quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Merval Pereira - Brecha na polarização

O Globo

Nos tempos pré-internet, eram três os pilares das “estruturas de poder” que viabilizavam uma disputa eleitoral exitosa para presidente da República: as oligarquias nos grotões, os pastores pentecostais e políticos populistas na periferia e a classe média urbana escolarizada. Esses grupos influenciavam as eleições desde a redemocratização, e foi por isso que Fernando Henrique procurou o PFL, não apenas para governar, mas para vencer a eleição, pois o partido era formado pelas oligarquias nos grotões.

O PSDB conquistou a classe média escolarizada e as capitais com o Plano Real e uma postura ética que se contrapunha ao PT. Venceu duas eleições no primeiro turno e disputou o segundo turno em quatro outras. A partir de 2014, quando quase derrotaram o PT, os tucanos perderam o rumo de casa, passaram a votar contra os próprios fundamentos do Plano Real, aproximaram-se excessivamente do governo Michel Temer e acabaram marcados pela relação promíscua de seu líder Aécio Neves com empresários corruptos, perdendo a aura de defensores da ética.

A verdadeira revolução político-partidária provocada pela vitória de Jair Bolsonaro na eleição presidencial em 2018 teve como bases o uso da internet como instrumento político-eleitoral e a transferência do eleitorado tucano em massa para aquele que se apresentou como alternativa para derrotar o PT, jogando justamente no terreno da defesa da ética na política, do combate à corrupção e de uma economia liberal. Parte desse eleitorado está hoje órfã, em busca de alternativa, por isso nunca houve chance tão clara de que uma terceira via seja trilhada.

Malu Gaspar - O debate interditado em 2022

O Globo

Não há no Brasil nenhum cidadão de boa-fé que diga que Lula, quando presidente, fez qualquer movimento para instituir um regime autoritário e sufocar a democracia. Ninguém tampouco discorda que o petista foi eleito democraticamente e entregou uma democracia à sucessora. Mas também ninguém ignora que, justamente por causa do golpismo de Jair Bolsonaro, a saúde da nossa democracia será tema central na campanha de 2022. Nos últimos dias, seguidores de Lula tentam fazer valer a tese segundo a qual ele não pode ser cobrado sobre o que diz e pensa de ditaduras de esquerda ao redor do mundo.

Na origem da celeuma estão as declarações do ex-presidente ao El País sobre a Nicarágua. A Corte Interamericana dos Direitos Humanos atribui ao regime de Daniel Ortega a morte de 300 opositores e a prisão de outros 500 nos protestos de 2018. Só neste ano, mais de 30 foram presos, entre eles sete candidatos que disputariam a eleição no último dia 7.

Depois de afirmar ser favorável à alternância de poder, Lula se enrolou. Disse que podia até ser contra o regime, mas que era preciso “defender a autodeterminação dos povos”. E emendou: “Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não? Por que o Felipe González pode ficar 14 anos no poder?… Qual é a lógica?”. A diretora do El País, Pepa Bueno, expôs a lógica: nem Merkel nem González se mantiveram no poder colocando opositores na cadeia.

Depois da exibição desse trecho da entrevista nas redes sociais, os lulistas acusaram os críticos de ser desonestos. Isso porque, mais à frente, o ex-presidente diz que não sabe o que “as pessoas fizeram para ser presas” e acrescenta que “se Daniel Ortega prendeu a oposição para não disputar a eleição, como fizeram no Brasil contra mim, ele está totalmente errado”. Quem quiser que acredite que Lula não sabe o que se passa na Nicarágua. Mas, já que o problema é reproduzir na íntegra suas falas, vale a pena comentar o que veio depois.

William Waack - A armadilha para candidatos

O Estado de S. Paulo

Nenhum governa nas condições atuais. Sergio Moro entendeu? Se sim, guardou para si

Dois fatores de peso parecem “contratados” para o cenário após as eleições de 2022. Não importa quem seja o vencedor, a economia não terá condições de crescimento sustentável e será afetada pela também já “contratada” gastança em ano eleitoral.

E não importa o vencedor, a piora do já ruim sistema de governo trará enormes dificuldades de governabilidade. Economia fraca e governo desarticulado serão os principais legados de Jair Bolsonaro, embora não tenha sido ele o “inventor” nem de um nem de outro.

