sexta-feira, 1 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Ministério Público não pode defender regalias

Folha de S. Paulo

Conselho que deveria fiscalizar e disciplinar age como órgão corporativo em temas como o do auxílio-moradia

Toda atenção é pouca quando um órgão com o histórico do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) edita portarias e resoluções que versam sobre pagamentos a promotores e procuradores.

No papel, a instituição surgiu para incrementar a fiscalização administrativa e disciplinar do Ministério Público; na prática, sua conduta se distingue pouco daquela esperada de uma entidade corporativa.

Em novembro passado, por exemplo, o conselho lutou contra a transparência e dificultou a busca de dados sobre remuneração de membros do Ministério Público.

Anos antes, fez ainda pior: autorizou que a licença-prêmio fosse convertida em pecúnia, uma medida que, de 2019 a 2022, custou R$ 439 milhões aos cofres públicos.

Fernando Gabeira - A desolação da realidade num país polarizado

O Estado de S. Paulo

A quem apelar, quando os polos caminham com um tipo de visão de mundo que a ideologia torna impenetrável às críticas?

“É assim que ele pode entrar / na desolação da realidade.” Esse verso de Yeats certamente foi escrito pensando numa Europa com a religião em declínio e sem entusiasmo pelas expressões seculares da salvação através de projetos políticos. No Brasil, a religião ainda é muito forte, como também o são as esperanças milenaristas num mundo completamente novo. No entanto, é possível usar o verso de Yeats e falar da desolação da realidade num país cujo traço político é a polarização, movida por ásperas redes sociais.

Começando pelo mais simples: a polarização traz inimizade entre pessoas com ideias diferentes, e isso não é bom. Vivemos uma epidemia de dengue que poderia ser mais bem combatida com iniciativas de vizinhança destinadas a remover os focos de proliferação do mosquito. Como realizar isso entre vizinhos que se detestam?

Alguns brasileiros esperam uma política externa mais próxima dos rumos definidos na redemocratização, sobretudo um discreto estímulo à solução pacífica dos conflitos. Estão condenados a não encontrar isso.

Luiz Carlos Azedo - Governo Lula tem duas políticas, a do PT e a dos outros

Correio Braziliense

Por necessidade, Lula é obrigado a administrar complexas relações com partidos de centro-direita que apoiaram Bolsonaro e, agora, são o fiel da balança no Congresso

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito com apoio dos partidos de centro que rejeitaram a reeleição de Bolsonaro, mas cuja densidade eleitoral foi e continua sendo muito pequena nas disputas majoritárias. Representado no governo pela ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB), que recebeu apoio do MDB, da federação PSDB-Cidadania e do União Brasil, esse bloco não é suficiente para garantir a estabilidade do governo. Por necessidade, Lula é obrigado a administrar complexas relações com partidos de centro-direita que apoiaram Bolsonaro e, agora, são o fiel da balança no Congresso, principalmente na Câmara, como o PP e o PR.

Bernardo Mello Franco – Palpite infeliz

O Globo

Às vésperas dos 60 anos do golpe de 1964, Lula informou que não está interessado em “ficar discutindo o passado”. “Isso já faz parte da História, já causou o sofrimento que causou”, disse o presidente. “Não vou ficar me remoendo. Vou tentar tocar esse país para a frente”, acrescentou, em entrevista à RedeTV!.

A declaração agradou militares e ofendeu parentes de vítimas da ditadura. “É um desrespeito. A reação dos familiares é essa: um sentimento de traição”, resumiu o músico Leo Alves, neto de desaparecido político. Seu avô, o jornalista Mário Alves, foi torturado e morto no DOI-Codi do Rio.

Na cerimônia de posse, Lula foi aplaudido ao repetir o bordão “Ditadura nunca mais”. O discurso animou entidades que defendem os direitos humanos, mas não se traduziu em ações práticas. De concreto, o Exército deixou de comemorar o aniversário do golpe. Não fez mais que a obrigação. Quem vive do dinheiro dos impostos deve obediência à lei e respeito à democracia.

