sábado, 23 de maio de 2020

Cenas de um governo tenso e sem rumo – Editorial | O Globo

O que seria para instruir o inquérito de Moro virou um retrato mais preocupante de Bolsonaro

Enquanto se aguardava, na tarde de ontem, a divulgação do vídeo da reunião de ministros de 22 de abril, pelo ministro do Supremo Celso de Mello, uma nota fora de tom de Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), explodiu os projetos de pontes que o governo havia lançado no dia anterior, na reunião do presidente com os governadores, num competente desserviço ao Planalto, e não serviu para proteger Bolsonaro das ameaças jurídicas que o cercam.

Ou o general da reserva considera que as Forças Armadas se disporiam a quebrar a ordem institucional que perdura há 32 anos, investindo contra o Supremo, que cumpre ritos legais, respaldados na Constituição? Por exemplo, o seguido pelo mesmo Celso de Mello de, como é praxe, remeter pedidos de partidos e parlamentares de investigação de Bolsonaro ao procurador-geral da República. Entre eles, o acesso ao telefone celular do presidente, contra o que se insurgiu Heleno, de maneira descabida, com a ameaça de um conflito institucional, de “consequências imprevisíveis”. Serviu para atrair justificadas reações de repúdio e para confirmar que o calejado general da reserva passou a fazer parte do núcleo ideológico do bolsonarismo.

Os trechos do vídeo da reunião ministerial liberados por Celso de Mello ajudariam a confirmar que Augusto Heleno não está sozinho no ministério. Celso de Mello decidiu não liberar a íntegra, o que facilitaria a compreensão do contexto em que o presidente ameaçou intervir na sua “segurança” no Rio, embora se referisse mesmo à “PF”, sigla que pronunciou quando reclamava da falta de informações. Este trecho, infelizmente, foi cortado no início da frase, mas o conteúdo do que restou do vídeo sustenta a acusação do ex-ministro Sergio Moro de que as citações a trocas na “segurança”, na sua chefia e até de ministro, se referiam a ele mesmo. Para confirmar o que disse, no dia seguinte à reunião, dia 23, Moro saiu do governo, e o diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, foi exonerado “a pedido”, sem que ele e o ministro assinassem a demissão.

Merval Pereira - Vergonha nacional

- O Globo

O vídeo mostra um governo completamente insensível à grave crise de saúde pública que vivemos

Todo mundo sabe que o presidente Bolsonaro interveio na Polícia Federal, e é preciso ser um nefelibata para acreditar que essa intervenção não tinha intenções não republicanas. Mas, como tudo na vida, depende de quem quer ver e escutar. Agora, é a vez do atual Procurador-Geral, Augusto Aras, querer ou não ver e ouvir.

Se, como tudo indica, ele decidir arquivar o processo, sem oferecer a denúncia, estará fazendo como o Centrão, que provavelmente protegerá Bolsonaro como protegeu Temer, em troca de cargos no governo. Fechando os olhos para as evidências, sem se esforçar para juntar dois mais dois.

Em termos jurídicos, já há quem diga que não há substância no vídeo da reunião para acusar frontalmente o presidente da República de crime de responsabilidade, embora ele tenha dito alto e bom som que interviria nos ministérios, e especificou: “Eu não posso ser surpreendido com noticias. Pô, eu tenho a PF que não me dá informações”.

Como foi por isso que o ex-ministro Sergio Moro deixou o cargo, (e a reunião antes de seu fim), é óbvio que a nomeação do novo diretor-geral da Polícia Federal tinha o objetivo de permitir que o presidente Bolsonaro não seja “surpreendido por notícias”.

Ato contínuo, a imediata nomeação do novo superintendente da PF no Rio só confirma os interesses específicos do clã Bolsonaro para proteger, como o próprio presidente admitiu, sua família e seus amigos.

Pela denúncia do ex-aliado Paulo Marinho, o então deputado estadual Flavio Bolsonaro não foi surpreendido pelas notícias em relação à Operação Furna da Onça, e pôde proteger o amigo do seu pai Fabrício Queiroz, demitindo-o antes que a PF chegasse. Se quiser investigar, o Ministério Público chegará aos culpados.

