sexta-feira, 22 de maio de 2020

Merval Pereira - Armadilhas no caminho

- O Globo

Militares tentam retomar o papel moderador de garantidores da democracia que se esperava que assumissem desde o início

Mesmo disfarçados de civis, os militares que estão no governo não sabem enfrentar o jogo bruto da política, e se perdem em assertivas retóricas a favor da democracia enquanto os operadores políticos levam à frente ações antidemocráticas que não são coibidas pelo presidente Jair Bolsonaro.

Ontem foi o dia para justificarem suas presenças no entorno do presidente, em ações políticas positivas em direção ao diálogo. A reunião com os governadores foi cuidadosamente montada para que desse uma sinalização de armistício na relação entre os Poderes da República.

Os ministros militares Braga Netto, chefe do Gabinete Civil, e Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, estiveram na Câmara dias antes conversando com o presidente Rodrigo Maia, e contataram o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para garantir um ambiente possível de entendimento.

O general Ramos, o único ainda da ativa na assessoria do presidente Bolsonaro, telefonou pessoalmente para os governadores, só não falou com o de São Paulo, João Doria, que foi procurado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Desarmados os espíritos, inclusive o de Bolsonaro, ocorreu o que está sendo classificado pelo Palácio do Planalto como “um encontro histórico”.

Ontem também o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, garantiu em uma palestra que “(...) Não passa [pela cabeça] ditadura, intervenções, isso são provocações feitas por alguns indivíduos que não têm coragem de dizer quais são suas ideologias, que ficam provocando os militares para ver se nós vamos reagir.”

Míriam Leitão - Um breve momento de harmonia na Federação

- O Globo

Governadores pediram o que a equipe econômica não quer que o presidente conceda, e o isolamento social ficou fora da pauta

O governo do Rio, em 2017, pegou um empréstimo com o BNP Paribas com o compromisso de privatizar a Cedae e quitar a dívida. Vence em dezembro. Se o governo federal não vetar a suspensão do pagamento das dívidas bancárias dos estados, o Rio poderá não pagar esse débito, e o Tesouro ficará impedido de executar as garantias. Esse foi um exemplo que ouvi no Ministério da Economia para explicar por que eles recomendaram o veto no ponto em que os governadores pediram tanto para não vetar. A reunião foi harmoniosa, mas as diferenças persistem.

Os governadores fizeram uma reunião prévia para discutir os detalhes. Foram escolhidos a dedo para falar os governadores do Mato Grosso do Sul, Reinaldo Azambuja, do PSDB, e do Espírito Santo, Renato Casagrande, do PSB. João Dória, de São Paulo, com quem houve a briga da última reunião, só entrou para referendar. Mas falou pouco, sua transmissão o prejudicou. Enquanto ele não conseguia conexão, o governador gaúcho, Eduardo Leite, entregou um recado: rapidez para regulamentar o acordo da lei Kandir. E isso ele deve conseguir.

Os governadores deram apoio ao veto no reajuste do funcionalismo. Na equipe econômica se dizia desde segunda-feira que o presidente Jair Bolsonaro não queria o ônus sozinho de contrariar os servidores. Os governadores disseram que a prerrogativa do veto é do presidente, mas que eles concordam. Em seguida, pediram a manutenção do artigo 6º parágrafo 4º que trata do adiamento da dívida com bancos e instituições como Banco Mundial e BID. Pediram também a sanção imediata do projeto para que o socorro chegue, como pediu Dória, até o dia 31 de maio.

Monica de Bolle* - Estado mínimo para quem?

