sábado, 29 de fevereiro de 2020

Merval Pereira - Sucessão de equívocos

- O Globo

O que não tem a ver como presidencialismo é a democracia direta, baseada em plebiscitos ou referendos e em convocações

Toda essa desavença entre Executivo e Legislativo pelo orçamento da União surgiu de um raciocínio equivocado do ministro Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Não me refiro ao palavrão que gerou a convocação da manifestação do “fod*-se”, mas à idéia de que se o Congresso quer mudar as regras do presidencialismo, que aprove o parlamentarismo.

A separação dos poderes, criada na Constituição americana em 1789, é característica do presidencialismo. Existia na teoria, principalmente pela famosa obra de Montesquieu “O espírito das leis”, e de forma incipiente na Inglaterra.

A primeira república constitucional do mundo moderno é considerada a dos Estados Unidos, com a base de que quem dá os rumos é o Congresso. No presidencialismo, um deputado, um senador, não tem chefe, muito menos poderia ser subordinado ao chefe de outro Poder, o Executivo. Por isso, para que um parlamentar americano seja ministro, precisa renunciar ao seu mandato, e não apenas licenciar-se, como acontece no Brasil.

O que não tem a ver com o presidencialismo é a democracia direta, baseada em plebiscitos ou referendos, e em convocações de manifestações para pressionar o Legislativo ou o Judiciário. Essa é a maneira usada pelos bolivarianos que tanto Bolsonaro combate.

A disputa entre Executivo e Legislativo em torno do Orçamento tem origem nas colônias americanas da Inglaterra, que se rebelaram por quererem ter representantes presenciais no Parlamento em Londres, em vez de uma representação apenas virtual como queriam os ingleses. A frase “No taxation without representation” (Nenhuma taxação sem representação) tornou-se o símbolo de um movimento de autonomia das 13 colônias americanas que culminou, anos depois, em 1776 na fundação dos Estados Unidos.

No Brasil, o orçamento sempre foi uma peça de ficção dominada pelo Executivo, tanto que ele era considerado “autorizativo”, isto é, o Executivo poderia liberar as verbas que quisesse. Há quem considere que a aprovação do orçamento impositivo no que se refere às emendas dos deputados e senadores e das bancadas, como existe hoje, pode trazer um benefício: acabar o “é dando que se recebe” com relação às emendas parlamentares, provocando uma redefinição de forças no Congresso porque parlamentares deixariam de se alinhar automaticamente com o governo só para liberar suas emendas.

Ascânio Seleme - Um país que precisa de memória

- O Globo

No Brasil, parcela importante da população não consegue enxergar os males que um regime totalitário, intransigente e macabro gera nas pessoas

Não basta ter ódio e nojo da ditadura, como expressou Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição, em 1988. É preciso ter presente na memória coletiva os males que um regime totalitário, intransigente e macabro gera nas pessoas, nas famílias, nas coletividades, nos bairros, nas cidades e nas nações. É preciso que os mais jovens, os que não viveram sob a ditadura, tenham por ela o mesmo ódio e o mesmo nojo. É preciso que a memória seja viva e tangível. Que se possa tocar nas feridas para saber como elas doem.

No Brasil, parcela importante da população não consegue enxergar o passado porque é pequena a exposição de quem foram e o que fizeram os facínoras que, em nome dos ditadores, perseguiam, prendiam ilegalmente, sequestravam, torturavam, matavam e faziam desaparecer pessoas. Sem isso na cabeça, manifestantes pró-Bolsonaro vão para as ruas e pedem a volta da ditadura. Como farão no próximo dia 15. Desprezam os Poderes Legislativo e Judiciário e acreditam que a mão armada de fuzil e porrete é capaz de colocar ordem na casa.

A História prova o contrário. Além das barbaridades que cometem, e no Brasil não foi diferente, regimes autoritários erram muito mais justamente por não admitirem o contraditório, não se abrirem para o pluralismo de ideias e inovações que verdadeiramente mudam as coisas para melhor. Fora alguns bons livros e documentos históricos importantes como o “Brasil: Nunca Mais”, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns, pouco resta para escancarar para as pessoas o que foi a ditadura brasileira.

O Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em janeiro de 2009, é o único museu brasileiro que mostra como se operava a violência do Estado contra seus cidadãos. Ele está instalado numa parte do prédio em que funcionou o antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), principal centro de tortura do estado, e que hoje também abriga a Pinacoteca. Situado no Parque da Luz, em pleno coração de São Paulo, o temido e famigerado Dops operou barbaridades desde a instalação da ditadura brasileira, em abril de 1964, até a sua extinção, em março de 1983.

Míriam Leitão - A crise política do Orçamento

- O Globo

Crise política nasceu de um mal-entendido, mas foi alimentada por quem não quer entender a necessidade de negociar a saída

Por trás da crise institucional que estourou no carnaval está um mal-entendido. É o que se ouve no Congresso e nas áreas do governo que não estão dedicadas ao incêndio político. “É preciso se acalmar e conversar”, sugere um integrante graduado do Executivo. O relator do Orçamento, deputado Domingos Neto (PSD-CE), também diz que é um grande mal-entendido e justifica. “É assunto técnico, às vezes converso com ministros e vejo que há muita desinformação.” Na semana que vem o parlamento deve derrubar os vetos do presidente Bolsonaro, e o melhor é fazer isso de forma negociada, diz o relator.

Há quem no governo queira a crise. O grande problema é que nesse lado está o próprio presidente Bolsonaro e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O nome do cargo já diz que o general Heleno deveria ser o primeiro a querer a segurança das instituições. O seu áudio foi divulgado depois de já ter sido feito o acordo que resolvia a questão orçamentária. Em vez de as palavras do general serem esvaziadas, viraram combustível para mais incêndio.

O Orçamento agora é impositivo. Isso é incontornável. Já está aprovado. Significa que o governo manda o projeto, o Congresso aprova, e aí o governo tem que cumprir. E isso retira atribuições do executivo?

Marco Antonio Villa - Estagnação e a sucessão presidencial

- Revista IstoÉ

O débil crescimento econômico do Brasil desmascarará Bolsonaro. A reeleição não vai passar de sonho de Carnaval

O cenário construído na passagem do ano já se desfez. Tanto no campo político, como no campo econômico. Foi criado artificialmente um quadro de bonança econômica. Dava a impressão de que o mundo inteiro estava interessando em investir no Brasil. Mas já era evidente o distanciamento do discurso em relação à realidade econômica. Os dados da balança comercial de 2019 eram preocupantes. Mesmo mantendo superávit, o valor foi o menor desde 2015. E o mês de janeiro apresentou déficit, o primeiro desde fevereiro de 2015. Diversamente de janeiro de 2019, quando o saldo da balança foi de pouco mais de US$ 1,6 bilhão. A retirada de capital estrangeiro da bolsa é outro dado preocupante. No ano passado foram embora R$ 44,5 bilhões.

Mas, para piorar, só no último mês de janeiro e início de fevereiro, a fuga foi de R$ 23 bilhões. Caso se mantenha esta tendência, não vai causar admiração no primeiro semestre seja atingido o total do ano anterior. O dólar atingiu em fevereiro a maior cotação da história e o real foi a moeda que mais se desvalorizou neste ano, comparativamente com outras aqui da América Latina.

Bolívar Lamounier - No limiar de um terceiro erro

- Revista IstoÉ

Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser

Qualquer que seja nossa avaliação sobre o momento atual, parece-me fora de dúvida de que estamos no limiar de importantes transformações em nossa identidade nacional — ou seja, na maneira pela qual nos vemos como povo.

Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que nossa identidade nacional já passou por duas fases — duas versões, duas ilusões — e dois erros colossais, que nos deixaram no limiar de um possível terceiro grande erro. A primeira versão foi a ideia do “brasileiro pacífico”, da conciliação entre as elites políticas, da “cordialidade” entre as pessoas comuns e da inexistência de racismo. No essencial, essa “narrativa” tinha um claro sentido de bajulação ao ditador Getúlio Vargas, exaltado como fundador da nacionalidade, culminando numa concepção do poder central como um Estado poderoso, bondoso e paternalista.

Hélio Schwartsman - Ciência contra a epidemia

- Folha de S. Paulo

Torçamos para que os terraplanistas do governo continuem longe do Ministério da Saúde

A essa altura, parecem inúteis os esforços para manter o vírus que causa a covid-19 fora de fronteiras nacionais. A progressão da epidemia pelo mundo mostra que a doença, por provocar muito mais quadros leves do que graves, se espalha com facilidade e não será contida por quarentenas.

E o fato de o risco que cada indivíduo corre de morrer por causa da covid-19 ser baixo não significa que ela não vá causar estragos coletivos. No plano sanitário, o que preocupa é a pressão sobre os sistemas de saúde. O objetivo central das autoridades a partir de agora deve ser o de impedir que a curva de novas infecções suba muito rapidamente. Se conseguirmos espaçar o ritmo de contágio, será menor o pico de demanda sobre os hospitais, o que poderá evitar mortes por falta de ventiladores, por exemplo.

Julianna Sofia - Sob escombros

- Folha de S. Paulo

Em crise com Legislativo e com reformas travadas, Bolsonaro pede pressa para carteira de motorista de 10 anos

Desdobramentos da crise fabricada pelo Palácio do Planalto na briga com o Congresso por R$ 30 bilhões do Orçamento impositivo são esperados para os próximos dias com a volta da cúpula legislativa do feriadão de Carnaval. Há dúvidas se resta algo sob os escombros do acordo costurado entre as partes, depois de ter sido dinamitado pela fala vazada do general Augusto Heleno (GSI) sobre o que chamou de chantagem parlamentar.

O pacto previa uma saída salomônica na divisão do dinheiro, permitindo que o Executivo retomasse o manejo de R$ 11 bilhões. Trata-se de ínfima parte do bolo orçamentário —que hoje tem 97% dos recursos carimbados como obrigatórios—, numa disputa reveladora da progressiva hipertrofia do Legislativo frente a um Executivo que perde poder.

Alvaro Costa e Silva - Um presidente aloprado

- Folha de S. Paulo

Só decifrando a linguagem da caserna para explicar Bolsonaro

Cada época tem a gíria que merece. Gíria aí significando a linguagem de um grupo fechado, a qual, a princípio, só fazia sentido dentro dele próprio, funcionando como código de defesa, mas cuja ação e importância, por algum motivo, se expande, se multiplica, fura a bolha e faz com que suas histórias, narrativas, hábitos, atitudes, palavras comecem a ser admirados, imitados e muitas vezes mal interpretados pela sociedade em geral. O fenômeno vale para uma patota de amigos da esquina, uma torcida de clube, um bando de marginais ou um conjunto musical.

A repórter Naira Trindade, no jornal O Globo, mostrou que o jargão da caserna domina o dia a dia do governo, que tem —além do presidente, um capitão do Exército aposentado, e do vice, um general da reserva— oito militares ocupando o alto escalão, alguns deles com gabinete no Palácio do Planalto.

Demétrio Magnoli*– O Povo e Exército

- Folha de S. Paulo

Enquanto isso, chefes militares renunciam a prestar continência à Constituição e repelir a politização dos quartéis

Engana-se quem interpretou a militarização do núcleo político do governo como sinal de marginalização dos extremistas do bolsonaro-olavismo. Depois de recolher suas bravatas vazias contra a ditadura de Maduro, Jair Bolsonaro inspira-se no chavismo para ensaiar uma ruptura institucional. “O Povo e o Exército” —a fórmula chavista orienta os dois motins paralelos estimulados pelo presidente contra a democracia. A estratégia avança à sombra do temor dos líderes parlamentares e dos comandantes militares, que se curvam diante do espectro disforme das redes sociais.