Míriam Leitão – Brasil à deriva no meio da tragédia

- O Globo

A reunião tem sim indícios de crime, e mostra um governo torpe e delirante enquanto o país sofria a escalada de uma pandemia

O mais espantoso na reunião é o conjunto. São duas horas repletas de palavrões e delírios, de escárnio e desrespeito com o país. O Brasil atravessando a sua pior crise em décadas, e em nenhum momento o presidente fala da pandemia como um problema que o preocupasse. Essa ausência choca. Suas falas coléricas são concentradas na defesa da sua família e dos amigos, no insulto aos adversários políticos, e em ordens para que os ministros defendam o governo. E sim, ele claramente quis interferir na Polícia Federal e disse que tem um sistema particular de informação. Na breve fala do ministro Nelson Teich, ele disse “a gente não é um barco à deriva”. Engano. Aquela reunião prova que o Brasil não tem governo, está à deriva no meio de uma tragédia.

Brasileiros morrendo sem respiradores, a doença já se espalhando de forma avassaladora pelo país, os governadores e prefeitos tomando medidas em desespero, pela ausência de uma orientação central, e o presidente acha que o importante era armar a população:

— Como é fácil impor uma ditadura no Brasil. O povo dentro de casa. Por isso eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme. É a garantia de que não vai ter um filho da puta, aparecer para impor uma ditadura aqui. Não dá para segurar mais. Quero todo mundo armado, porque povo armado jamais será escravizado. Quero escancarar essa questão do armamento.

Os militares ministros do governo em silêncio diante da proposta de que a população seja toda armada para defender o país de quem o presidente define como inimigo. Enquanto isso já havia 2906 mortos e nos 30 dias seguintes iria passar de vinte mil. Mas aquelas pessoas que dirigem o Brasil se mobilizavam pelo risco suposto de pessoas serem presas e algemadas por prefeitos e governadores.

— Pego as minhas 15 armas e vou usar para matar ou morrer se minha filha for presa — diz o presidente da Caixa.

Ascânio Seleme - O golpista e o interventor

- O Globo

A nação assistiu estarrecida ao vídeo da fatídica reunião ministerial que culminou na demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro

A nação assistiu estarrecida ao vídeo da fatídica reunião ministerial que culminou na demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro. Foi um festival de barbaridades e palavrões capaz de fazer corar até mesmo Celsinho da Vila Vintém. Tão grave quanto a reunião, ou até mais, foi a nota do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, que ameaçou o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, e de resto todo o país, numa defesa despropositada do presidente Jair Bolsonaro. Foi a declaração mais acintosamente antidemocrática de um general desde o fim da ditadura, há 35 anos.

A nota de Heleno, sugerindo uma instabilidade nacional no caso da apreensão do celular de Bolsonaro, é tão absurda que enterra de uma vez por todas a aura de democrata que o general tenta mostrar. Como uma biruta que sopra de acordo com o vento, dois dias antes ele afirmara que não haverá golpe no país. Claro que não haverá. Estamos tratando de um aloprado, com certeza. Mas um aloprado com propósito. No mínimo, Heleno queria atrair para si a atenção do dia, toda voltada para o vídeo da reunião ministerial. No limite, queria constranger ou assustar um ministro do STF, tentando subverter sua vontade, a vontade da Justiça.

O fato é que a nota é uma ameaça ignóbil e deve ser tratada distintamente da questão que envolve o presidente e a intenção de interferir na Polícia Federal. Heleno deve responder pela nota absurda e ser sancionado adequadamente. O que ele fez foi igual ao que fazem os que carregam faixas pedindo o fechamento do Congresso e do Supremo. Mais grave, na verdade, porque o ministro tem assento do Palácio do Planalto e, por ser um ex-chefe militar, alguma ascendência sobre outros oficiais. O biruta pregou um golpe.

Bernardo Mello Franco - Heleno se contradiz, flerta com golpismo e ameaça STF

- O Globo

Está variando rapidamente o humor do general Augusto Heleno.