- Revista Época

Esse Brasil que Paulo Guedes carrega na cabeça e tenta concretizar por atos e palavras está sendo rejeitado por todos aqueles que, da quarentena da indignação, batem panelas e gritam de suas janelas

Nesta quarentena da indignação não há um dia sequer em que não soframos alguma afronta do governo Bolsonaro, de seus ministros e de suas respectivas equipes. Mais uma vez, meteu os pés pelas mãos recentemente o ministro Paulo Guedes, cujos feitos dessa natureza são realmente espantosos. Perguntado sobre a prorrogação do auxílio emergencial, aquele cujo objetivo era impedir que as pessoas vulneráveis tivessem de escolher entre passar fome ou se contaminar, Guedes disse que pensa em reduzir o valor do benefício de R$ 600 mensais para R$ 200 mensais, o valor inicialmente defendido pelo governo federal. Antes dele, o secretário do Tesouro havia dito que não há dinheiro para pagar a renda básica, qualquer renda básica de natureza permanente. Quais contas ele apresentou? Em que dados fundamentou sua fala? Ora, em nenhum, evidentemente.

Neste exato momento, há pesquisadores pelo país trabalhando em diferentes propostas de renda mínima: fazem contas, buscam os fatos. Em artigo publicado no jornal britânico Financial Times, apresentei alguns cálculos para o Brasil e mostrei que daria, sim, para adotar um programa de renda básica permanente. Há vários projetos de lei para a criação da renda básica tramitando no Congresso. Destaco dois: o de autoria do senador Randolfe Rodrigues, que ajudei a elaborar, e o de autoria do senador José Serra. Em meio a todo esse trabalho, o secretário do Tesouro de Guedes teve o desplante de vir a público, mão na frente outra atrás, para dizer que não é possível fazer o que é preciso fazer sem apresentar qualquer sustentação para seu argumento. Será difícil esquecer essa fala.

Ricardo Noblat - Bolsonaro diz a Celso de Mello o que fazer com vídeo-bomba

- Blog do Noblat | Veja

Ministro ataca autores de ameaças a juízes

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou sua live semanal no Facebook para orientar o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, sobre o que fazer com o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril último onde ele, segundo o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, ameaçou intervir politicamente na Polícia Federal.

Celso tem três opções: autorizar a divulgação do vídeo na íntegra; ou apenas os trechos que têm a ver com a denúncia feita por Moro quando pediu demissão; ou manter o vídeo em segredo. A maiorias dos seus colegas aposta que ele autorizará a divulgação na íntegra. A decisão deverá ser anunciada hoje até o fim da tarde.

Bolsonaro fez um apelo público ao ministro para que vete a divulgação na íntegra. E garantiu, referindo-se à imprensa: “Vocês vão perder, eu estou adiantando a decisão do ministro Celso de Mello. Não tem nada, não tem nenhum indício de que eu interferi em processo da Polícia Federal naquelas duas horas de fita”.

Em seguida, como se se dirigisse ao ministro, orientou: “Tem questões reservadas [no vídeo], tem particularidades de interesse nacional. Tem dois pedacinhos de 15 segundos que são questões de política externa e que não pode divulgar.” Quando ao resto: “Divulga! E tem muito palavrão. Se divulgarem, tirem as crianças da sala”.

Ficou claro o receio de Bolsonaro com a quantidade de palavrões que ele disse e que poderão chocar, prejudicando ainda mais a sua imagem. Então ele recomendou: “Às vezes sai um palavrão, sem ofender ninguém. Não é o caso de tornar isso público, senão vão falar: vê se esse homem está à altura do cargo que representa”.

Dora Kramer - Encravado nas estrelas

- Revista Veja

O desafio das Armadas é evitar o contágio do vírus do descrédito

Militares com assento em gabinetes do Planalto e adjacências estão vendo como é difícil fazer parte de governos quando o ato de governar é presidido pela democracia. Panorama visto também por seus pares sem postos no Executivo, a serviço apenas do Estado. Uma boa experiência tanto para os remanescentes do regime autoritário quanto para as novas gerações lotadas no Exército, Marinha e Aeronáutica. Ressalvadas as exceções de praxe, para todos eles tudo indica serem pontos pacíficos a prevalência do poder civil resultante da escolha livre do voto e a normalidade institucional da Constituição de 1988. Nessa condição, depois de 21 anos no comando da nação, enquadraram-se ao ditame familiar à vida nos quartéis: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Nos últimos 35 anos não houve dúvida quanto ao imperativo de obediência devida à Carta Maior. Nesse período não se discutiram coisas como a hipótese de golpe militar.

