Apontamentos para uma introdução e um encaminhamento ao estudo da filosofia e da história da cultura
I. Alguns pontos preliminares de referência
§ 12. É preciso destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as características desta “filosofia espontânea”, peculiar a “todo o mundo”, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, conseqüentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore”.
Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente — já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo —, passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção do mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (e que pode ser a própria aldeia ou a província, pode se originar na paróquia e na “atividade intelectual” do vigário ou do velho patriarca, cuja “sabedoria” dita leis, na mulher que herdou a sabedoria das bruxas ou no pequeno intelectual avinagrado pela própria estupidez e pela impotência para a ação), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade?
Nota I. Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção do mundo, portanto, significa torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise.
Nota II. Não se pode separar a filosofia da história da filosofia, nem a cultura da história da cultura. No sentido mais imediato e determinado, não se pode ser filósofo — isto é, ter uma concepção do mundo criticamente coerente — sem a consciência da própria historicidade, da fase de desenvolvimento por ela representada e do fato de que ela está em contradição com outras concepções ou com elementos de outras concepções. A própria concepção do mundo responde a determinados problemas colocados pela realidade, que são bem determinados e “originais” em sua atualidade. Como é possível pensar o presente, e um presente bem determinado, com um pensamento elaborado em face de problemas de um passado freqüentemente bastante remoto e superado? Se isto ocorre, significa que somos “anacrônicos” em face da época em que vivemos, que somos fósseis e não seres que vivem de modo moderno. Ou, pelo menos, que somos bizarramente “compósitos”. E ocorre, de fato, que grupos sociais que, em determinados aspectos, exprimem a mais desenvolvida modernidade, em outros manifestam-se atrasados com relação à sua posição social, sendo, portanto, incapazes de completa autonomia histórica.
Nota III. Se é verdade que toda linguagem contém os elementos de uma concepção do mundo e de uma cultura, será igualmente verdade que, a partir da linguagem de cada um, é possível julgar a maior ou menor complexidade da sua concepção do mundo. Quem fala somente o dialeto ou compreende a língua nacional em graus diversos, participa necessariamente de uma intuição do mundo mais ou menos restrita e provinciana, fossilizada, anacrônica em relação às grandes correntes de pensamento que dominam a história mundial. Seus interesses serão restritos, mais ou menos corporativistas ou economicistas, não universais. Se nem sempre é possível aprender outras línguas estrangeiras a fim de colocar-se em contato com vidas culturais diversas, deve-se pelo menos conhecer bem a língua nacional. Uma grande cultura pode traduzir-se na língua de outra grande cultura, isto é, uma grande língua nacional historicamente rica e complexa pode traduzir qualquer outra grande cultura, ou seja, ser uma expressão mundial. Mas, com um dialeto, não é possível fazer a mesma coisa.
Nota IV. Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas, “socializá-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio” filosófico, de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais.
Conexão entre o senso comum, a religião e a filosofia. A filosofia é uma ordem intelectual, o que nem a religião nem o senso comum podem ser. Ver como, na realidade, tampouco coincidem religião e senso comum, mas a religião é um elemento do senso comum desagregado. Ademais, “senso comum” é um nome coletivo, como “religião”: não existe um único senso comum, pois também ele é um produto e um devir histórico. A filosofia é a crítica e a superação da religião e do senso comum e, nesse sentido, coincide com o “bom senso” que se contrapõe ao senso comum.
Relações entre ciência-religião-senso comum. A religião e o senso comum não podem constituir uma ordem intelectual porque não podem reduzir-se à unidade e à coerência nem mesmo na consciência individual, para não falar na consciência coletiva: não podem reduzir-se à unidade e à coerência “livremente”, já que “autoritariamente” isto poderia ocorrer, como de fato ocorreu, dentro de certos limites, no passado. O problema da religião, entendida não no sentido confessional, mas no laico, de unidade de fé entre uma concepção do mundo e uma norma de conduta adequada a ela: mas por que chamar esta unidade de fé de “religião”, e não de “ideologia” ou, mesmo, de “política”? [12]
Com efeito, não existe filosofia em geral: existem diversas filosofias ou concepções do mundo, e sempre se faz uma escolha entre elas. Como ocorre esta escolha? É esta escolha um fato puramente intelectual, ou é um fato mais complexo? E não ocorre freqüentemente que entre o fato intelectual e a norma de conduta exista uma contradição? Qual será, então, a verdadeira concepção do mundo: a que é logicamente afirmada como fato intelectual, ou a que resulta da atividade real de cada um, que está implícita na sua ação? E, já que a ação é sempre uma ação política, não se pode dizer que a verdadeira filosofia de cada um se acha inteiramente contida na sua política? Este contraste entre o pensar e o agir, isto é, a coexistência de duas concepções do mundo, uma afirmada por palavras e a outra manifestando-se na ação efetiva, nem sempre se deve à má-fé. A má-fé pode ser uma explicação satisfatória para alguns indivíduos considerados isoladamente, ou até mesmo para grupos mais ou menos numerosos, mas não é satisfatória quando o contraste se verifica nas manifestações vitais de amplas massas: neste caso, ele não pode deixar de ser a expressão de contrastes mais profundos de natureza histórico-social. Isto significa que um grupo social, que tem uma sua própria concepção do mundo, ainda que embrionária, que se manifesta na ação e, portanto, de modo descontínuo e ocasional — isto é, quando tal grupo se movimenta como um conjunto orgânico —, toma emprestado a outro grupo social, por razões de submissão e subordinação intelectual, uma concepção que não é a sua, e a afirma verbalmente, e também acredita segui-la, já que a segue em “épocas normais”, ou seja, quando a conduta não é independente e autônoma, mas sim submissa e subordinada. É por isso, portanto, que não se pode separar a filosofia da política; ao contrário, pode-se demonstrar que a escolha e a crítica de uma concepção do mundo são, também elas, fatos políticos.