Os pré-candidatos compreendem a dimensão da armadilha que os espera na questão de governabilidade, sem a qual não mexem na economia? Lula, sim. Se vitorioso, declarou, vai reverter os ganhos de poder conquistados pelo Legislativo, leia-se orçamento secreto. Bolsonaro, se entendeu sua posição de boneco do Centrão, cala a boca por motivos óbvios.

Nesse sentido Ciro Gomes continua apresentando discurso eleitoral bem articulado em suas partes, batendo na tecla favorita do nacional desenvolvimentismo. Os outros ainda estão envolvidos em brigas internas de péssima repercussão (PSDB), passam pelo estágio embrionário de campanha (PSD e Rodrigo Pacheco, mas também o MDB). Estão distantes de apresentar um “perfil” de candidatura bem delineado.

José Serra* - Aventureirismo político pode ser evitado

O Estado de S. Paulo

Somada à percepção do caráter deliberado da polarização, a proativa busca de convergência é mais um passo para superar 2018

A eleição de Fernando Collor, em 1989, parece ter aberto uma sequência de sucessões presidenciais em que era inevitável escolher por rejeição. Collor, que obtivera, no primeiro turno, pouco menos de 30% dos votos, derrotou Lula, que recebeu pouco mais de 15%, também no primeiro turno.

Mais de metade dos cidadãos deixou de expressar seus verdadeiros interesses e ideais, forçados a optar, no segundo turno, entre candidatos que não representavam sequer metade dos votos. Foi eleito um candidato sem partido, sem equipe de governo com experiência de gestão pública, sem carreira política que evidenciasse convergência entre suas promessas de mudanças radicais e sua habilidade para realizá-las.

Lula, sem nenhuma experiência executiva, escapou dessa sina porque liderava um partido com eleitorado relevante, conseguiu cercar-se de quadros competentes, de fora e de dentro de seu partido. Empenhou-se em conciliar as bandeiras esquerdistas do PT com interesses conservadores e orientações liberais. A despeito de suas reconhecidas habilidades, não conseguiu integrar as expectativas radicais de seu partido à gestão eficaz da política econômica e, na contramão do crescimento da economia mundial, entregou à sua sucessora uma economia em perigosa retração.

Luiz Carlos Azedo - Ao comparar Merkel a Ortega, Lula baixou a guarda para Moro

Correio Braziliense

“É muito preocupante que não tenhamos clareza nas credenciais democráticas de um candidato à Presidência da República”, disse o ex-ministro sobre a fala de Lula

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou a guarda para seus adversários ao comparar a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, ao presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, ao em entrevista ao prestigiado jornal espanhol El País. Todo o sucesso de seu périplo pela Europa, no qual se encontrou com as principais lideranças do continente, para efeito da sua narrativa de campanha eleitoral, foi zerado pela declaração infeliz.

Lula começou bem: “Todo político que começa a se achar imprescindível ou insubstituível, começa a virar um pequeno ditador. Por isso, eu sou favorável à alternância de poder”, afirmou. No meio do caminho, pisou na bola: “Posso ser contra, mas não posso ficar interferindo nas decisões de um povo. Nós temos de defender a autodeterminação dos povos. Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, e o Daniel Ortega não?”

Lula foi contestado pela entrevistadora, que lembrou ao petista que Merkel não mandava prender seus opositores, como Ortega. Lula ainda tentou consertar, mas o estrago já estava feito. Merkel governou a Alemanha por 16 anos, num regime parlamentarista, no qual dependia de resultados eleitorais e das alianças no Congresso para se manter no cargo. Ortega se reelegeu, pela quarta vez sucessiva, depois de mandar prender sete candidatos de oposição e inventar candidatos laranjas.

Maria Hermínia Tavares - O que as urnas vêm dizendo, não só no Chile

Folha de S. Paulo

Voto castigo é uma das características das recentes eleições na região

Nesta semana, analistas chamaram a atenção para os resultados das eleições chilenas de domingo passado. Afinal, elas expuseram a quebra do padrão de disputa entre duas coalizões centristas, que prevalecia desde a volta da democracia em 1990 e tornava o jogo todo bastante previsível.