O problema começou quando quem assumiu o topo da linha de comando mostrou não ter um pingo de juízo. Nessa hora, a de agora, as Forças Armadas passaram de instituição benquista a alvo de suspeições golpistas. E por quê? Grosso modo porque subverteram a ordem dos fatores e altas patentes aceitaram se submeter às ordens de um capitão. Reformado por indisciplina, acrescente-se. Na vigência de um regime de liberdades, garantia dos direitos individuais e submissão aos deveres constitucionais tudo tem um preço. Caríssimo e cobrado com juros da desmoralização quando se avalizam atos e palavras que extrapolam aqueles preceitos. Seja pelo compartilhamento do mesmo espaço, seja por ação e/ou omissão. No caso da junção dessas duas situações, o efeito dificilmente deixa de ser desastroso.

Bernardo Mello Franco - Diplomacia da destruição

- O Globo

Ernesto Araújo não está sozinho no esforço de destruição do Itamaraty. Para mostrar serviço, embaixadores torturam fatos e atuam como agentes do bolsonarismo

Na semana passada, o ministro Ernesto Araújo tomou uma providência para conter o fluxo de más notícias sobre o Brasil. Proibiu o envio de reportagens publicadas aqui para os postos diplomáticos no exterior. A tentativa de censura já seria inócua no tempo do telégrafo. Na era da internet, soou apenas como birra de um chanceler sem medo do ridículo.

Ernesto anda irritado. No início do mês, sete exministros redigiram um artigo crítico à sua gestão desastrosa no Itamaraty. O texto afirmou que a política externa em vigor afronta a Constituição, mina a credibilidade do país e afugenta os investidores internacionais. Era tudo verdade, mas o olavista não gostou de ser confrontado com o espelho.

Nelson Motta - Eles e nós

- O Globo

A piada da vez somos nós, e não Portugal

No domingo vi uma foto do presidente da República de Portugal, o professor e jornalista Marcelo Rebelo de Sousa, de bermudão, esperando na fila de um supermercado em Lisboa, de máscara, guardando a distância regulamentar e respeitando a fila. Nenhum segurança à vista. Um conservador muito educado e cordial, Marcelo tem 86% de apoio e confiança da população. Deu muita inveja.

Com 29.912 infectados e 1.277 mortos, Portugal está entre os países de menores índices de mortalidade por um milhão de habitantes no mundo. Um terço da Suécia, que tem a mesma população. É apavorante comparar ao Brasil, ainda em acelerada curva ascendente, porque temos 20 vezes mais habitantes do que Portugal, testamos 20 vezes menos e estamos fazendo o contrário do que eles fizeram. Lá eles já estão saindo do isolamento, enquanto aqui o pior está só começando e o antagonismo político, chamado de guerra por Bolsonaro, comanda o espetáculo macabro.

Vinicius Torres Freire - Dia de paz dos cemitérios na política

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro, parlamentares e governadores fazem acordinho, mas país segue sem planos

Foi um dia de “paz na política”, a paz dos tempos dos cemitérios cada vez mais lotados. Ainda que o acordo durasse, não há perspectiva de que se trate do essencial, a epidemia, e de novidade na política econômica, planos especiais de reconstrução, se e quando tal coisa for possível.

Nesta quinta-feira, os presidentes da Câmara, do Senado e Jair Bolsonaro combinaram de evitar escândalo na reunião em que conversaram com governadores sobre o auxílio federal a estados e municípios. Alguns senadores e governadores também combinaram de baixar o tom, inclusive governantes de esquerda do Nordeste e João Doria, de São Paulo.