O motim da PM do Ceará distingue-se de tantos tumultos policiais anteriores porque brotou no terreno da política, apenas tomando carona em reivindicações corporativas. Há meses, as redes virtuais olavistas operam nos quartéis das PMs. Um vereador-sargento de Sobral ligado às hostes de Bolsonaro insuflou os amotinados. O clã presidencial mal esconde seu apoio à baderna.

A letra da lei não assusta os arruaceiros que copiam os métodos das facções. Quando Cid Gomes avançou, irresponsavelmente, com uma escavadeira, exprimia uma justa indignação. Aceitaremos, de braços cruzados, a transmutação da PM em milícia politizada? Sim, claro, respondeu Sergio Moro: “o governo federal veio para serenar os ânimos, não para acirrar”.

No lugar de cercar os quartéis invadidos, cortar luz e água, exigir a rendição dos amotinados, as forças federais limitaram-se a substituir a polícia no patrulhamento das ruas, oferecendo aos bandidos em uniforme um tempo extra para o exercício da chantagem. “Serenar os ânimos”: o governo estadual, desarmado, deve enfrentar sozinho os milicianos armados. A novela ruma às conclusões previsíveis: negociação e, lá adiante, anistia. O crime compensa.

Oscar Vilhena Vieira* - Em defesa das regras do jogo

- Folha de S. Paulo

Ações de Bolsonaro devem assustar seus eleitores liberais e conservadores

Dizer que a democracia e o Estado de Direito não correm riscos é negligenciar os ataques e investidas que lhe têm sido dirigidos diariamente por um governo de orientação autocrática e vizinhança miliciana.

O fato de as instituições constitucionais, assim como as organizações da sociedade civil e os meios de comunicação, estarem colocando certos limites ao governo não significa que a democracia liberal brasileira não esteja sob ameaça.

Deveria ser motivo de especial preocupação dos eleitores liberais de Bolsonaro os recentes e contundentes ataques à liberdade de expressão e à independência dos Poderes Legislativo e Judiciário.

Uma das premissas fundamentais do liberalismo político, tal como apresentada por Montesquieu, é que todo aquele que detém o poder tende a dele abusar.

Daí porque é indispensável, para coibir o exercício absoluto e arbitrário do poder, que ele seja fragmentado e disposto de tal forma que cada um dos Poderes sirva de contrapeso aos demais.

Ao fazer coro àqueles que estão convocando manifestações voltadas a castrar o Poder Legislativo e o Judiciário, em especial o Supremo Tribunal Federal, o presidente da República não apenas está conspirando contra um pilar central do sistema político liberal, como também pode estar cometendo um crime de responsabilidade, tal como disposto pelo artigo 85, II, da Constituição Federal.

Da mesma forma, deveria causar profunda indignação a todos aqueles que têm ao menos uma gota de liberalismo nas veias os recentes ataques à liberdade de imprensa.

Editorial / O Estado de S. Paulo - A pequenez da Presidência

Bolsonaro parece agir como se tivesse ciência de sua inaptidão para exercer o elevado cargo e, assim, não vê alternativa a não ser rebaixar a instituição para nela caber

Um presidente que precisa conclamar diretamente – e em tom épico – atos públicos para demonstrar a sua força talvez não seja tão forte assim, ou ao menos não o quanto imagina ser. É fato que Jair Bolsonaro não conta mais com a ampla rede de apoio que alçou um então inexpressivo deputado à Presidência da República em 2018. Ao longo do ano passado e no início deste ano foram realizadas pesquisas de opinião por diferentes institutos que atestam que o presidente não corresponde mais aos anseios de uma expressiva parcela de brasileiros que confiaram nas promessas do então candidato e, principalmente, viram em Jair Bolsonaro um anteparo à mão para interromper o ciclo de desmandos do PT.