Deve-se, portanto, explicar como ocorre que em cada época coexistam muitos sistemas e correntes de filosofia, como nascem, como se difundem, por que nessa difusão seguem certas linhas de separação e certas direções, etc. Isto mostra o quanto é necessário sistematizar crítica e coerentemente as próprias intuições do mundo e da vida, fixando com exatidão o que se deve entender por “sistema”, a fim de evitar compreendê-lo num sentido pedante e professoral. Mas esta elaboração deve ser feita, e somente pode ser feita, no quadro da história da filosofia, que mostra qual foi a elaboração que o pensamento sofreu no curso dos séculos e qual foi o esforço coletivo necessário para que existisse o nosso atual modo de pensar, que resume e compendia toda esta história passada, mesmo em seus erros e em seus delírios, os quais, de resto, não obstante terem sido cometidos no passado e terem sido corrigidos, podem ainda se reproduzir no presente e exigir novamente a sua correção.
Qual é a idéia que o povo faz da filosofia? Pode-se reconstruí-la através das expressões da linguagem comum. Uma das mais difundidas é a de “tomar as coisas com filosofia”, a qual, analisada, não tem por que ser inteiramente afastada. É verdade que nela se contém um convite implícito à resignação e à paciência, mas parece que o ponto mais importante seja, ao contrário, o convite à reflexão, à tomada de consciência de que aquilo que acontece é, no fundo, racional, e que assim deve ser enfrentado, concentrando as próprias forças racionais e não se deixando levar pelos impulsos instintivos e violentos. Essas expressões populares poderiam ser agrupadas com as expressões similares dos escritores de caráter popular (recolhidas dos grandes dicionários), nas quais entrem os termos “filosofia” e “filosoficamente”; e assim se poderá perceber que tais expressões têm um significado muito preciso, a saber, o da superação das paixões bestiais e elementares numa concepção da necessidade que fornece à própria ação uma direção consciente. Este é o núcleo sadio do senso comum, que poderia precisamente ser chamado de bom senso e que merece ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente. Torna-se evidente, assim, por que não é possível a separação entre a chamada filosofia “científica” e a filosofia “vulgar” e popular, que é apenas um conjunto desagregado de idéias e de opiniões.
Mas, nesse ponto, coloca-se o problema fundamental de toda concepção do mundo, de toda filosofia que se transformou em um movimento cultural, em uma “religião”, em uma “fé”, ou seja, que produziu uma atividade prática e uma vontade nas quais ela esteja contida como “premissa” teórica implícita (uma “ideologia”, pode-se dizer, desde que se dê ao termo “ideologia” o significado mais alto de uma concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas) — isto é, o problema de conservar a unidade ideológica em todo o bloco social que está cimentado e unificado justamente por aquela determinada ideologia. A força das religiões, e notadamente da Igreja Católica, consistiu e consiste no seguinte: elas sentem intensamente a necessidade de união doutrinária de toda a massa “religiosa” e lutam para que os estratos intelectualmente superiores não se destaquem dos inferiores.
A Igreja romana foi sempre a mais tenaz na luta para impedir que se formassem “oficialmente” duas religiões, a dos “intelectuais” e a das “almas simples”. Esta luta não foi travada sem que ocorressem graves inconvenientes para a própria Igreja, mas estes inconvenientes estão ligados ao processo histórico que transforma a totalidade da sociedade civil e que contém, em bloco, uma crítica corrosiva das religiões. E isto faz ressaltar ainda mais a capacidade organizativa do clero na esfera da cultura, bem como a relação abstratamente racional e justa que a Igreja, em seu âmbito, soube estabelecer entre intelectuais e pessoas simples. Os jesuítas foram, indubitavelmente, os maiores artífices deste equilíbrio e, para conservá-lo, eles imprimiram à Igreja um movimento progressivo que tende a satisfazer parcialmente as exigências da ciência e da filosofia, mas com um ritmo tão lento e metódico que as modificações não são percebidas pela massa dos simples, embora apareçam como “revolucionárias” e demagógicas aos olhos dos “integristas”.
Uma das maiores debilidades das filosofias imanentistas em geral consiste precisamente em não terem sabido criar uma unidade ideológica entre o baixo e o alto, entre os “simples” e os intelectuais. Na história da civilização ocidental, o fato verificou-se em escala européia, com o fracasso imediato do Renascimento e, parcialmente, também da Reforma em face da Igreja Católica. Esta debilidade manifesta-se na questão da escola, na medida em que, a partir das filosofias imanentistas, nem mesmo se tentou construir uma concepção que pudesse substituir a religião na educação infantil, do que resultou o sofisma pseudo-historicista, defendido por pedagogos a-religiosos (aconfessionais), realmente ateus, que permite o ensino da religião porque ela é a filosofia da infância da humanidade, que se renova em toda infância não metafórica. O idealismo também se manifestou contrário aos movimentos culturais de “ida ao povo”, expressos nas chamadas Universidades populares e instituições similares, e não apenas pelos seus aspectos equivocados, já que nesse caso deveriam somente ter procurado fazer melhor. Todavia, estes movimentos eram dignos de interesse e mereciam ser estudados: eles tiveram êxito, no sentido em que revelaram, da parte dos “simples”, um sincero entusiasmo e um forte desejo de elevação a uma forma superior de cultura e de concepção do mundo.