Na segunda-feira (22), nesta Folha, enquanto Marcus Melo destrinchava as mudanças nas regras eleitorais que fizeram desmoronar o clássico padrão de competição centrípeta, Mathias Alencastro enfatizava a mudança geracional, com a ascensão de lideranças progressistas reveladas nas mobilizações sociais da última década.

Mas os números do domingo, resultantes das alterações nas regras da competição e da inevitável troca de guarda entre gerações, traduziram sobretudo enorme rechaço ao sistema político anterior. A mesma rejeição que levou multidões às ruas no chamado "estallido"(estouro) de 2019 e nas eleições para a Convenção Constituinte em que prevaleceram as listas dos independentes.

Bruno Boghossian - A ladainha antissistema sumiu

Folha de S. Paulo

Presidente assume personagem que se embrenha no tal sistema para conseguir benefícios políticos

Jair Bolsonaro tentou costurar um primeiro acordo com o centrão ainda em 2018. Candidato pelo nanico PSL, o capitão buscou uma aliança com Valdemar Costa Neto para ter acesso ao tempo de TV e ao fundo de financiamento eleitoral do PR (mais tarde rebatizado de PL).

A negociação não deu certo. Bolsonaro fingiu que nunca havia estendido a mão à sigla e se lançou na campanha como um candidato que combatia "o sistema". Depois de um mandato marcado pelo casamento de conveniência com os velhos partidos e, agora, filiado a uma dessas legendas, o presidente terá dificuldade para repetir a ladainha em 2022.

Ruy Castro - O empazuellamento do Brasil

Folha de S. Paulo

Há um processo de profunda pazuellização das instituições para garantir a impunidade de Bolsonaro

Eduardo Pazuello, lembra-se? Ex-general do Exército na ativa e ex-ministro porcino da Saúde. Aquele que foi sem nunca ter sido. Já passou à história do Brasil. O futuro falará dele como símbolo da redução do Estado a um rebanho de invertebrados a mando de Jair Bolsonaro. Sua imortal frase "Um manda, outro obedece", dita para 200 milhões de brasileiros, não ficará apenas como expressão de uma pusilanimidade bovina, mas porque pode ter contribuído para a devastação de vidas pela Covid, já que avalizava a quebra de um contrato de compra de vacinas, ordenada por quem o tangia.

Mas é injusto concentrar o empazuellamento em Pazuello. Afinal, ele nunca foi o único pazuello do pedaço, e talvez nem o primeiro. Está em curso um processo de pazuellização em todas as instituições nacionais, com ênfase nas que garantem a imunidade de Bolsonaro e cáfila.

Míriam Leitão - Momento errado para a confusão

O Globo

Não existe bom momento para o governo criar mais uma incerteza econômica, mas este é certamente um dos piores. A PEC dos Precatórios, se for confirmada como está, será uma insensatez porque dissolverá limites fiscais. A inflação parcial de novembro que será divulgada hoje manterá o índice acima de 10%. Alguns países da Europa vivem o começo de uma nova onda de Covid, e nos EUA os juros de longo prazo estão subindo, o que fortalece o dólar.

Os governistas abusam do eufemismo. “Espaço fiscal”, “flexibilização da lei de responsabilidade fiscal”, “subteto para os precatórios”. Falemos português claro. O relatório do senador Fernando Bezerra é um ataque triplo ao ordenamento fiscal do país, em nome do qual, é sempre bom que se repita, a ex-presidente Dilma sofreu impeachment. Felizmente alguns senadores tentam ainda um texto alternativo.

A coluna conversou com alguns economistas sobre o contexto econômico do mundo. E o que eles relatam não é tranquilizador. Um deles é o economista-chefe do banco suíço Lombard Odier, Samy Chaar. Ele vive na Suíça e de lá falou sobre a crise global e a inflação.

Adriana Fernandes - Congresso relega debate sobre programa social

O Estado de S. Paulo

A hora de melhorar o Auxílio é agora, mas governistas só pensam em embalar a eleição, com a PEC

O programa Bolsa Família sempre foi o único benefício da seguridade social sem proteção contra a perda do poder de compra pela alta da inflação. O mais bem focalizado entre as políticas públicas de transferência de renda aos mais pobres, e o único sem nenhuma espécie de garantia de recomposição da inflação.