Vera Magalhães - Projeto dos apps frustra promessa de Lula

O Globo

Realidade se mostrou mais complexa que tentativa de impor lógica antiga a modelo novo de relação de trabalho

A negociação de mais de um ano entre governo, empresas, sindicatos pouco representativos e organizados e trabalhadores informais dispersos em torno da ideia da regulamentação trabalhista de motoristas e entregadores por aplicativos talvez seja o exemplo mais acabado da dificuldade do PT de operar com suas velhas lideranças num mundo que passou por uma enorme transformação nos 7 anos em que o partido ficou longe do poder.

Lula fez do tema uma das suas principais bandeiras, tanto na campanha presidencial quanto em sua plataforma de reinserção como liderança global. Mas a tentativa árdua, circular e muitas vezes improdutiva, ao longo de 2023 e até agora, de construir um projeto de lei para formalização e proteção previdenciária desses trabalhadores mostrou que nem como candidato nem como presidente ele foi apresentado a todos os dados e às nuances que cercam essa nova e tão disseminada atividade.

José de Souza Martins* - Revelações do ato de Bolsonaro na Paulista

Valor Econômico

Foi significativo o surto emocional e místico de Michelle Bolsonaro e as palavras dirigidas à emoção e não à razão dos espectadores e ouvintes

Fracos nos números, somos um povo que gosta de calcular tamanhos, não só os dos muito menos do que precisam as fantasias numéricas para se viver a suposição da vitória em face do esperado fracasso do outro. Mas também os dos muito mais do que o bom senso não confirma, para supor a ilusão de números que dizem o muito sem dizer o verdadeiro. É coisa que vem da cultura das fake news que dão aparência de legitimidade ao meramente imaginado.

O evento de domingo na avenida Paulista não escapou desse jogo, oscilando as estimativas de presenças entre 185 mil e 600 mil. Fico com os 185 mil porque calculados com base na pesquisa “Monitor do debate político”, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo e técnica definida.

Esse tipo de número vale por sua relação com uma base de referência. Nesse sentido, os 185 mil correspondem a 1,5% da população da cidade de São Paulo, onde o evento ocorreu. Seria mais prudente tomar como referência a população da área metropolitana de São Paulo, dada a relativa facilidade de deslocamento para o local da manifestação.

César Felício - Evangélicos fortes nas ruas e no Congresso

Valor Econômico 

Depois da aprovação da reforma tributária pelo Congresso Nacional no ano passado, ficou tacitamente estabelecido que o ano legislativo de 2024, sobretudo sua primeira metade, será concentrado na regulamentação da matéria. Acreditava-se até que os deputados e senadores já iriam iniciar seus trabalhos pautados pelo governo, que tem prazo e pressa para enviar as propostas.

Não é exatamente assim que o ano começou. Os parlamentares abriram o plenário propondo mudar a parte de impostos da Constituição mais uma vez, antes de qualquer lei complementar, e espaço para regulamentar o novo sistema é o que não falta.

Essa semana provou que a discussão tributária sem dúvida é uma prioridade, mas com uma baliza: a ampliação de tratamentos tributários diferenciados para o grupo de pressão que se articular mais rápido e tiver maior poder de fogo. A bancada evangélica se organizou e o clero terá uma reforma tributária para chamar de sua, a PEC 5/2023, do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), já na ordem do dia da Câmara.

Pedro Doria - IA que vale nas eleições?

O Globo

Pode usar inteligência artificial, sim. O que não pode é usar para enganar o eleitor, para falsear a História

Há uma ambiguidade proposital nas regras criadas pelo Tribunal Superior Eleitoral para uso de inteligência artificial nas eleições municipais deste ano. Por um lado, deepfakes são terminantemente proibidas. Por outro, o uso de IA generativa é permitido, desde que esteja registrado que aquela imagem, aquele texto, foi produzido usando a tecnologia.