Faltava-lhes, porém, qualquer organicidade, seja de pensamento filosófico, seja de solidez
organizativa e de centralização cultural; tinha-se a impressão de que se assemelhavam aos primeiros contatos entre os mercadores ingleses e os negros africanos: trocavam-se coisas sem valor por pepitas de ouro. De resto, a organicidade de pensamento e a solidez cultural só poderiam ocorrer se entre os intelectuais e os simples se verificasse a mesma unidade que deve existir entre teoria e prática, isto é, se os intelectuais tivessem sido organicamente os intelectuais daquelas massas, ou seja, se tivessem elaborado e tornado coerentes os princípios e os problemas que aquelas massas colocavam com a sua atividade prática, constituindo assim um bloco cultural e social. Tratava-se, pois, da mesma questão já assinalada: um movimento filosófico só merece este nome na medida em que busca desenvolver uma cultura especializada para restritos grupos de intelectuais ou, ao contrário, merece-o na medida em que, no trabalho de elaboração de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente coerente, jamais se esquece de permanecer em contato com os “simples” e, melhor dizendo, encontra neste contato a fonte dos problemas que devem ser estudados e resolvidos? Só através deste contato é que uma filosofia se torna “histórica”, depura-se dos elementos intelectualistas de natureza individual e se transforma em “vida”.
(Talvez seja útil distinguir “praticamente” entre a filosofia e o senso comum, para melhor indicar a passagem de um momento para o outro. Na filosofia, destacam-se notadamente as características de elaboração individual do pensamento; no senso comum, ao contrário, destacam-se as características difusas e dispersas de um pensamento genérico de uma certa época em um certo ambiente popular. Mas toda filosofia tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito (de todos os intelectuais). Trata-se, portanto, de elaborar uma filosofia que — tendo já uma difusão ou possibilidade de difusão, pois ligada à vida prática e implícita nela — se torne um senso comum renovado com a coerência e o vigor das filosofias individuais. E isto não pode ocorrer se não se sente, permanentemente, a exigência do contato cultural com os “simples”.)
Uma filosofia da práxis só pode apresentar-se, inicialmente, em atitude polêmica e crítica, como superação da maneira de pensar precedente e do pensamento concreto existente (ou mundo cultural existente). E portanto, antes de tudo, como crítica do “senso comum” (e isto após basear-se sobre o senso comum para demonstrar que “todos” são filósofos e que não se trata de introduzir ex novo uma ciência na vida individual de “todos”, mas de inovar e tornar “crítica” uma atividade já existente); e, posteriormente, como crítica da filosofia dos intelectuais, que deu origem à história da filosofia e que, enquanto individual (e, de fato, ela se desenvolve essencialmente na atividade de indivíduos singulares particularmente dotados), pode ser considerada como “culminâncias” de progresso do senso comum, pelo menos do senso comum dos estratos mais cultos da sociedade e, através desses, também do senso comum popular. É assim, portanto, que uma introdução ao estudo da filosofia deve expor sinteticamente os problemas nascidos no processo de desenvolvimento da cultura geral, que só parcialmente se reflete na história da filosofia, a qual, todavia, na ausência de uma história do senso comum (impossível de ser elaborada pela ausência de material documental), permanece a fonte máxima de referência para criticá-los, demonstrar o seu valor real (se ainda o tiverem) ou o significado que tiveram como elos superados de uma cadeia e fixar os problemas novos e atuais ou a colocação atual dos velhos problemas.
A relação entre filosofia “superior” e senso comum é assegurada pela “política”, do mesmo modo como é assegurada pela política a relação entre o catolicismo dos intelectuais e o dos “simples”. As diferenças entre os dois casos são, todavia, fundamentais. O fato de que a Igreja deva enfrentar um problema dos “simples” significa, justamente, que existiu uma ruptura na comunidade dos “fiéis”, ruptura que não pode ser eliminada pela elevação dos “simples” ao nível dos intelectuais (a Igreja nem sequer se propõe esta tarefa ideal e economicamente desproporcional em relação às suas forças atuais), mas mediante uma disciplina de ferro sobre os intelectuais para que eles não ultrapassem certos limites nesta separação, tornando-a catastrófica e irreparável. No passado, essas “rupturas” na comunidade dos fiéis eram remediadas por fortes movimentos de massa, que determinavam ou eram absorvidos na formação de novas ordens religiosas em torno a fortes personalidades (Domingos, Francisco). (Os movimentos heréticos da Idade-Média — que surgiram como reação simultânea à politicagem da Igreja e à filosofia escolástica que foi uma sua expressão, e que se baseavam nos conflitos sociais determinados pelo nascimento das Comunas — foram uma ruptura entre massa e intelectuais no interior da Igreja, ruptura “corrigida” pelo nascimento de movimentos populares religiosos reabsorvidos pela Igreja, através da formação das ordens mendicantes e de uma nova unidade religiosa.) Mas a Contra-Reforma esterilizou este pulular de forças populares: a Companhia de Jesus é a última grande ordem religiosa, de origem reacionária e autoritária, com caráter repressivo e “diplomático”, que assinalou, com seu nascimento, o endurecimento do organismo católico. As novas ordens surgidas posteriormente têm um pequeníssimo significado “religioso” e um grande significado “disciplinar” sobre a massa dos fiéis: são ramificações e tentáculos da Companhia de Jesus (ou se tornaram isso), instrumentos de “resistência” para conservar as posições políticas adquiridas, não forças renovadoras de desenvolvimento. O catolicismo se transformou em “jesuitismo”. O modernismo não criou “ordens religiosas”, mas sim um partido político: a democracia cristã. (Recordar a anedota, narrada por Steed em suas Memórias, do cardeal que explica ao protestante inglês filocatólico que os milagres de São Genaro são úteis para o populacho napolitano mas não para os intelectuais, que também nos Evangelhos existem “exageros”, etc. E à pergunta: “Mas nós não somos cristãos?”, responde: “Nós somos ‘prelados’, isto é, ‘políticos’ da Igreja de Roma”.)