Há dois dias, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional descartou a possibilidade de golpe militar no Brasil.

"Os militares não vão dar golpe. Isso não passa na cabeça dessa nossa geração", afirmou, em debate promovido pelo grupo Personalidades em Foco.

Nesta sexta, Heleno mudou de ideia e fez uma ameaça pública ao Supremo Tribunal Federal e à democracia, a título de "alerta às autoridades constituídas".

Em nota, o general afirmou que a eventual apreensão do celular do presidente Jair Bolsonaro teria "consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional".

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal não determinou essa medida. O ministro Celso de Mello apenas encaminhou à Procuradoria-Geral da República um pedido de políticos da oposição.

Das duas, uma: ou Heleno não entendeu o que leu, ou usou um falso pretexto para intimidar as instituições com uma ameaça de golpe.

Ricardo Noblat - O strip-tease moral do presidente e do seu desgoverno

- Blog do Noblat | Veja

Documento para a História

O mercado financeiro respirou aliviado no início da noite de ontem. Nada viu na gravação da reunião ministerial de 22 de abril último que possa derrubar o presidente Jair Bolsonaro. E comemorou quando Bolsonaro disse que na economia manda o ministro Paulo Guedes.

Parte do Congresso criticou o que assistiu, mas expressões inflamadas. Outra parte, ligada ao Centrão e faminta por cargos, defendeu Bolsonaro. Quanto mais fraco o presidente, mais precisará de votos para barrar um processo de impeachment.

Os tribunais superiores calaram-se. Ou porque seus juízes tomaram Rivotril ou porque se resguardaram para só se pronunciarem caso sejam provocados por ações judiciais. Nem mesmo a nota insultuosa do general Augusto Heleno mereceu uma resposta.

Quando é poderosa e duradoura a força do absurdo, ela normaliza o absurdo. Nem por isso o absurdo deixa de ser o que é. Por costume, os bolsonaristas de raiz, principalmente os mais radicais deles, multiplicaram nas redes sociais mensagens de apoio ao Messias.

Nada disso fará diferença quando Bolsonaro e seus auxiliares forem a julgamento, seja pelo Congresso ou pela Justiça, ou seja nas urnas em 2022. A História os julgará com o distanciamento crítico que a passagem do tempo permite. E o resultado é previsível.

O vídeo liberado pelo ministro Celso de Mello é desde já uma peça histórica, não importa que consequências produza a curto ou médio prazo. É a maior coleção de crimes de responsabilidade cometidos por uma malta formada por 25 pessoas e encabeçada por Bolsonaro.

A apuração de qualquer um desses crimes dispensa maiores investigações. O país foi testemunha deles. Nunca antes se assistiu ao vivo o strip-tease moral de um governo. É razoável imaginar que jamais se assistirá. Ele ficou nu. E o que se viu foi um horror.

Reinaldo Azevedo - Bolsonaro planeja guerra civil, não autogolpe

- Folha de S. Paulo

Presidente usa ainda as Forças Armadas, que se deixam usar, para seus propósitos criminosos

A interferência ilegal de Jair Bolsonaro na Polícia Federal pode estar nos fatos, mas não no vídeo tarja-preta. Ingerência sim, crime não. De gravidade inédita é outra coisa: o presidente não investe num autogolpe, mas numa guerra civil. Confessou ainda ter um sistema particular de informações. E usa as Forças Armadas, que se deixam usar, para seus propósitos criminosos.

Trata-se de confissão, não de interpretação: “Por que eu tou armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura! (...) É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado”. A arma é um fermento político. E o crime tem atos de ofício, como evidencio abaixo.

Na reunião, dá ordem a Sergio Moro e a Fernando Azevedo e Silva (Defesa): “Eu peço ao Fernando e ao Moro que, por favor, assine essa portaria hoje que eu quero dar um puta de um recado pra esses bosta!” No dia seguinte, saiu a portaria, que elevou a munição que pode ser comprada por um civil de 200 unidades por ano para 550 por mês.