Para o observador habituado ao debate sobre o meio digital, a regra parece incoerente. Afinal, qual é a diferença? Deepfakes são vídeos modificados usando IA para substituir um rosto. Candidato ao governo de São Paulo em 2018, o então tucano João Doria foi vítima de um. Seu rosto foi posto no corpo de um ator que compartilhava a cama de um motel com três mulheres. Esse tipo de falsificação pode fazer parecer que alguém falou algo, esteve numa determinada situação. Constrói uma mentira crível. É como se o TSE dissesse que pode usar IA, mas que não pode. Toda IA cria, afinal, uma situação que jamais existiu. Ao criar a distinção entre IA e deepfakes no texto, a Corte põe ali algo que é ambíguo.

Maria Cristina Fernandes - Decisão das sobras eleitorais foi uma risca de giz na unidade do STF

Valor Econômico

Sessão produziu um claro embate entre Barroso, que tem pouca proximidade com a cúpula dos Poderes, e Moraes, que a adquiriu

A sessão de quarta-feira (28), que votou três ações sobre a distribuição das sobras eleitorais, foi um marco na unidade do colegiado. Ao impedir que a mudança na regra estabelecida pela lei eleitoral de 2021 retroagisse e afetasse sete cadeiras da atual composição da Câmara dos Deputados, seis ministros, liderados pelo presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, traçaram a risca de giz: a unidade, indissolúvel no embate com o golpismo, não se estende aos temas que afetam a relação entre os Poderes.

O tema em questão afetava a distribuição das cadeiras que sobram na distribuição do sistema proporcional e o prazo a partir do qual uma mudança nas regras definidas em 2021 passariam a valer.

A mudança passou, vencidos os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e André Mendonça, mas não sua retroatividade, que levaria à troca de sete deputados da atual composição da Câmara. Nesta questão, houve uma virada. Aos quatro, além do ex-ministro Ricardo Lewandowski, que votou antes de se aposentar, uniu-se a ministra Cármen Lúcia, compondo a maioria. E, assim, a regras não deverão retroagir. Não mudarão a atual composição da Câmara.

Eliane Cantanhêde - Direito de propriedade

O Estado de S. Paulo

Assim como a Vale não é dona do Brasil, Lula não é dono da Vale nem da Petrobras

A Vale do Rio Doce não é dona do Brasil, mas o presidente Lula também não é dono da Vale. Aliás, nem da Petrobras. E é por falar demais, e agir como se fosse dono de tudo e da verdade, que o presidente cria polêmicas desgastantes, tumultuando a política externa brasileira e atraindo desconfiança do mercado e dos investidores. Com uma agravante: o novo ataque à Vale foi dias depois da demonstração de força de Jair Bolsonaro na Avenida Paulista.

É como se Lula não engolisse o fato de que a Vale foi privatizada e, como privatizada, vai muito bem, obrigada. Tudo piora quando ele manobra para impor na presidência da companhia o ex-ministro da Economia de Dilma Rousseff, das pedaladas fiscais e de dois anos de recessão. Houve resistência a Guido Mantega até para a equipe de transição, imagine para a presidência da Vale? A ideia flopou.

Ruy Castro - Um brasileiro chamado Garrincha

Folha de S. Paulo

No Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo, Brasil ainda faz de conta que o problema não existe

O álcool é responsável por 4% das mortes no mundo. Nos últimos anos, a porcentagem de brasileiros que bebem pelo menos uma vez por semana cresceu de 23,9% para 26,4%. A ingestão de álcool no Brasil é 30% dramaticamente superior à média mundial. Ao mesmo tempo, o país não se empenha em campanhas para a redução da bebida e restrição da propaganda. E o "aprecie com moderação", engrolado às pressas pelo locutor ao fim dos comerciais de cerveja, é um escárnio —porque, se fosse possível a todo mundo "beber com moderação", não existiria o alcoolismo.

Vinicius Torres Freire – Surpresa positiva no emprego

Folha de S. Paulo

Depois de desacelerar menos que o previsto em 2023, renda do trabalho volta a ganhar velocidade

Não se deu muita bola, mas os números de emprego e salário em janeiro foram muitos bons. A soma do que todo mundo declara ganhar no trabalho aumentou 6,26% no trimestre encerrado em janeiro, diz a Pnad do IBGE, aumento real, além da inflação, em relação ao mesmo período de 2023 (trata-se aqui do que a estatística oficial chama de "massa de rendimento real" efetiva de todos os trabalhos).