Benefícios claramente pouco eficazes ou com muitos erros de focalização, como o abono salarial e o seguro defeso, são atrelados ao salário mínimo, sobre o qual a Constituição garante a correção todos os anos pela inflação do ano anterior.

O deputado Marcelo Aro (Progressistas), relator da MP que cria o Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, tinha topado atender a uma demanda histórica da área social e colocou no seu relatório a correção automática do benefício pela inflação e proibição da filas.

O presidente da Câmara, Arthur Lira, cobrou a retirada da mudança em reunião com líderes. O ministro Paulo Guedes chegou a lhe pedir diretamente que não colocasse a indexação. Aro retirou do relatório, mas manteve apoio em acordo para ficar com a determinação de fila zero e as outras mudanças do parecer na votação da MP na Câmara.

Vinicius Torres Freire – Economia, mais fraca antes do Natal

Folha de S. Paulo

Consumo de energia cai, ânimo do consumidor piora de novo e 2022 depende de sorte

A confiança do consumidor flutuava com as notícias da epidemia desde o início de 2020, como era de esperar. Menos mortes, os relaxamentos das restrições de movimento e aglomeração ou a recuperação de alguma atividade econômica diminuíam o abatimento, pelo menos até julho, agosto. Desde setembro, os números da Covid melhoraram. O ânimo do consumidor piorou. Em novembro caiu de novo, na medida da Sondagem do Consumidor, da FGV.

O consumo de energia elétrica caiu em outubro, em relação ao mesmo mês do ano passado, de economia ainda muito derrubada pela Covid. Na primeira quinzena de novembro, o consumo caiu de novo, segundo dados da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica).

Temperaturas mais amenas ajudam a explicar as quedas recentes, mas a inflação bateu no comércio outra vez, assim como a falta de peças e insumos, uma crise mundial, prejudica montadoras de veículos e manufaturas diversas, diz a análise da CCEE.

Cristiano Romero - O fim da dicotomia crescer ou distribuir

Valor Econômico

Desigualdade queima capital humano e prejudica produtividade

O país a que chamamos de Brasil tem, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), a oitava pior distribuição de renda do planeta. Com coeficiente Gini pior há sete países africanos, com estágio de desenvolvimento econômico bem inferior ao nosso. O que explica isso é o modelo concentrador de renda predominante neste enorme povoado desde sempre, agravado pelo fato de que há 40 anos o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro cresce abaixo do ritmo de expansão média tanto da economia mundial quanto das nações emergentes e em desenvolvimento.

Quando olhamos os números mais de perto, percebemos que a tragédia tem contornos que demandarão esforço hercúleo - e inédito - da sociedade, do contrário, não só estaremos condenados a crescer a baixas taxas de crescimento econômico doravante, mas também a aprofundar as mazelas sociais que já nos caracterizam e distinguem negativamente no mundo.

Tomando-se, por exemplo, o conceito de pobreza de quem vive com menos de 5,5 dólares por dia (grosso modo, cerca de R$ 460 por mês), chegamos a uma realidade aterradora: 17 milhões de crianças brasileiras, isto, até 14 anos de idade, estão abaixo desse valor. “Pegando os dados da PNAD, temos que 41% das crianças brasileiras até 14 anos estão abaixo da linha de pobreza”, observa o economista gaúcho Aod Cunha, ex-secretário da Fazenda do Rio Grande do Sul, hoje, assessor econômico do governador Eduardo Leite, pré-candidato do PSDB à Presidência da República.

Ricardo Mendonça - Responsabilidade fiscal e coesão partidária

Valor Econômico

A confusão de Bolsonaro é tão grande que vem deixando o PT na posição que melhor representa a disciplina fiscal

Quando a PEC dos Precatórios foi votada na Câmara, no início do mês, o que mais chamou a atenção de comentaristas e analistas foi o comportamento de deputados do PDT, do PSB e do PSDB favoráveis à matéria.

Não sem motivo.

A proposta tem vários significados, quase todos eles negativos para a economia e ao Judiciário, mas francamente favoráveis aos interesses estritamente eleitoreiros do presidente Jair Bolsonaro.