No Brasil dos tempos que correm, tais arranjos podem durar horas, até o próximo comício bolsonarista ou até que vaze algum progresso dos inquéritos sobre a família presidencial, por exemplo. Além do mais, não foi possível ainda descobrir o alcance do acordozinho, se foi algo mais do que a tentativa de manter as aparências.

Ruy Castro* - Covid e caserna

- Folha de S. Paulo

Os soldados estarão espirrando juntos nos quartéis?

Graças a Jair Bolsonaro, atualmente na Presidência da República, o Ministério da Saúde está sendo ocupado pelos militares. Significa que, por falta de gente do ramo, leia-se médicos, no comando, a Covid-19 continuará rompante no país. Mas faremos alguns progressos. Nos hospitais, por exemplo, os pacientes serão acordados a corneta. Haverá juramento matinal à bandeira, rufo de tambores à visita de um coronel e revista diária de tropas, digo, enfermeiros, pelo oficial de serviço.

O que nos leva a uma pergunta. Já que nossos generais não acreditam em besteiras como confinamento, quarentena e distanciamento social, e não se conformam com que os escritórios, fábricas, igrejas, lotéricas e até manicures estejam parados, como anda a coisa entre eles? A julgar pela nova orientação do ministério, os militares não devem estar impondo ao seu pessoal os cuidados que muitos de nós, paisanos covardes, achamos prudente seguir.

Assim, pode-se imaginar que, neste momento, os quartéis estão cheios de rapazes marchando juntos, fazendo ginástica juntos, dando tiro juntos, dormindo juntos e acordando juntos, e também tossindo, assoando-se e espirrando juntos. Um soldado e um cabo, capazes de fechar sozinhos o STF, levarão a mão à testa centenas de vezes por dia, de acordo com o número de continências que terão de bater para o sargento. Não é um risco?

Bruno Boghossian – A vida boa de Guedes e Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Visão mesquinha sobre pagamento do auxílio emergencial está entranhada no governo

Quando era deputado, Jair Bolsonaro defendia o fim do Bolsa Família. Em 2011, ele foi à tribuna da Câmara para dizer que o benefício tornava "pobres coitados, ignorantes" em "eleitores de cabresto do PT".

"O Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda", acrescentou o parlamentar.

Depois que assumiu o poder, ele tentou omitir os antigos discursos. Lançou o pagamento de uma 13ª parcela do programa e disse que aquela era uma conquista de pessoas que "ficaram esquecidas por muito tempo". A visão mesquinha do deputado polemista do baixo clero, no entanto, continua entranhada no governo.

O ministro da Economia mal consegue disfarçar. Numa conversa com empresários, Paulo Guedes disse que poderia estender o pagamento do auxílio emergencial do coronavírus por apenas um ou dois meses, além das três parcelas já previstas. Sem esse limite, "aí ninguém trabalha".

Reinaldo Azevedo - Impeachment civiliza, mas sem pressa

- Folha de S. Paulo

Nada obriga Rodrigo Maia a decidir em um prazo determinado

Um, por assim dizer, megapedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro acaba de chegar à Câmara. É subscrito por 154 cidadãos, incluindo parlamentares e dirigentes de PT, PC do B, PSOL e PSTU, e cerca de 400 entidades da sociedade civil. É o 36º a cair na mesa do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). É mais do que justo e merecido. Convém, no entanto, apelando à poesia em tempos de pandemia, não perder a vida por delicadeza.

Vamos lá. Por mais que o lírico da tubaína com cloroquina dê, a cada dia, motivos novos para a institucionalidade se assombrar, é preciso pensar nas consequências, que vêm sempre depois (by Marco Maciel), caso a Câmara rejeite a autorização para enviar a denúncia ao Senado, que é a Casa que abre o processo. Quem quer Bolsonaro fora precisa de 342 deputados; quem não quer, de 172 apenas.