No dia 18 de abril, ele já havia baixado a portaria 62/20, pondo fim ao rastreamento de armas e munições. Escreveu no Twitter: “Determinei a revogação das Portarias Colog nº 46, 60 e 61, de março de 2020, que tratam do rastreamento, identificação e marcação de armas, munições e demais produtos controlados por não se adequarem às minhas diretrizes definidas em decretos".

Oscar Vilhena Vieira* - Necropolítica

- Folha de S. Paulo

Banalização da vida é resultado do racismo e da desigualdade

João Pedro, 14, foi morto por forças policiais no quintal de sua casa, enquanto brincava com seus primos. Seu corpo ficou desaparecido por cerca de 16 horas, aumentando o desespero de seus familiares. Já o corpo de Valnir da Silva, 62, possível vítima do coronavírus, ficou exposto por mais de 30 horas numa rua de outro bairro pobre do Rio de Janeiro, sem causar maior consternação em quem jogava bola no terreno ao lado. São retratos cotidianos da barbárie e da negligência a que estão submetidas largas parcelas da sociedade brasileira.

O racismo e as profundas desigualdades que estruturam a sociedade brasileira dificultam que nos vejamos como parte de uma mesma comunidade, ligada por laços de respeito e obrigações recíprocas. A vida de um morador de rua parece não ter nenhum significado. São seres moralmente invisíveis. Suas necessidades e sofrimentos não geram nenhuma dor; menos ainda gestos de solidariedade. A morte desses seres invisíveis, seja pelo coronavírus ou pela bala, não tem sido capaz de gerar uma reação que transforme a sociedade brasileira.

O racismo e as desigualdades também favorecem um outro fenômeno, ainda mais perverso, que é a demonização de diversos grupos sociais. Feitos inimigos, a eliminação desses setores é motivo de júbilo. Não é apenas a morte de suspeitos que é incentivada e comemorada. Basta que sejam negros e estejam no local e hora errada. Também são vistos como inimigos o índio que se contrapõe à devastação da floresta, o trabalhador e o estudante que busquem melhores condições de vida. Como deixou claro o ministro da Economia, se ousarem protestar como no Chile, será necessário um novo AI-5.

Demétrio Magnoli* - Três bandeira e nenhuma pátria

- Folha de S. Paulo

Nação de Bolsonaro não é Brasil, EUA ou Israel, mas sua própria família

Política é um jogo de signos. O PT oscila, taticamente, entre o verde e amarelo e o vermelho. O bolsonaro-olavismo insiste nas cores nacionais, mas empunha três bandeiras simultâneas, desfraldando também as dos EUA e de Israel. Nesse passo, revela um nacionalismo equívoco, uma aversão essencial ao Brasil e a alma de um partido sem pátria.

O cálculo de marketing norteia o PT. Verde e amarelo funciona para ofensivas destinadas a vencer eleições ou conservar a popularidade de seus governantes. Já o vermelho funciona para as conjunturas de recuo, quando se trata de reunificar sua base militante, evitando dissensões.

A postura ofensiva tem raiz autoritária, pois identifica a parte (o partido) ao todo (a nação). A defensiva, ainda que acompanhada ritualmente por discursos sectários, é democrática: "Nós, vermelhos, somos uma corrente política, entre as várias disponíveis no mercado de ideias".

O impulso autoritário, representado pela invariável apropriação partidária das cores brasileiras, norteia o bolsonaro-olavismo. Mas a presença dos pendões estrangeiros, que provoca tanta curiosidade, indica algo mais: a pátria amada não é a realmente existente. Para esses patriotas de araque, o Brasil não serve: deve ser substituído não por uma, mas por duas pátrias imaginárias.

Igor Gielow - Vídeo explicita face agressiva e paranoica do governo Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Peça única, registro tem de menosprezo ao centrão até sugestão de insurreição armada

É atribuído ao pai da unificação alemã, Otto von Bismarck (1815-1898), o alerta acerca de leis e salsichas: para apreciá-las, é melhor não saber como são feitas.

Jair Bolsonaro e sua equipe ministerial deram um "upgrade" ao conceito, a julgar pelo vídeo da reunião entre eles no dia 22 de abril.