A posição da filosofia da práxis é antitética a esta posição católica: a filosofia da práxis não busca manter os “simples” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simples não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais.
O homem ativo de massa atua praticamente, mas não tem uma clara consciência teórica desta sua ação, a qual, não obstante, é um conhecimento do mundo na medida em que o transforma. Pode ocorrer, aliás, que sua consciência teórica esteja historicamente em contradição com o seu agir. É quase possível dizer que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma, implícita na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática da realidade; e outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e acolheu sem crítica. Todavia, esta concepção “verbal” não é inconseqüente: ela liga a um grupo social determinado, influi sobre a conduta moral, sobre a direção da vontade, de uma maneira mais ou menos intensa, que pode até mesmo atingir um ponto no qual a contraditoriedade da consciência não permita nenhuma ação, nenhuma escolha e produza um estado de passividade moral e política. A compreensão crítica de si mesmo é obtida, portanto, através de uma luta de “hegemonias” políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, atingindo, finalmente, uma elaboração superior da própria concepção do real. A consciência de fazer parte de uma determinada força hegemônica (isto é, a consciência política) é a primeira fase de uma ulterior e progressiva autoconsciência, na qual teoria e prática finalmente se unificam. Portanto, também a unidade de teoria e prática não é um dado de fato mecânico, mas um devir histórico, que tem a sua fase elementar e primitiva no sentimento de “distinção”, de “separação”, de independência quase instintiva, e progride até a aquisição real e completa de uma concepção do mundo coerente e unitária.
É por isso que se deve chamar a atenção para o fato de que o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa, para além do progresso político-prático, um grande progresso filosófico, já que implica e supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do real que superou o senso comum e tornou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda restritos.
Todavia, nos mais recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis, o aprofundamento do conceito de unidade entre a teoria e a prática permanece ainda numa fase inicial: subsistem ainda resíduos de mecanicismo, já que se fala da teoria como “complemento” e “acessório” da prática, da teoria como serva da prática. Parece justo que também este problema deva ser colocado historicamente, isto é, como um aspecto da questão política dos intelectuais. Autoconsciência crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se “distingue” e não se torna independente “para si” sem organizar-se (em sentido lato); e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, ou seja, sem que o aspecto teórico da ligação teoria-prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas “especializadas” na elaboração conceitual e filosófica. Mas este processo de criação dos intelectuais é longo, difícil, cheio de contradições, de avanços e de recuos, de debandadas e de reagrupamentos; e, neste processo, a “fidelidade” da massa (e a fidelidade e a disciplina são inicialmente a forma que assume a adesão da massa e a sua colaboração no desenvolvimento do fênomeno cultural como um todo) é submetida a duras provas. O processo de desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se desenvolve quantitativa e qualitativamente, mas todo progresso para uma nova “amplitude” e complexidade do estrato dos intelectuais está ligado a um movimento análogo da massa dos simples, que se eleva a níveis superiores de cultura e amplia simultaneamente o seu círculo de influência, com a passagem de indivíduos, ou mesmo de grupos mais ou menos importantes, para o estrato dos intelectuais especializados. No processo, porém, repetem-se continuamente momentos nos quais entre a massa e os intelectuais (ou alguns deles, ou um grupo deles) se produz uma separação, uma perda de contato, e, portanto, a impressão de “acessório”, de complementar, de subordinado. A insistência sobre o elemento “prático’’ da ligação teoria-prática — após se ter cindido, separado e não apenas distinguido os dois elementos (o que é uma operação meramente mecânica e convencional) — significa que se está atravessando uma fase histórica relativamente primitiva, uma fase ainda econômico-corporativa, na qual se transforma quantitativamente o quadro geral da “estrutura” e a qualidade-superestrutura adequada está em vias de surgir, mas não está ainda organicamente formada. Deve-se sublinhar a importância e o significado que têm os partidos políticos, no mundo moderno, na elaboração e difusão das concepções do mundo, na medida em que elaboram essencialmente a ética e a política adequadas a elas, isto é, em que funcionam quase como “experimentadores” históricos de tais concepções. Os partidos selecionam individualmente a massa atuante, e esta seleção opera-se simultaneamente nos campos prático e teórico, com uma relação tão mais estreita entre teoria e prática quanto mais seja a concepção vitalmente e radicalmente inovadora e antagônica aos antigos modos de pensar. Por isso, pode-se dizer que os partidos são os elaboradores das novas intelectualidades integrais e totalitárias [13], isto é, o crisol da unificação de teoria e prática entendida como processo histórico real; e compreende-se, assim, como seja necessária que a sua formação se realize através da adesão individual e não ao modo “laborista”, já que — se se trata de dirigir organicamente “toda a massa economicamente ativa” — deve-se dirigi-la não segundo velhos esquemas, mas inovando; e esta inovação só pode tornar-se de massa, em seus primeiros estágios, por intermédio de uma elite na qual a concepção implícita na atividade humana já se tenha tornado, em certa medida, consciência atual coerente e sistemática e vontade precisa e decidida. Uma destas fases pode ser estudada na discussão através da qual se verificaram os mais recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis, discussão resumida em um artigo de D. S. Mirski, colaborador da Cultura[14]. Pode-se ver como ocorreu a passagem de uma concepção mecanicista e puramente exterior para uma concepção ativista, que está mais próxima, como observamos, de uma justa compreensão da unidade entre teoria e prática, se bem que ainda não lhe tenha captado todo o significado sintético. Pode-se observar como o elemento determinista, fatalista, mecânico, tenha sido um “aroma” ideológico imediato da filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao modo dos narcóticos), tornada necessária e justificada historicamente pelo caráter “subalterno” de determinados estratos sociais. Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta termina assim por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecânico transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de coesão, de perseverança paciente e obstinada. “Eu estou momentaneamente derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim a longo prazo, etc.” A vontade real se disfarça em um ato de fé, numa certa racionalidade da história, numa forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado, que surge como um substituto da predestinação, da providência, etc., próprias das religiões confessionais. Deve-se insistir sobre o fato de que, também nesse caso, existe realmente uma forte atividade volitiva, uma intervenção direta sobre a “força das coisas”, mas de uma maneira implícita, velada, que se envergonha de si mesma; portanto, a consciência é contraditória, carece de unidade crítica, etc. Mas, quando o “subalterno” se torna dirigente e responsável pela atividade econômica de massa, o mecanicismo revela-se num certo ponto como um perigo iminente; opera-se, então, uma revisão de todo o modo de pensar, já que ocorreu uma modificação no modo social de ser.