Não basta a maioria. É preciso ter uma maioria eficaz, o que não é fácil de conquistar. Não é necessário ser muito bidu para estimar que inexiste hoje esse número, especialmente quando o presidente decidiu ir às compras. O “fundão do centrão”, como já chamei nesta coluna, está à disposição —e não exatamente em liquidação. A cada dia, Bolsonaro torna mais caro o apoio da escória.

Hélio Schwartsman - A ciência da cloroquina

- Folha de S. Paulo

Insistir no uso do medicamento deixou de ser racional para se converter em opção ideológica

Idealmente, a ciência informa as decisões dos políticos e não é influenciada por eles. Gestores só adotariam medidas que já tivessem sido testadas em pesquisas e jamais interfeririam no trabalho de cientistas.

No mundo real as coisas são mais confusas. Não é que governantes nunca ouçam especialistas, mas frequentemente preferem fazer aquilo que acreditam que aumentará sua popularidade ou apenas seguem seus caprichos. A política também afeta a ciência por vários canais, dos mais concretos, como a disponibilidade de verbas, aos mais sutis, como a ideologia.

Como essas considerações se aplicam à cloroquina? Em março, quando o presidente Bolsonaro se tornou um entusiasta do medicamento no combate à Covid-19, sua posição não era absurda. Havia uma hipótese teórica para explicar sua possível ação e alguns poucos trabalhos (de má qualidade, é verdade) a sugerir eficácia.

Celso Ming - O novo imposto e a mão de gato

- O Estado de S.Paulo

Mais uma vez, Paulo Guedes insiste na criação de um imposto que lembra a velha CMPF, o imposto do cheque

O que é, o que é? Tem focinho de gato, orelha de gato, olho de gato, garra de gato, mas tem uma peninha na cabeça? A resposta qualquer criança sabe: é um gato com uma peninha na cabeça.

Pois, mais uma vez, o ministro da Economia, Paulo Guedes, insiste na criação de um imposto que lembra a velha CMPF, o imposto do cheque. Também desta vez, ele insiste em dizer que não tem nada a ver com CPMF. Mas não esconde que será um imposto provisório – que fique entendido – a ser cobrado sobre operações digitais.

Sempre que essa ideia aparece, vem com supostas meritórias intenções. Em 1996, quando o então ministro da Saúde, Adib Jatene, defendeu a criação da CPMF, argumentou que viria para financiar a saúde pública. Alguém poderia ser contra o melhor dos objetivos, o ataque às doenças? Logo se viu que era apenas um jeito maroto de vender o imposto, porque a arrecadação foi para o caixa geral e daí para onde o governo determinasse.

Sergio Amaral* - A agenda global pós-covid-19

- O Estado de S.Paulo

Tópicos prioritários: Estado, neopopulismo, desigualdade, bem comum e solidariedade

Alguns países já estão saindo da covid-19. Outros, como nós, estão apenas entrando. O número de óbitos e a destruição de riqueza são assustadores. Enquanto não houver uma vacina para impedir o contágio ou um remédio para curar a enfermidade, permaneceremos na incerteza. Não existe ainda uma luz no fim do túnel.

A crise do coronavírus não traz necessariamente fatos novos, mas acelera processos de mudança em curso, que apontam para um novo cenário global e uma nova agenda, que deverá incluir cinco tópicos prioritários: o Estado, o neopopulismo, a desigualdade, o bem comum e a solidariedade.

O pêndulo da História está-se movendo de um ponto de mais globalização e menos Estado para outro de menos globalização e mais Estado. Isso não quer dizer que globalização volte para trás, mas que o Estado será chamado a disciplinar os seus excessos e a assumir novas responsabilidades. Há vários sinais nesse sentido.