Pois se o objeto do acesso da Justiça à peça, o inquérito sobre a acusação do ex-ministro Sergio Moro (Justiça) de que o presidente quis interferir na Polícia Federal, ganha densidade com as falas reveladas, o panorama que a gravação apresenta é único na história republicana.

O governo paranoico e em ritmo de guerra que se mostra na gravação crua vai desagradar apoiadores, detratores e os neoaliados arregimentados à base de cargos para evitar a progressão de um processo de impeachment na Câmara contra o presidente.

Claro, os palavrões abundantes, a linguagem chula e desencontrada de Bolsonaro e de alguns ministros podem agradar a parcelas mais fiéis do eleitorado do presidente. É coisa de macho, diriam, coerentes ao ideário da turma.

A mães e pais de família Brasil afora, talvez seja um pouco demais. Não é nada que qualquer repórter de política não tenha ouvido com alguma experiência de campo, mas, evocando Bismarck, ver a produção da salsicha pode ser desagradável.

Para começar por Moro, o vídeo confirma o que as transcrições anteriores insinuavam: sim, Bolsonaro queria interferir em órgãos de inteligência e citou a PF, "e ponto final". Haverá discussão acerca da referência à mexida no Rio, mas os atos posteriores à saída de Moro basicamente comprovam a intenção do presidente.

Julianna Sofia – Vagabundos na cadeia

- Folha de S. Paulo

Ofensas não facilitam a vida de Jair Bolsonaro

No vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, o ministro Abraham Weintraub (Educação) exibe minutos lamentáveis de uma verve polemista, boçal e fascistoide. Ataca as instituições democráticas consolidadas em Brasília, afirmando que "botava esses vagabundos todos na cadeia, começando no STF". Nesta sexta-feira (22), com a gravação divulgada, deve ter ido dormir preocupado em ser esse seu próprio destino.

O ataque de Weintraub entrou para a coleção de pavonices sob as quais se esconde, furtando-se de exercer a função de zelar pela educação do país. Para essa tarefa, já demonstrou não ter preparo nem competência.

As ofensas não facilitam a vida de Jair Bolsonaro, que é alvo de acusações de interferência na Polícia Federal, tema sob investigação no Supremo Tribunal Federal. A auxiliares o presidente demonstrou irritação com as críticas do ministro ao Judiciário. A isso soma-se outro elemento: a resistência de Weintraub em adiar a data de realização do Enem trouxe mais desgaste ao Palácio do Planalto, que sofreu uma derrota no Senado e estava prestes a assistir a uma outra na Câmara, quando o ministro cedeu e anunciou a postergação do exame.

Inconcebível e inacreditável – Editorial | O Estado de S. Paulo

O ministro Augusto Heleno, assim como seu chefe, não só é despreparado para o cargo que ocupa, como considera “democracia” o regime em que Bolsonaro manda e os demais obedecem

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, divulgou ontem uma “nota à Nação brasileira” para dizer que é “inconcebível e, até certo ponto, inacreditável” o “pedido de apreensão do celular do presidente da República”. A nota do ministro é, em si mesma, para usar suas próprias palavras, inconcebível e inacreditável.

O ministro Augusto Heleno fazia referência a solicitações de parlamentares e partidos de oposição em notícia-crime enviada ao Supremo Tribunal Federal, relativa a suspeitas de que o presidente Jair Bolsonaro tentou interferir politicamente na direção da Polícia Federal, conforme denúncia do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, igualmente citado na petição.

Respeitando a praxe para casos como esse, o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello encaminhou o caso para a Procuradoria-Geral da República, a quem cumpre opinar se cabe ou não investigar a denúncia. O ministro Celso de Mello enfatizou que é dever jurídico do Estado apurar essas suspeitas, “quaisquer que possam ser as pessoas alegadamente envolvidas, ainda que se trate de alguém investido de autoridade na hierarquia da República, independentemente do Poder (Legislativo, Executivo ou Judiciário) a que tal agente se ache vinculado”.

Marco Aurélio Nogueira* - Democratas de todas as colorações, uni-vos!

