Beijing com pressão financeira sobre os países da região. Seria a volta da Doutrina Monroe. O apoio brasileiro à proposta dos EUA para discutir se países que não são economia de mercado podem ser membros da OMC – o que, na prática, excluiria a China – e uma eventual decisão contra a empresa chinesa na licitação do 5G indicariam que o Brasil teria escolhido seu lado no confronto. Será que os EUA levarão o governo brasileiro a se chocar com a China? Não convém ao Brasil ajudar a trazer a disputa geopolítica para a região, nem tomar partido por um dos lados numa longa disputa que está apenas começando. Permanecer equidistante é o que defende o vice-presidente Hamilton Mourão.

Menos ideologia e geopolítica e mais interesse nacional é o que o bom senso recomenda nesse momento de incerteza nos rumos da relação Brasil-EUA.

*Presidente do IRICE

Biden e política dos EUA para a América Latina

- The Economist | O Estado de S. Paulo

Se o democrata for eleito presidente, poderá mudar a atual relação com menos confronto e mais cooperação

 “Pela primeira vez na história podemos vislumbrar realmente um hemisfério ocidental seguro, democrático e com uma classe média, do norte do Canadá ao sul do Chile e nos lugares entre os dois”, disse Joe Biden em um discurso na Universidade Harvard, em 2014. 

Muita coisa mudou desde então, em particular a destruição de vidas e do sustento das pessoas provocada pela pandemia. Mesmo assim, se Biden for eleito presidente dos EUA, em novembro, para muitos latino-americanos essa será uma perspectiva tranquilizadora e familiar em comparação com o barulho e a fúria imprevisíveis de Donald Trump.

Trump venceu a eleição, em 2016, em parte porque prometeu construir um muro para impedir a entrada de imigrantes latino-americanos, declarando que o México não “é nosso amigo”. Mas acabou por desenvolver boas relações com os mais importantes governos da região. Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, usou o sucesso de Trump como modelo para sua campanha, em 2018. Alinhou a política externa brasileira, normalmente independente, às posições do governo Trump. 

Andrés Manuel López Obrador, em sua única viagem ao exterior em 21 meses como presidente do México, foi a Washington e elogiou a “amabilidade e respeito” de Trump. Para manter a fronteira aberta para o comércio, o governo do México tem colaborado com o fechamento dela para os que buscam asilo.

Cautelosos com as ameaças de Trump de impor tarifas e sanções, muitos governos entraram na linha “por necessidade e, especialmente, por medo”, diz uma autoridade latino-americana. Os latino-americanos comuns não se impressionam: a porcentagem dos que manifestam uma opinião favorável a respeito dos EUA caiu de 60%, em 2015, para 45%, em 2017, segundo o Pew Research Centre.

A política de Trump com relação à América Latina se centralizou numa tentativa fracassada (até agora) para derrubar o que seu antigo conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, chamou de “troica da tirania”, ou seja, as ditaduras de esquerda na Venezuela, Cuba e Nicarágua. Em seu recente livro de memórias, Bolton diz que o fracasso em derrubar Nicolás Maduro, na Venezuela, decorreu da falta de constância e relutância de Trump dentro do governo. 

Também importante, o governo subestimou a dificuldade de afastar o Exército venezuelano de Maduro. Seus críticos dizem que as políticas de Trump para a América Latina têm como base a necessidade que ele tem de vencer, em novembro, no Estado da Flórida, que abriga as maiores diásporas venezuelana e cubana. 

“A política interna sempre incorpora as políticas com relação à América Latina, mas nunca a este ponto”, afirma Michael Schifter, analista do Diálogo Interamericano, centro de estudos de Washington.

Se Biden vencer, suas prioridades serão a economia americana e as relações com a China. Mas a América Latina talvez não seja o último item da sua lista. Ele conhece a região muito melhor do que presidentes recentes. No segundo mandato de Barack Obama, Biden, então vice-presidente, assumiu a responsabilidade pelas Américas. “Ele dedicou tempo à América Latina, procurou aprender sobre o continente e conversou com muitas pessoas da região”, diz uma autoridade latino-americana.

Juan Gonzalez, que assessorou Biden nessa área, sublinha que a região e o mundo não são mais o que eram em 2016. “Os desafios são muito maiores”, afirma. No entanto, ele acha que existem oportunidades para os EUA no continente, e não só ameaças a serem administradas. As empresas americanas que retirarem suas cadeias logísticas da China poderão beneficiar México e América Central. 

Biden sempre apoiou uma reforma da imigração e, como presidente, ele provavelmente retomará suas ideias quanto à política a adotar para a América Central, com um programa de assistência para combater a corrupção e dissuadir a imigração por meio do desenvolvimento econômico.

Quanto à Venezuela, Gonzalez afirma que as sanções deverão ser parte de uma política mais ampla que incluiria a busca de negociações com vistas a eleições livres. Uma presidência de Biden deve retomar a política com relação a Cuba adotada por Obama, para quem o engajamento teria mais probabilidade de debilitar o regime comunista do que a intensificação de sanções privilegiada por Trump. E deverá pressionar Bolsonaro quanto à sua incapacidade de proteger a Amazônia.

Um problema imediato diz respeito à liderança do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Rompendo com um entendimento de 60 anos de que seu presidente deve ser latino-americano, o governo Trump quer o cargo para Maurício Claver-Carone, membro do Conselho de Segurança Nacional e arquiteto da sua política para a Venezuela. 

Ele pode assumir o cargo na reunião dos dirigentes do banco, no próximo mês. Um governo Biden, provavelmente, o obrigará a deixar o posto em favor de uma figura menos polarizadora. Para isso, Biden precisa vencer a eleição. / Tradução de Terezinha Martino