A própria pandemia mostrou que os governos terão um papel mais ativo nos serviços de saúde. Na economia, a crescente rejeição ao estrangeiro, sob a forma de bens ou imigrantes, levou à intervenção do Estado, quer sob a forma do protecionismo comercial, quer pelo bloqueio da imigração. Em vários países, como no Chile, expressivas demonstrações de rua clamaram por mais participação do governo na previdência social, na saúde, na educação e, por vezes, na própria indução ao desenvolvimento. Por fim, o Brexit mostrou a resistência do Estado nacional diante da transferência de poderes para um ente supranacional.

Ignácio de Loyola Brandão - Se eu morrer, saibam quem me matou

- O Estado de S.Paulo

Esta minha crônica é propositalmente caótica, porque retrata tempos que vivemos

Regina Duarte, esperamos que honre a memória de nomes como Paulo Emílio Salles Gomes, Almeida Salles, Rudá de Andrade, Caio Scheiby, Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Rubem Biáfora e B.J Duarte, pioneiros na fundação da Cinemateca

Esta é a crônica mais delirante e real que escrevi nestes meus 27 anos neste jornal. Se eu morrer de covid-19, saibam que fui assassinado. Sei que posso ser morto apesar dos cuidados que tomo. Estou há 50 dias encerrado em casa. Não desço sequer para atender motoboys que trazem medicamentos, compras de supermercados ou refeições. Gastei hectolitros de álcool gel, cheguei ao máximo de, após receber uma ligação, dar um banho no telefone com medo de ser contaminado pelo som. Quando vejo noticiário, desligo se o presidente começa a falar, enraivecido, espalhando perdigotos, tossindo, espirrando, dando a mão, insensível, abusado.

Tenho medo de ser infectado. Aqueles olhos claros que poderiam ser amorosos e cordiais nos fuzilam com chispas de ódio. Como deve sofrer quem vive assim na defensiva. Porque ele é pura defensiva o tempo todo. Segundo os sábios, não podemos olhar nos olhos de uma pessoa que odeia tudo, o mundo, a vida, porque podemos trazer para dentro de nós o que ela tem de maligno. Há o perigo de nos tornarmos como ela, malvada, perversa. Dona Ursulina, senhora sábia, que cozinhava como poucos, avó de um primo querido, diante de gente ruim costumava dizer: “Isso não é gente, isso é o demônio”. E esse presidente se diz religioso, vai a cultos, agrada a fiéis, bispos, pastores, o que for. Quem ele quer enganar?

César Felício - Bolsonaro e o abismo

-Valor Econômico

Pandemia contaminou imagem do presidente

Quase todas as pesquisas de opinião no Brasil, independentemente do instituto ou da metodologia utilizada, apontam a mesma tendência. O sentimento mais poderoso que existe no Brasil, com trajetória ascendente, não é o bolsonarismo, e muito menos o petismo. O presidente e seu antecessor contam com taxas de aprovação relativamente estáveis ao longo do último ano.

É o antibolsonarismo que se desenvolve, ainda sem auferir capital a ninguém na oposição ao atual governo. É uma onda por ora sem beneficiários. Existe, de forma cada vez mais nítida, uma demanda de opinião pública a ser atendida por quem se habilitar.

Talvez seja equivocado dizer que há espaço para o tal “centro”. Há uma brecha para se desenvolver uma candidatura que signifique o repúdio a Bolsonaro e a Lula simultaneamente, o que é diferente de estar no meio do espectro ideológico.

A pesquisa XP/Ipespe, por exemplo, que foi divulgada anteontem, mostra uma queda horizontal em relação ao presidente: o repúdio a Bolsonaro cresceu na segunda quinzena de abril em todos os segmentos, independentemente da faixa de renda, da religião, do sexo, da escolaridade, da região do país.