- O Estado de S.Paulo

Ou se unem com determinação, ou o Brasil ficará inviável por longo período

Não é preciso arrolar, pela enésima vez, os ilícitos e as perversões que desabam sobre a sociedade. Formam robusto prontuário. Só não os vê quem não quer.

A continuidade do governo Bolsonaro ameaça a vida, a Nação, a sociedade. Lança-nos num vórtice de destruição, que potencializa o vírus e infecta a reprodução da ordem social.

Precisamos dar um basta a essa situação, em que a insanidade governamental se mistura com o ativismo fanatizado da extrema direita e com o silêncio dos democratas. Bolsonaro é a crise viva, em expansão. Sua remoção precisa ser posta na mesa, para que se evite o abismo.

Mas não é só o impeachment. Será preciso reorganizar o País. Disputas internas não ajudarão, por mais que sejam inevitáveis.

Também somos responsáveis pelo que está aí. Cometemos erros, que não foram processados. Continuamos a nos dividir, a brigar com a própria sombra, a insistir em atitudes e discursos que não dialogam com as pessoas, não as direcionam, não as esclarecem. Somos prisioneiros do cálculo eleitoral, do oposicionismo retórico. Estamos carentes de ideias, de luzes, de lideranças. De articulação.

Temos de encontrar um meio de fazer oposição com eficácia e generosidade. Sem vetos. Sem postulações doutrinárias. Sem maniqueísmos. Sem tergiversações. É um suicídio continuarmos a repetir fórmulas que não funcionam mais e prolongam uma agonia paralisante.

Há que agir. No Parlamento, nas redes sociais, na imprensa, nos núcleos da sociedade civil. A quarentena não é pretexto para ficarmos à espera de um raio que caia em Brasília. A cautela não dispensa a denúncia veemente, antes a exige.

Rosângela Bittar - Íntegra de vídeo conta histórias absurdas, ilegais e imorais

- O Estado de S.Paulo

Reunião ministerial não deixa dúvidas sobre a interferência do governo em órgãos de Estado

O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, prova citada pelo ex-ministro Sérgio Moro para sustentar sua denúncia de que o presidente Jair Bolsonaro interferiu na Polícia Federal para ter acesso a informações privilegiadas e sigilosas, conta várias outras histórias absurdas, ilegais e imorais, além desta. Sobre a interferência em órgãos de Estado a discussão não deixa dúvidas, pois o próprio presidente a admite, inclusive trocando, ao longo de todas as suas manifestações, o velho “taok” por um novo “ponto final”, agora seu desfecho peremptório. “Eu sou o chefe supremo das Forças Armadas e ponto final”, “interfiro e ponto final”.

A obsessão pelo tema levou Bolsonaro a revelar ação de outros serviços eficientes. Antes de entrar a tarja da censura judicial a esta parte da reunião, deu para entender que ele citava um serviço de informação chinês tanto circulando aqui e como nos Estados Unidos.

A novidade desta questão da informação, só conhecida com a divulgação do vídeo, é a revelação de que o presidente Jair Bolsonaro tem um esquema paralelo pessoal de informação que funciona, enquanto todos os demais, do Estado, não funcionam.

Foi também absurda a insistência com que se referiu à necessidade de armar o povo, pior ainda a razão: para defender-se de ditadura. “Como é fácil impor uma ditadura aqui; o povo, se tivesse armado, iria para a rua”. Povo armado na rua é revolução, crime organizado ou forças Armadas. Bolsonaro quer armar o ovo para enfrentar prefeito que fixou regras de isolamento social durante a pandemia.

Abraham Weintraub fez o que se considerava impossível, superou as expectativas e a si próprio: Definiu “Brasília”, não a cidade, mas um fantasma com esse nome, como cancro. E mais do que a já conhecida agressão a Supremo Tribunal Federal, que gostaria de ver todo preso, ele insultou o próprio governo que o abriga, denunciando intrigas palacianas e a presença de muita gente com “agenda própria”, que veio para “jogar”. Ou seja, um bando.