Os limites e o domínio da “força das coisas” se restringiram. Por quê? Porque, no fundo, se o subalterno era ontem uma coisa, hoje não o é mais: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era irresponsável, já que era “resistente” a uma vontade estranha, hoje sente-se responsável, já que não é mais resistente, mas sim agente e necessariamente ativo e empreendedor . Mas, mesmo ontem, será que ele era apenas simples “resistência”, simples “coisa”, simples “irresponsabilidade”?
Não, por certo; deve-se, aliás, sublinhar que o fatalismo é apenas a maneira pela qual os fracos se revestem de uma vontade ativa e real. É por isso que se torna necessário demonstrar sempre a futilidade do determinismo mecânico, o qual, explicável como filosofia ingênua da massa e, somente enquanto tal, elemento intrínseco de força, torna-se causa de passividade, de imbecil auto-suficiência, quando é elevado a filosofia reflexiva e coerente por parte dos intelectuais; e isto sem esperar que o subalterno torne-se dirigente e responsável. Uma parte da massa, ainda que subalterna, é sempre dirigente e responsável, e a filosofia da parte precede sempre a filosofia do todo, não só como antecipação teórica, mas também como necessidade atual.
O fato de que a concepção mecanicista tenha sido uma religião de subalternos é revelado por uma análise do desenvolvimento da religião cristã, que — em um certo período histórico e em condições históricas determinadas — foi e continua a ser uma “necessidade”, uma forma necessária da vontade das massas populares, uma forma determinada de racionalidade do mundo e da vida, fornecendo os quadros gerais para a atividade prática real. Neste trecho de um artigo da Civilità Cattolica (“Individualismo pagano e individualismo cristiano”, fascículo de 5 de março de 1932), parece-me bem explícita esta função do cristianismo: “A fé em um porvir seguro, na imortalidade da alma destinada à beatitude, na certeza de poder atingir o eterno gozo, foi a mola propulsora para um trabalho de intenso aperfeiçoamento interno e de elevação espiritual. O verdadeiro individualismo cristão encontrou nisso o impulso para as suas vitórias. Todas as forças do cristão foram concentradas em torno a este nobre fim. Libertado das flutuações especulativas que lançam a alma na dúvida, e iluminado por princípios imortais, o homem sentiu renascer as esperanças; certo de que uma força superior o sustentava na luta contra o mal, ele fez violência a si mesmo e venceu o mundo”. Mas, também neste caso, trata-se do cristianismo ingênuo, não do cristianismo jesuitizado, transformado em simples ópio para as massas populares.
Mas a posição do calvinismo, com a sua férrea concepção da predestinação e da graça, que determina uma vasta expansão do espírito de iniciativa (ou torna-se a forma deste movimento), é ainda mais expressiva e significativa. (Sobre este assunto, consulte-se Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, publicado nos Nuovi Studi, fascículos de 1931 e ss.; bem como o livro de Groethuysen sobre as origens religiosas da burguesia na França [15].)
Por que e como se difundem, tornando-se populares, as novas concepções do mundo? Neste processo de difusão (que é, simultaneamente, de substituição do velho e, muito freqüentemente, de combinação entre o novo e o velho), influem (e como e em que medida), a forma racional em que a nova concepção é exposta e apresentada, a autoridade (na medida em que é reconhecida e apreciada, pelo menos genericamente) do expositor e dos pensadores e cientistas nos quais o expositor se apóia, a participação na mesma organização daquele que sustenta a nova concepção (após ter entrado na organização, mas por outro motivo que não aquele de partilhar da nova concepção)? Na realidade, estes elementos variam de acordo com o grupo social e com o nível cultural do referido grupo. Mas a pesquisa é interessante, sobretudo, no que diz respeito às massas populares, que mais dificilmente mudam de concepção e que, em todo caso, jamais a mudam aceitando a nova concepção em sua forma “pura”, por assim dizer, mas -- apenas e sempre -- como combinação mais ou menos heteróclita e bizarra. A forma racional, logicamente coerente, a perfeição do raciocínio que não esquece nenhum argumento positivo ou negativo de certo peso, têm a sua importância, mas está bem longe de ser decisiva; ela pode ser decisiva apenas secundariamente, quando determinada pessoa já se encontra em crise intelectual, oscila entre o velho e o novo, perdeu a confiança no velho e ainda não se decidiu pelo novo, etc. O mesmo pode ser dito com relação à autoridade dos pensadores e cientistas. Ela é muito grande no povo. Mas, de fato, toda concepção tem pensadores e cientistas a seu favor e a autoridade é dividida; além disso, é possível, com relação a todo pensador, distinguir, colocar em dúvida que haja dito as coisas precisamente dessa maneira, etc. Pode-se concluir que o processo de difusão das novas concepções ocorre por razões políticas, isto é, em última instância, sociais, mas que o elemento formal (a coerência lógica), o elemento de autoridade e o elemento organizativo têm uma função muito grande neste processo tão logo tenha tido lugar a orientação geral, tanto em indivíduos singulares como em grupos numerosos. Disto se conclui, entretanto, que, nas massas como tais, a filosofia não pode ser vivida senão como uma fé. Que se pense, ademais, na