A rejeição avança conforme o coronavírus avança. O percentual de pessoas que conhece alguém afetado pela pandemia passou de 2% para 31% entre março e maio. O de quem teve impacto na situação financeira saltou de 26% para 56%. Há dois meses 21% se diziam com muito medo da pandemia. Agora são 43%.

Isso tudo mesmo levando em conta que 34% dos pesquisados já receberam o benefício de R$ 600 do governo e que 14% acreditam que ainda vão receber. Os programas para garantir a sobrevivências básica da população, ainda que garantam em determinados segmentos um salto importante de renda, como por exemplo entre os beneficiários do Bolsa Família, não estão por ora servindo de anteparo.

José de Souza Martins* - O saber médico e o popular

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A ignorância é, desde a origem do Brasil, um instrumento de poder. É esse o cenário que define os problemas da saúde pública em situação de emergência como agora

Os reiterados apelos de autoridades médicas para que a população permaneça em quarentena, durante a epidemia da covid-19, tem tido consequências aquém do esperado e, principalmente, do necessário. Há diversos fatores sociais e culturais por trás da imprudência coletiva. A começar de que milhões de brasileiros não têm habitação ou a habitação adequada ao isolamento.

Além do que, esses apelos se baseiam no pressuposto equivocado de que toda a população regula seu comportamento costumeiro, em questões de saúde, pelas mesmas concepções dos médicos e dos cientistas.

Equivocado porque, historicamente, o brasileiro é culturalmente duplo, nas concepções e na língua, uma das consequências das duas escravidões que fizeram o Brasil que conhecemos, a indígena e a negra, além da influência do branco retrógrado. Somos um país atrasado. O que faz do conhecimento científico um conhecimento paralelo ao popular, e com ele em disputa.

No geral, médicos intuem isso. Problema que se abrandaria se nos currículos das faculdades de medicina fosse incluída a antropologia. Uma ponte sobre o abismo que separa e contrapõe as duas culturas.

Fernando Abrucio* - O que deu certo em outros países e o nosso pesadelo

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Bolsonaro e seu governo estão na contramão de tudo o que tem obtido bons resultados até agora no combate à pandemia da covid-19 e seus efeitos sobre a economia dos países

Uma crise tão gigantesca e imprevisível como a atual não tem solução simples nem fácil. Nenhum país tem uma varinha mágica para acabar instantaneamente com o novo coronavírus e fazer a economia voltar a todo vapor. E mais: todos os governantes estão aprendendo a lidar com a covid-19 em exercícios de tentativa e erro, levando em conta as especificidades do desenvolvimento da doença em cada nação. Não obstante, é possível encontrar cinco características básicas dos melhores governos no enfrentamento da pandemia. Isso é positivo e permite encontrar alguma luz no fim do túnel. A notícia ruim é que o presidente Bolsonaro está na contramão de tudo que dá certo no plano internacional.

A primeira característica dos governos mais bem-sucedidos no combate à covid-19 foi a combinação de ciência e humanismo. Seus líderes usaram evidências científicas para construir as políticas públicas, mesmo que haja diferenças entre as respostas dadas por tais países. Construíram mapas de incidência da doença, planejaram a compra de equipamentos de saúde, propuseram uma variedade de tipos de isolamento social, tudo isso com base em dados sistematicamente produzidos e acompanhados. Esses governantes não tiveram medo de falar verdades inconvenientes quando foi preciso, porque optaram por soluções racionais e não pelo pensamento mágico.

Claudia Safatle - Volta à cena o Imposto sobre Transações

- Valor Econômico

A intenção é cortar a tributação sobre a folha de salários

Está na primeira fila das medidas em discussão no governo para o relançamento da atividade, tão logo ocorra a abertura da economia, uma reforma tributária que reduza a carga imposta às empresas e que ajude na reconstrução da política fiscal e na retomada do crescimento.