Bolívar Lamounier* - Um cabo de guerra na longa noite da pandemia

- O Estado de S.Paulo

Ao dificultar a ação dos Estados e municípios Bolsonaro comete crime de responsabilidade

Para bem compreender o que está acontecendo no Brasil creio ser útil começar pelo dicionário. Cabo de guerra, por exemplo. O Aurélio ensina que essa velha expressão designa “um jogo ou competição em que dois grupos de contendores puxam em direções opostas as pontas de uma corda grossa, vencendo a que conseguir arrastar a outra”.

Transpondo a ideia do cabo de guerra para o plano da política, logo percebemos uma grave implicação. Se a capacidade física dos contendores for aproximadamente igual, o resultado pode ser um prolongado empate. Ora, o essencial da política pública é a escolha entre alternativas e a implementação das ações de governo que dela decorre. Vigente o empate no cabo de guerra, as duas forças se neutralizam e tais ações perdem eficácia, como temos visto no combate à pandemia do coronavírus. Esse empate pode tornar nossa situação muito mais perigosa do que a existente em outros países. A persistir tal empate, nós, cidadãos comuns, pagaremos o pato.

Em nosso cabo de guerra temos, de um lado, os governadores e prefeitos fazendo o que podem, com recursos insuficientes e enfrentando a propagação do coronavírus, um inimigo onipresente e assombrosamente ágil. Do outro, Jair Bolsonaro, um presidente que não se notabiliza por elevado senso de responsabilidade, fomentando aglomerações, forçando a barra para que o desejável relaxamento da quarentena se transforme num estouro da boiada e, não menos importante, insistindo num remédio, a cloroquina, cuja eficácia no tratamento da covid-19 não parece superior à de um licor de jenipapo.

José Márcio Camargo* - O Centrão, as reformas e a austeridade fiscal

- O Estado de S. Paulo

A história recente mostra que, na verdade, este grupo de partidos não é contrário a essa agenda reformista

Os primeiros 16 meses do governo Bolsonaro representaram uma mudança importante na forma de fazer política no Brasil. Ao contrário dos governos anteriores desde a redemocratização, o presidente se negou a montar uma base parlamentar no Congresso por meio da distribuição de cargos a pessoas ligadas aos partidos.

Ainda que o Executivo tenha aprovado reformas importantes, como a reforma da Previdência, o cadastro positivo e a Lei da Liberdade Econômica, a ausência de base parlamentar, além de fazer com que várias medidas provisórias caducassem e vetos presidenciais fossem derrubados, agravou o conflito entre Executivo e Legislativo, que quase gerou uma crise institucional no final de abril.

Diante deste cenário, o presidente da República iniciou uma negociação com os partidos do chamado Centrão, com o intuito de formar uma base parlamentar capaz de lhe dar suporte. O pedido de demissão de Sérgio Moro e as acusações do ex-ministro de que a causa do pedido era a tentativa do presidente de interferir na Política Federal e ter acesso a investigações em andamento – o que, no limite, poderia levar a um pedido de impeachment – aceleraram as tratativas.

Adriana Fernandes - Intransigências

- O Estado de S. Paulo

À espera da explosão do desemprego, o tema é hoje a maior cobrança do presidente para a equipe econômica

Chamou bastante a atenção dos gestores do mercado financeiro que participaram esta semana de uma live fechada, organizada pelo BTG, a fala do vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP).

Uma das principais lideranças do Centrão e também na lista dos cotados para substituir Rodrigo Maia (DEM-RJ), Pereira falou do movimento esperado, nos próximos meses, para a ação das duas alas (bastante distintas) que existem hoje no governo Jair Bolsonaro. A ala militar e a da equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes.

Na live, Marcos Pereira abriu o jogo e acabou revelando palavras a ele ditas pelo ministro da Casa Civil, Braga Netto, em reunião na semana retrasada, na Câmara dos Deputados com outros presentes. “Daqui a alguns meses o governo terá de enfrentar a intransigência do ministro Paulo Guedes”.

Nesse caso, a intransigência apontada pelo líder do Centrão e ex-ministro da Indústria e Comércio Exterior continua sendo a disputa em torno de uma maior participação do Estado para tirar a economia do buraco depois da reabertura na fase pós-pandemia da covid-19.