A cisão pode ser observada mesmo em grupos antes mais ligados ao presidente. Como revelou o Estado, as lideranças desses grupos não se entendem sobre a pauta a ser levada às ruas no próximo dia 15. De um lado, estão os bolsonaristas “puros”, ou seja, os que defendem a pessoa de Jair Bolsonaro, o “mito”. De outro, os lavajatistas, que em 2018 viram em Bolsonaro o candidato certo para levar adiante a pauta do combate à corrupção. Ambos os grupos estiveram juntos na eleição, mas hoje divergem quanto à natureza do apoio que dão ao governo federal. A arena dessa contenda são as redes sociais.

Integrantes da “República de Curitiba”, grupo de apoio à Lava Jato, têm sido acusados por membros do “Movimento Conservador” de “sabotar” a pauta dos atos marcados para o dia 15, incluindo na agenda a defesa de temas que não estão diretamente ligados à defesa incondicional do presidente Jair Bolsonaro, como a prisão após condenação em segunda instância.

Movimentos como o Vem pra Rua e o Movimento Brasil Livre (MBL), bastante ativos no impeachment de Dilma Rousseff e nas manifestações que, ao fim e ao cabo, serviram para galvanizar a candidatura de Bolsonaro à Presidência da República, nem sequer participarão dos atos, embora defendam as propostas caras ao ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, e à Lava Jato.

Adriana Fernandes - Uma ‘pedalada social’?

- O Estado de S.Paulo

O represamento das filas é um problema orçamentário de grande complexidade

Mais de 5 milhões é o número de brasileiros que aguardam na fila de pedidos para ter acesso aos programas sociais do governo e benefícios previdenciários. São 1,379 milhão de pessoas nos bancos do INSS e 3,621 milhões esperando por uma resposta do programa Bolsa Família.

A crise do represamento das concessões é um problema social de extensa gravidade e com enorme consequência para o País. Não só no curto prazo. As crianças mais novas, os idosos e as pessoas com deficiência de baixa renda, aquelas mais miseráveis, são os mais atingidos pelo colapso no gerenciamento da fila.

Era de se esperar, portanto, que as autoridades brasileiras estivessem mobilizadas num gabinete de crise para encaminhar uma solução para mitigar o problema diante das cobranças do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União.

Ao contrário, não se vê nenhuma autoridade empenhada verdadeiramente em assumir a liderança da condução do processo. Há 44 dias (é isso mesmo), o governo anunciou que iria contratar até 7 mil militares da reserva das Forças Armadas para auxiliar no atendimento das agências do INSS.

Em acordo fechado com TCU há algumas semanas, o governo anunciou que iria estender a contratação temporária para servidores aposentados do INSS. O fato é que o tempo passou e, até agora, nada da edição de medida provisória (MP) pelo presidente.

Marcus Pestana - Paciência, democracia e responsabilidade

Reza a lenda que o ano só começa no Brasil após o Carnaval. O feriado momesco era sempre um período de trégua. Mas o Brasil anda tão esquisito, que 2020 desmentiu a tradição.

Por um lado, o fantasma do coronavírus colocando a economia mundial em compasso de espera, colocando em risco a incipiente recuperação brasileira de sua maior recessão. Dólar subindo, bolsa caindo, crise na segurança pública ameaçando o equilíbrio fiscal. O otimismo recebendo um balde de água fria.

Por outro, no mundo da política, atitudes e frases mal colocadas ganhando corpo na imprensa e nas redes sociais, alimentando o clima de radical polarização. Seria impensável, em outros tempos, uma crise política-institucional se esboçar em pleno carnaval brasileiro. A cultura antidemocrática que hoje inspira milhões de brasileiros, materializada numa frenética convocação de uma manifestação contra o Congresso Nacional e a nossa Corte Constitucional.

Diante disso, fui tomado por um sentimento saudosista. Num quadro onde a chamada “velha política” se afigura como verdadeiro palavrão, senti saudades da velha e boa política.

