- Valor Econômico
Governo não conhece nem as possibilidades nem os limites da Constituição, e insiste em disputas ideológicas irrelevantes
A principal discussão política quanto à reforma administrativa de Bolsonaro foi a respeito do Conselho de Controle de Atividades Financeiras, o Coaf. O Planalto gastou tempo e energia tentando, sem sucesso, convencer a Câmara a rejeitar a emenda que retirara o Coaf do âmbito do Ministério da Justiça e o realocara na pasta da Economia.
Ao que parece, ninguém no governo conhece a figura do decreto autônomo, do modo como desenhada pela Emenda Constitucional nº 32/2001 - que também modificou a redação do artigo 88 da Constituição, para revogar a reserva de Lei que antes se impunha à definição e à repartição das atribuições que tocam a cada Ministério. Ao presidente da República compete, como diz a Carta, "dispor, mediante decreto, sobre a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos" (CF/88, art. 84, VI, a).
Ora, o presidente pode, via decreto, a qualquer tempo, alterar a vinculação ministerial de órgãos infraministeriais da Administração Pública Federal, a exemplo do Coaf. Tendo esse objeto, o ato tratar-se-á, justamente, de decreto sobre a organização administrativa que não aumenta despesa nem cria ou extingue órgãos públicos.
Fosse essa a via eleita, o Congresso não precisaria aprovar a medida nem previamente, como ocorre com as leis em geral, nem posteriormente, como se dá com as Medidas Provisórias, sob pena de perderem a eficácia. Nessa hipótese, o Parlamento também não teria competência para sustar o decreto autônomo (CF/88, art. 49, V, a contrario sensu) nem, sequer, para revogá-lo por meio de nova Lei, cuja iniciativa competiria, em razão da matéria, privativamente ao presidente da República (CF/88, art. 61, §1º, e).
Mesmo a esta altura, portanto, o presidente pode simplesmente revincular o Coaf ao Ministério da Justiça e Segurança Pública por meio de um decreto autônomo; fica a dica. Aliás, o governo deveria ter usado esse argumento para dissuadir o Congresso de aprovar a emenda indesejada, o que provavelmente lhe teria poupado esforços e nova derrota política. A rigor, de um jeito ou de outro, não se precisava ter gasto um minuto com essa briga despropositada.
Este, infelizmente, não é o primeiro episódio a evidenciar o apreço pelas polêmicas inférteis e o desconhecimento da Constituição pela atual administração. Há cerca de um mês, no contexto da crise venezuelana, o deputado Rodrigo Maia precisou advertir Bolsonaro que a declaração de guerra depende de autorização congressual (CF/88, art. 49, II c/c art. 84, XIX), após tweet em que Bolsonaro afirmou que qualquer hipótese a esse respeito seria "decidida EXCLUSIVAMENTE pelo Presidente da República". [Assim mesmo, em letras garrafais].