Sérgio Augusto - Sobrevivendo

- O Estado de S.Paulo

Um poeta italiano divulgou seu número de telefone e se dispôs a falar com quem quisesse ligar

Já sobrevivi a uma pandemia. Na adolescência. Fui o último da minha classe no colégio a pegar a gripe asiática, nos estertores de 1957, talvez nos primeiros meses de 1958. Como se pode notar, não morri – nem meus colegas. Na família, só a mim a gripe pegou.

Por ter sido o último dos moicanos a sucumbir àquela mutação do vírus H2N2, tive algumas semanas a meu favor para desdenhar dos colegas caídos e ainda por cair de cama. Minha reprovável fanfarrice foi a memória mais viva que daquele surto ficou. Febre abrasadora, moleza geral, dor por todo o corpo, sobretudo na cabeça, que parecia querer explodir quando mexia com os olhos – também desses sintomas, et pour cause, me lembro; mas nada do tempo que a gripe me manteve acamado, nem dos remédios que tomei.

A pandemia seguinte, a gripe Hong Kong, desembarcada no Rio na década seguinte, dessa, até porque dela escapei, não me recordo patavina.

A influenza asiática, de início injustamente conhecida como “gripe Singapura”, também se originou na China, como a covid-19, por volta de 1956. Não fez mais do que 4 milhões de vítimas fatais porque descobriram rápido uma vacina. Antes, porém, derrubou um bocado de celebridades: da rainha Elizabeth, da Inglaterra, à Miss Universo de 1957, a bela peruana Gladys Zender.

Marcus Pestana - O diabo mora no detalhe

O provérbio alemão nos ensina que grandes ideias, projetos e intenções muitas vezes tropeçam não em sua concepção, mas no detalhe. A pandemia do coronavírus escancarou que determinados desafios só podem ser enfrentados com a ação eficiente e ágil do Estado e não pela sociedade e pelo mercado. Nada que autorize a leitura que precisamos de um Estado inchado, obeso, perdulário, mas de ações governamentais qualificadas e bem pensadas. No Brasil, as ações filantrópicas das pessoas e das empresas cresceram exponencialmente durante a presente crise, mas só o aparato estatal tem escala e abrangência em sua ação para responder um desafio de tamanha envergadura.

Em meus 36 anos de vida pública, sempre oscilei entre a luta política, o desafio gerencial e o pensamento teórico. E, hoje, nestas linhas, vou pisar mais na perna gerencial, já que por 18 anos ocupei cargos executivos. Observando o desempenho das políticas públicas de enfretamento da crise sanitária e econômica em curso, percebo lacunas históricas que impedem que ação governamental cumpra plenamente seus objetivos e chegue efetivamente à população alvo. Gostaria aqui de discutir três gargalos a serem superados: a identificação única digital dos cidadãos brasileiros, os problemas de acesso ao mundo digital e à Internet e a auto-organização da comunidade para dar suporte às ações do poder público.

Diante do isolamento social necessário para evitar a propagação do vírus, a economia foi em grande parte paralisada, sacrificando, sobretudo, desempregados e trabalhadores informais, a chamada população invisível. Diante disso, o Governo e o Congresso conceberam o auxílio emergencial mensal de 600 reais por três meses para assegurar uma renda mínima a quem não participa de nenhum dos programas de transferência de renda como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, que se direcionada a idosos pobres e pessoas com deficiência. O objetivo era beneficiar de 60 a 80 milhões de brasileiros sem vínculo formal de trabalho. As dificuldades logo apareceram. Desde a dificuldade da população pobre em se cadastrar, as negativas para pessoas que deveriam se enquadrar, a inexistência de um cadastro amplo e seguro, e o gargalo para o pagamento com a formação de filas imensas nas portas das agências da Caixa Econômica, provocando aglomerações e expondo a população ao contágio.

Música | Teresa Cristina e Grupo Semente - Quando Bate uma saudade

Poesia | Carlos Drummond de Andrade: Amar