Na dimensão jurídica acabou sendo batizada de “PEC do Calote”. Isso porque estabelece um jeitinho de o governo simplesmente não pagar no prazo adequado indenizações de processos judiciais em que já foi derrotado e não tem mais possibilidade de recursos.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Sinal verde

Folha de S. Paulo

Alemanha define governo que sucederá Merkel, com desafios de curto e longo prazo

Depois de dois meses de intensas tratativas, o SPD (Partido Social Democrata, na sigla alemã) conseguiu enfim formar o governo que sucederá os 16 anos de comando de Angela Merkel à frente da maior economia da União Europeia.

O novo chanceler, primeiro-ministro na terminologia alemã e austríaca, será mesmo Olaf Scholz, 63, um tecnocrata que ocupava o cargo de ministro das Finanças e era o segundo homem na grande coalizão liderada pela longeva Merkel —que unia seus democratas-cristãos aos sociais-democratas.

Pode parecer continuísmo — e em diversos sentidos será, dado que o transatlântico alemão é de difícil manobra. Mas o governo formado é inédito na história do país.
Une o mais antigo partido alemão, o SPD, aos Verdes e aos liberais do FDP (Partido Democrático Livre).

Pelas cores associadas a cada sigla, é a chamada coalizão semáforo (social-democratas são vermelhos, e liberais, amarelos).

A combinação era lógica. Excluindo a CDU/CSU de um acordo, o SPD escolheu um agrupamento que ganhou 416 cadeiras no Parlamento em setembro, 48 a mais do que a maioria simples da Casa.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Cariocas

Como vai ser este verão, querida, com a praia, aumentada/ diminuída?
A draga, esse dragão, estranho creme
de areia e lama oferta ao velho Leme.
Fogem banhistas para o Posto Seis,
O Posto Vinte... Invade-se Ipanema
hippie e festiva, chega-se ao Leblon
e já nem rimo, pois nessa sinuca
superlota-se a Barra da Tijuca
(até que alguém se lembre
de duplicar a Barra, pesadíssima).
Ah, o tamanho natural das coisas
estava errado! O mar era excessivo,
a terra pouca. Pobre do ser vivo,
que aumenta o chão pisável, sem que aumente
a própria dimensão interior.
Somos hoje mais vastos? mais humanos?
Que draga nos vai dar a areia pura,
fundamento de nova criatura?
Carlos, deixa de vãs filosofias,
olha aí, olha o broto, olha as esguias
pernas, o busto altivo, olha a serena
arquitetura feminina em cena
pelas ruas do Rio de Janeiro
que não é rio, é um oceano inteiro
de (a) mo (r) cidade.
Repara como tudo está pra frente,
a começar na blusa transparente
e a terminar... a frente é interminável.
A transparência vai além: os ossos,
as vísceras também ficam à mostra?
Meu amor, que gracinha de esqueleto
revelas sob teu vestido preto!
Os costureiros são radiologistas?
Sou eu que dou uma de futurólogo?
Translúcidas pedidas advogo:
tudo nu na consciência, tudo claro,
sem paredes as casas e os governos...
Ai, Carlos, tu deliras? Até logo.
Regressa ao cotidiano: um professor
reclama para os sapos mais amor.
Caçá-los e exportá-los prejudica
os nossos canaviais; ele, gentil,
engole ruins aranhas do Brasil,
medonhos escorpiões:
o sapo papa paca,
no mais, tem a doçura de uma vaca
embutida no verde da paisagem.
(Conservo no remorso um sapo antigo
assassinado a pedra, e me castigo
a remoer sua emplastada imagem.)
Depressa, a Roselândia, onde floriram
a Rosa Azul e a Rosa Samba. Viram
que novidade? Rosas de verdade,
com cheiro e tudo quanto se resume
no festival enlevo do perfume?
Busco em vão neste Rio um roseiral,
indago, pulo muros: qual!
A flor é de papel, ou cheira mal
o terreno baldio, a rua, o Rio?
A Roselândia vamos e aspiremos
o fino olor de flor em cor e albor.
Um rosa te dou, em vez de um verso,
uma rosa é um rosal; e me disperso
em quadrada emoção diante da rosa,
pois inda existe flor, e flor que zomba
desse fero contexto
de metralhadora, de sequestro e bomba?

Música | 80 Anos de Martinho da Vila / Samba de Noel com Teresa Cristina