O número de pessoas empregadas cresceu 2%, maior ritmo desde março do ano passado, quando o ritmo de aumento de emprego era grande por causa da recuperação da crise da epidemia. O rendimento médio aumentou a 4% ao ano.

É forte. Esperava-se que a taxa de desemprego começasse a aumentar em abril de 2023 e uma desaceleração relevante do crescimento do salário e do número de empregados.

O desemprego não aumentou, ao contrário. A desaceleração aconteceu, mas o pé no freio foi suave; lá por outubro, a velocidade voltou a aumentar.

Bruno Boghossian - Caçando animais bizarros

Folha de S. Paulo

Ameaça de líder de Lula tirou assunto da Terra plana bolsonarista para relações políticas do mundo real

O governo anunciou que vai dedicar energia à caça de animais raros, talvez folclóricos. O líder de Lula na Câmara, José Guimarães, avisou a partidos da base aliada que o Planalto vai tirar cargos e verbas de deputados que assinaram um pedido de impeachment apresentado por políticos bolsonaristas contra o petista.

Se o governo abriu espaço em sua máquina para algum parlamentar interessado em derrubar o presidente ou disposto a embarcar num factoide da oposição, deveria corrigir em silêncio a própria lambança. É mais provável que Guimarães tenha tentado inventar uma espécie exótica de inimigo e, no fim das contas, fabricado apenas uma trapalhada.

Hélio Schwartsman - Onde foi parar a esquerda?

Folha de S. Paulo

Governo petista parece ter abandonado as pautas que eram tradicionalmente consideradas progressistas

O que fizeram com a esquerda? Terá ela sido abduzida por alienígenas?

Antes que os autoproclamados progressistas comecem a me xingar, reitero que votei em Lula no último pleito. Contra a anti-institucionalidade de Bolsonaro, repetiria esse voto mil vezes. Mas, convenhamos, não ser golpista é obrigação, não virtude a celebrar.

Quando analisamos as pautas concretas e como cada grupamento político se comporta diante delas, o quadro que emerge é bem desolador. O projeto de lei que reduz drasticamente a saída temporária de presos foi aprovado no Senado com apoio maciço da bancada de esquerda. Só 2 dos 81 senadores foram contra.

Algo parecido vai ocorrer agora na votação da PEC que amplia a imunidade tributária de igrejas, já que a proposta tem o apoio do governo Lula —embora vá na contramão do princípio da solidariedade tributária que a esquerda sempre defendeu.

João Paulo Charleaux - Civis não são alvos legítimos, mas morrem mais que combatentes em Gaza

Folha de S. Paulo

Viver perto de um quartel do Exército ou de um esconderijo de um grupo armado não torna uma pessoa menos civil

Quando se trata de entender as leis da guerra, uma linha simples pode ser traçada: civis não são alvos legítimos. Eles devem ser poupados a todo custo dos efeitos das hostilidades. Muitas vezes essa regra basta para identificar o que é certo ou errado, o que é crime de guerra ou não, do ponto de vista do direito internacional.

É fácil identificar os civis: pessoas que não portam armas e não participam ativamente das hostilidades. O fato de alguém viver perto de um quartel do Exército ou de um esconderijo de um grupo armado não faz dessa pessoa alguém menos civil ou menos protegido por essa norma. Tampouco o fato de ser parente de um soldado ou de um guerrilheiro. Nem mesmo as opiniões políticas de uma pessoa tiram dela a condição de civil.

Um palestino pode levantar uma bandeira do Hamas em Gaza sem que isso diminua em nada a proteção dele como civil. Da mesma maneira, um colono judeu que construa sua casa em território palestino ocupado não deixa de ser civil. Com essas ações, essas pessoas podem estar incorrendo até mesmo em crimes –como apologia de um grupo proscrito ou anexação ilegal de um território–, mas não deixam de ser civis por isso e, como tais, não podem ser consideradas alvos legítimos na guerra.

Poesia | Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade (por Caetano Veloso)

 

Música | Samba do Carioca (Carlos Lyra & Vinicius de Moraes) - Carlos Lyra, Marcos Valle, Roberto Menescal & João Donato