posição intelectual de um homem do povo; ele elaborou para si opiniões, convicções, critérios de discriminação e normas de conduta. Todo aquele que sustenta um ponto de vista contrário ao seu, enquanto é intelectualmente superior, sabe argumentar as suas razões melhor do que ele e, logicamente, o derrota na discussão. Deveria, por isso, o homem do povo mudar de convicções? E apenas porque, na discussão imediata, não sabe se impor? Se fosse assim, poderia acontecer que ele devesse mudar uma vez por dia, isto é, todas as vezes que encontrasse um adversário ideológico intelectualmente superior. Em que elementos baseia-se, então, a sua filosofia? E, especialmente, a sua filosofia na forma que tem para ele maior importância, isto é, como norma de conduta? O elemento mais importante, indubitavelmente, é de caráter não racional: é um elemento de fé. Mas de fé em quem e em quê? Sobretudo no grupo social ao qual pertence, na medida em que este pensa as coisas também difusamente, como ele: o homem do povo pensa que tantos não podem se equivocar tão radicalmente, como o adversário argumentador queria fazer crer; que ele próprio, é verdade, não é capaz de sustentar e desenvolver as suas razões como o adversário faz com as dele, mas que, em seu grupo, existe quem poderia fazer isto, certamente ainda melhor do que o referido adversário; e, de fato; ele se recorda de ter ouvido alguém expor, longa e coerentemente, de maneira a convencê-lo, as razões da sua fé. Ele não se recorda concretamente das razões apresentadas e não saberia repeti-las, mas sabe que elas existem, já que ele as ouviu expor e ficou convencido delas. O fato de ter sido convencido uma vez, de maneira fulminante, é a razão da permanente persistência na convicção, ainda que não se saiba mais argumentar.
Estas considerações, contudo, conduzem à conclusão de que as novas convicções das massas populares são extremamente débeis, notadamente quando estas novas convicções estão em contradição com as convicções (igualmente novas) ortodoxas, socialmente conformistas de acordo com os interesses das classes dominantes. Isso pode ser visto quando refletimos sobre os destinos das religiões e das igrejas. A religião, e uma Igreja determinada, mantém a sua comunidade de fiéis (dentro de certos limites, das necessidades do desenvolvimento histórico global) na medida em que mantém permanente e organizadamente a própria fé, repetindo infatigavelmente a sua apologética, lutando sempre e em cada momento com argumentos similares, e mantendo uma hierarquia de intelectuais que emprestem à fé pelo menos a aparência da dignidade do pensamento. Todas as vezes em que a continuidade das relações entre Igreja e fiéis foi interrompida violentamente, por razões políticas, como ocorreu durante a Revolução Francesa, as perdas sofridas pela Igreja foram incalculáveis; e, se as condições que dificultavam o exercício das práticas habituais tivessem excedido certos limites de tempo, é de se supor que tais perdas teriam sido definitivas e uma nova religião teria surgido, o que, aliás, ocorreu na França, em combinação com o velho catolicismo. Disto se deduzem determinadas necessidades para todo movimento cultural que pretenda substituir o senso comum e as velhas concepções do mundo em geral, a saber: 1) não se cansar jamais de repetir os próprios argumentos (variando literariamente a sua forma): a repetição é o meio didático mais eficaz para agir sobre a mentalidade popular; 2) trabalhar de modo incessante para elevar intelectualmente camadas populares cada vez mais vastas, isto é, para dar personalidade ao amorfo elemento de massa, o que significa trabalhar na criação de elites de intelectuais de novo tipo, que surjam diretamente da massa e que permaneçam em contato com ela para se tornarem seus “espartilhos”. Esta segunda necessidade, quando satisfeita, é a que realmente modifica o “panorama ideológico” de uma época.
Ademais, estas elites não podem constituir-se e desenvolver-se sem que, no seu interior, se verifique uma hierarquização de autoridade e de competência intelectual, que pode culminar em um grande filósofo individual, se este for capaz de reviver concretamente as exigências do conjunto da comunidade ideológica, de compreender que ela não pode ter a rapidez de movimento própria de um cérebro individual e, portanto, de conseguir elaborar formalmente a doutrina coletiva de maneira mais aderente e adequada aos modos de pensar do que um pensador coletivo.
É evidente que uma construção de massa desta espécie não pode ocorrer “arbitrariamente”, em torno a uma ideologia qualquer, pela vontade formalmente construtiva de uma personalidade ou de um grupo que se proponha esta tarefa pelo fanatismo das suas próprias convicções filosóficas ou religiosas. A adesão ou não-adesão de massas a uma ideologia é o modo pelo qual se verifica a crítica real da racionalidade e historicidade dos modos de pensar. As construções arbitrárias são mais ou menos rapidamente eliminadas pela competição histórica, ainda que por vezes, graças a uma combinação de circunstâncias imediatas favoráveis, consigam gozar de certa popularidade; já as construções que correspondem às exigências de um período histórico complexo e orgânico terminam sempre por se impor e prevalecer, ainda que atravessem muitas fases intermediárias nas quais a sua afirmação ocorre apenas em combinações mais ou menos bizarras e heteróclitas.