Sou da geração da redemocratização. Nasci para política, dentro da cultura de esquerda, predominante no movimento estudantil, mas que tinha referência em figuras como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, que nos lideraram na travessia para a democracia. Eram lideranças forjadas pela experiência histórica, firmes nas convicções, mas vocacionados para a promoção do diálogo e do entendimento, sem tibieza, mas abertos sempre à construção de consensos progressivos. 

Sérgio Augusto - O dia da urucubaca

- O Estado de S. Paulo

Descobri no Google que em 15 de março comemora-se, aqui, o Dia da Escola

Estava eu entretido a ler tudo ao meu alcance sobre a prometida alteração no Código Penal da Espanha, visando a banir o franquismo do espaço público espanhol, quando sobreveio a convocatória eletrônica para a marcha bolsonarista do próximo dia 15 de março, visando a banir o Congresso, o STJ e o que mais puder ser extinto por um sucedâneo do AI-5 ou, presumo, por balas milicianas.

Cada governo faz desaparecer o que bem entende. O espanhol almeja sumir com o fantasma do caudilho Francisco Franco (1892-1975) e o bolsonarista, mais ambicioso, com a democracia. Os espanhóis buscam aliviar o vergonhoso fardo do passado, eliminando da paisagem a imagem do ditador que oprimiu o país de 1938 a 1973, enquanto aqui uma falange neofascista se empenha em ressuscitar, com o beneplácito presidencial, uma ditadura que se esmerou em calar, prender, torturar e sumir com quem lhe fizesse oposição.

Se aprovada a tipificação delituosa da apologia e do mero merchandising de Franco e do franquismo, o cidadão que infligir a lei irá para o xadrez. Se castigo similar vigorasse no Brasil, Bolsonaro nem teria sido candidato a presidente. Sua exaltação ao torturador Ustra e outras ameaças, como a de repetir aqui, em escala menor, o genocídio indonésio de 1965, em que 300.000 “inimigos do regime” foram mortos pela repressão, poderiam tê-lo colocado atrás das grades quatro anos atrás.

Por que 15 de março?

Por que não no dia 8, que também cai num domingo, o dia padrão das manifestações da nossa direita? Embora a exiguidade de tempo para organizá-la seja uma explicação razoável, tenho para mim que seus articuladores queriam mesmo era evitar a concorrência feminista. 8 de março é o Dia Internacional da Mulher. Se os bolsominions saíssem às ruas no próximo domingo, poderiam ser fragorosamente abafados pela manifestação concorrente.

Vera Magalhães sobre os vídeos compartilhados por Bolsonaro no WhatsApp

O que a mídia pensa - Editoriais

A pequenez da Presidência – Editorial | O Estado de S. Paulo

Um presidente que precisa conclamar diretamente – e em tom épico – atos públicos para demonstrar a sua força talvez não seja tão forte assim, ou ao menos não o quanto imagina ser. É fato que Jair Bolsonaro não conta mais com a ampla rede de apoio que alçou um então inexpressivo deputado à Presidência da República em 2018. Ao longo do ano passado e no início deste ano foram realizadas pesquisas de opinião por diferentes institutos que atestam que o presidente não corresponde mais aos anseios de uma expressiva parcela de brasileiros que confiaram nas promessas do então candidato e, principalmente, viram em Jair Bolsonaro um anteparo à mão para interromper o ciclo de desmandos do PT.

A cisão pode ser observada mesmo em grupos antes mais ligados ao presidente. Como revelou o Estado, as lideranças desses grupos não se entendem sobre a pauta a ser levada às ruas no próximo dia 15. De um lado, estão os bolsonaristas “puros”, ou seja, os que defendem a pessoa de Jair Bolsonaro, o “mito”. De outro, os lavajatistas, que em 2018 viram em Bolsonaro o candidato certo para levar adiante a pauta do combate à corrupção. Ambos os grupos estiveram juntos na eleição, mas hoje divergem quanto à natureza do apoio que dão ao governo federal. A arena dessa contenda são as redes sociais.

Música | Marisa Monte - É você / Tribalistas

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Para a feira do livro

A Ángel Crespo

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.

Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.