O principal candidato ao corte é a tributação sobre a folha de salário das empresas e, prosperando essa alternativa, vai ser muito difícil o governo escapar da discussão sobre a criação do Imposto sobre Transações Financeiras (ITF). Aliás, essa ideia nunca foi totalmente engavetada pela pasta da Economia e torna-se mais relevante no pós-pandemia.

Por mais penosa que seja essa hipótese para o presidente Jair Bolsonaro, que já a descartou por várias vezes e demitiu Marcos Cintra, então secretário da Receita Federal, por defendê-la, o argumento da área econômica é o de que a desoneração da folha, que carrega uma pesada carga de impostos que onera o emprego, requer uma receita substituta e que o Imposto sobre Transações tem uma base mais ampla e, portanto, pode ter uma alíquota pequena e é “insonegável” tanto para as transações legais quanto para as ilegais.

Naercio Menezes Filho* - Lockdown em São Paulo?

- Valor Econômico

Sem uma testagem em massa, a política mais sensata parece ser entrar em lockdown a partir de junho

A pandemia está tendo impactos muito grandes, não somente no número de mortos, mas também econômicos e sociais. Para evitar a disseminação descontrolada da pandemia o governo do Estado de São Paulo tomou medidas de distanciamento social, que têm efeitos colaterais econômicos significativos. A pressão pelo fim do distanciamento é forte. Mas, qual seria o efeito do fim do distanciamento sobre o número de mortes no Estado de São Paulo? Será que, na verdade, deveríamos ir na direção contrária e adotar um lockdown?

Para responder a essas questões nós simulamos uma versão ampliada de um modelo bastante utilizado por epidemiologistas em todo o mundo, calibrando os parâmetros para a população do Estado de São Paulo1. Esse modelo é chamado de “SEIR” (suscetible, exposed, infectious and recovered) e a versão que simulamos permite taxas de infecção diferentes entre jovens e adultos e utiliza matrizes de contato entre as pessoas para simular os efeitos de políticas de distanciamento social2.

Antes de passarmos aos resultados, é importante atentar para as limitações do modelo que estamos utilizando. Em primeiro lugar, os modelos SEIR dependem de parâmetros que ainda não conhecemos com certeza. Um dos parâmetros mais importantes é o R0, a taxa de reprodução básica, que depende do número de pessoas para as quais uma pessoa infectada transmite o vírus no início da epidemia e de quantos dias ela permanece infectada. Nas simulações estamos usando um R0 igual a 3, mas as projeções variam bastante se mudarmos esse parâmetro.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Um entendimento a ser preservado em nome do país – Editorial | O Globo

Cordialidade no encontro entre Bolsonaro e governadores tem de ser a base para o enfrentamento da crise

A videoconferência realizada ontem entre Bolsonaro e governadores, mediada pelos presidentes da Câmara e Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, conseguiu interromper a escalada da crise política criada pela radicalização do presidente da República, assim que se viu limitado em suas ações pelo Legislativo e Judiciário, como ocorre na República.

Foi um progresso que pode ser decisivo, porque, sem entendimento entre governadores, prefeitos, Executivo federal e Legislativo, não é possível enfrentar as dificuldades que já desabam sobre a nação, atingindo, para começar, os mais vulneráveis na sociedade. Bolsonaro, cordato, se mostrou disposto a buscar este caminho.

Neste contexto, o clima de entendimento existente ontem na reunião conduzida pelo próprio Bolsonaro é um fato político importante, um marco nesses quase 17 meses do governo. O caixa de estados e municípios, sufocado pela queda de receitas provocada pela recessão já iniciada, precisa da ajuda de repasses da União para cobrir suas despesas, acrescidas pelos gastos adicionais causados pela epidemia da Covid-19. A maioria dos leitos ocupados pelas vítimas do Sars-CoV-2 é municipal e estadual.

Música | Alceu Valença - Eu vou fazer você voar

Poesia | Fernando Pessoa - Já não vivi em vão

Já não vivi em vão
Já escrevi bem
Uma canção.

A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?

Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.