Estes desenvolvimentos colocam inúmeros problemas, sendo os mais importantes os que se resumem no modo e na qualidade das relações entre as várias camadas intelectuais qualificadas, isto é, na importância e na função que deve e pode ter a contribuição criadora dos grupos superiores, em ligação com a capacidade orgânica de discussão e de desenvolvimento de novos conceitos críticos por parte das camadas intelectualmente subordinadas. Em outras palavras, trata-se de fixar os limites da liberdade de discussão e de propaganda, liberdade que não deve ser entendida no sentido administrativo e policial, mas no sentido de autolimitação que os dirigentes põem à sua própria atividade; ou seja, mais precisamente, trata-se da fixação de uma orientação de política cultural. Em suma: quem fixará os “direitos da ciência” e os limites da pesquisa científica? Poderão esses direitos e esses limites serem realmente fixados? Parece-me necessário que o trabalho de pesquisa de novas verdades e de melhores, mais coerentes e claras formulações das próprias verdades seja deixado à livre iniciativa dos cientistas individuais, ainda que eles reponham continuamente em discussão os próprios princípios que parecem mais essenciais. Por outro lado, não será difícil perceber quando estas iniciativas de discussão tiverem motivos interessados e não de natureza científica. Também não é impossível pensar que as iniciativas individuais possam ser disciplinadas e ordenadas, de maneira que passem pelo crivo de academias ou institutos culturais de natureza diversa, tornando-se públicas somente após um processo de seleção, etc.
Seria interessante estudar concretamente, em um determinado país, a organização cultural que movimenta o mundo ideológico e examinar seu funcionamento prático. Um estudo da relação numérica entre o pessoal que está ligado profissionalmente ao trabalho cultural ativo e a população de cada país seria igualmente útil, com um cálculo aproximativo das forças livres. A escola — em todos os seus níveis — e a Igreja são as duas maiores organizações culturais em todos os países, graças ao número de pessoas que utilizam. Os jornais, as revistas e a atividade editorial, as instituições escolares privadas, tanto as que integram a escola de Estado quanto as instituições de cultura do tipo das universidades populares. Outras profissões incorporam em sua atividade especializada uma fração cultural não desprezível, como a dos médicos, dos oficiais do exército, da magistratura.
Entretanto, deve-se notar que em todos os países, ainda que em graus diversos, existe uma grande cisão entre as massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais próximos à periferia nacional, como os professores e os padres. E isso ocorre porque o Estado, ainda que os governantes digam o contrário, não tem uma concepção unitária, coerente e homogênea, razão pela qual os grupos intelectuais estão desagregados em vários estratos e no interior de um mesmo estrato. A Universidade, com exceção de alguns países, não exerce nenhuma função unificadora; um livre pensador, freqüentemente, tem mais influência do que toda a instituição universitária, etc.
Nota I. Com respeito à função histórica desempenhada pela concepção fatalista da filosofia da práxis, pode-se fazer o seu elogio fúnebre, reivindicando a sua utilidade para um certo período histórico, mas, justamente por isso, sustentando a necessidade de sepultá-la com todas as honras cabíveis. É possível, na verdade, comparar a sua função à da teoria da graça e da predestinação nos inícios do mundo moderno, teoria que posteriormente, porém, culminou na filosofia clássica alemã e na sua concepção da liberdade como consciência da necessidade. Ela foi um sucedâneo popular do grito “Deus assim o quer”; todavia, mesmo neste plano primitivo e elementar, era o início de uma concepção mais moderna e fecunda do que a contida no “Deus assim o quer” ou na teoria da graça. Será possível que uma nova concepção se apresente “formalmente” em outra roupagem que não na rústica e desordenada da plebe? Todavia, o historiador — com toda a necessária distância — consegue fixar e compreender que os inícios de um novo mundo, sempre ásperos e pedregosos, são superiores à decadência de um mundo em agonia e aos cantos de cisne que ele produz. O desaparecimento do “fatalismo” e do “mecanicismo” indica uma grande reviravolta histórica; daí a profunda impressão causada pela resenha de Mirski. Que se pense no que ela provocou. Que se pense na discussão com Mario Trozzi, em Florença, em novembro de 1917, e a primeira menção a bergsonismo, voluntarismo, etc. [16]. Poder-se-ia fazer um quadro semi-sério de como realmente se apresentava esta concepção. Que se pense, também, na discussão com o Professor Presutti, em Roma, em junho de 1924. Comparação com o capitão Giulietti, feita por G. M. Serrati, que para ele foi decisiva e de condenação total. Para Serrati, Giulietti era como o confuciano para o taoísta, como o chinês do sul, mercador ativo e operante, para o literato mandarim do Norte, que olhava com supremo desprezo de iluminado e de sábio, para quem a vida já não tem mistérios, estes homenzinhos do sul que acreditavam poder “abrir caminho” com os seus irrequietos movimentos de formiga. Discurso de Cláudio Treves sobre a expiação. [17]. Havia neste discurso um certo espírito de profeta bíblico: quem quisera e fizera a guerra, quem abalara o mundo em suas bases e, portanto, era responsável pela desordem do após-guerra, deveria expiar e carregar a responsabilidade desta desordem. Tinham cometido o pecado do “voluntarismo”: deviam ser punidos pelo seu pecado, etc. Havia uma certa grandeza sacerdotal neste discurso, um grito de maldições que deveriam petrificar de espanto e, ao contrário, foram um grande consolo, já que indicavam que o coveiro ainda não estava preparado e que Lázaro podia ressuscitar.
NOTAS
1. Antonio Labriola (1843-1904), importante filósofo marxista italiano, ao qual Gramsci se referirá várias vezes nos Cadernos, concedeu em 1902 (e não em 1903) uma entrevista na qual justificava a ação colonial italiana na Líbia, afirmando que ela contribuía para levar a civilização a um povo atrasado.
2. Quando foi Ministro da Instrução Pública no regime fascista, o filósofo neo-hegeliano Giovanni Gentile (1875-1944) – autor ao qual Gramsci retorna freqüentemente nos Cadernos -- justificou o caráter obrigatório do ensino religioso na escola primária alegando que a religião era algo próprio da “infância da humanidade”. Liberal em sua juventude, Gentile tornou-se mais tarde um dos principais ideólogos do fascismo.
3. Bertrando Spaventa (1817-1883) foi o mais importante expoente da chamada “escola hegeliana de Nápoles”. Foi deputado por três legislaturas e defendeu, em sua atuação filosófica e política, propostas liberais progressistas. Teve um importante papel na formação filosófica do seu sobrinho Benedetto Croce (1866-1952), um dos mais importantes interlocutores de Gramsci nos Cadernos.
4. Referência a uma passagem do jovem Marx: “Uma escola [a escola histórica do direito] que legitima a vilania de hoje com a vilania de ontem; uma escola que considera um ato de rebeldia todo grito do servo contra o cnute[chicote] quando este é um cnutecarregado de anos, tradicional, histórico” (Karl Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução” [1844], in Temas de ciências humanas, São Paulo, Grijalbo, vol. 2, 1977, p. 3).
5. Alusão às experiências do “Exército do Trabalho”, realizada nos primeiros anos da Rússia soviética. Cf., infra, n. 38, parte II, 1.
6. A citação de Andler está em francês no original.
7. Em várias passagens dos Cadernos, Gramsci refere-se a outras notas de sua autoria, remetendo sempre à numeração das páginas que ele próprio estabelecera no interior de cada caderno. Para não sobrecarregar o nosso próprio aparato de notas, adotamos o critério de remeter em alguns casos, no próprio texto de Gramsci, aos números do caderno e do parágrafo tal como estabelecidos na edição Gerratana (A. Gramsci, Quaderni del carcere, Turim, Einaudi, 1975, a seguir citada como QC) e retomados em nossa presente edição.
8.Com a expressão “idealismo atual”, Gramsci refere-se, aqui e em várias outras passagens dos Cadernos, à chamada “filosofia do ato puro”, elaborada por Giovanni Gentile.
9. Em 1864, a Cúria Romana publicou um elenco de supostos “erros” em matéria religiosa e moral. Conhecido como Sillabo, ou catálogo, esse documento é expressão das posições mais reacionárias da Igreja Católica.
10. “Rerum Scriptor” é o pseudônimo de Gaetano Salvemini (1873-1957). Inicialmente colaborador do Avanti!, jornal do Partido Socialista Italiano, Salvemini torna-se, entre 1911 e 1920, um dos editores do semanário Unità, empenhado na luta contra o protecionismo e no debate da chamada “questão meridional”. Exilado no período fascista, foi um dos fundadores do movimento liberal-socialista Giustizia e libertà.
11. Inicialmente colaborador do jornal fascista Il popolo d’Italia, Giuseppe Renzi se afasta desse movimento após a Marcha sobre Roma, em 1922, que culmina com a nomeação de Mussolini para a chefia do governo. O VI Congresso Nacional de Filosofia (Milão, 28-30 de março de 1926), suspenso pelas autoridades, significou uma manifestação pública de antifascismo. Depois dele, Gentile ironiza a nova orientação “liberal” de Renzi.
12. Aqui, como em muitas notas subseqüentes, Gramsci alude ao específico conceito de “religião” de Benedetto Croce, que — no parágrafo “Croce e a religião” (cf., infra, caderno 10, I, § 5) — ele resume do seguinte modo: “Para Croce, a religião é uma concepção da realidade com uma moral conforme a essa concepção, apresentada em forma mitológica. Portanto, é religião toda filosofia, ou seja, toda concepção do mundo na medida em que se tornou ‘fé’, isto é, em que é considerada não como atividade teórica [...], mas sim como estímulo à ação”.
13. Como em outras passagens dos Cadernos, Gramsci usa aqui positivamente o termo “totalitário”. Dado o sentido negativo que essa expressão assumiu posteriormente, é importante ressaltar que, para ele, “totalitário” significa apenas algo unitário e que tem dimensão universal.
14. Trata-se do artigo de Dimitri Petrovitch Sviatopolski-Mirski, “Bourgeois History and Historical Materialism”, in The Labour Monthly, julho de 1931.
15. A revista Nuovi Studi di Diritto, Economia e Politica, em vários números entre 1931 e 1932, publicou a primeira edição em italiano do conhecido ensaio de Max Weber. O livro de Bernard Groethuysen, citado a seguir, chama-se Origines de l’esprit bourgeois en France, I: L’Église et la bourgeoisie, Paris, 1927.
16. Por causa de sua enfática defesa da Revolução Russa de 1917, Gramsci foi acusado pelos reformistas -- em particular por Claudio Treves -- de ser “bergsoniano” e “voluntarista”. Ele se defendeu dessas acusações num famoso artigo, intitulado “O nosso Marx”, publicado em Il Grido del Popolo de 4 de maio de 1918. Em seguida, o texto menciona episódios menos claros. Enrico Presutti, depois do assassinato de Mateotti em 1924, participa com Gramsci do parlamento “aventiniano”. Mas não se conhece o teor do diálogo entre eles. Quanto ao líder socialista G. M. Serrati, ele polemiza publicamente, no Avanti!, com Gramsci e o grupo de L’Ordine Nuovo, mas não foi possível encontrar em tal polêmica a comparação entre Gramsci e Giuseppe Giulietti, líder sindical dos trabalhadores marítimos.
17. Na Câmara dos Deputados, em 30 de março de 1920, Treves pronuncia o chamado “discurso da expiação”, criticado imediatamente por Gramsci como “manifestação do pensamento oportunista”. Treves dizia aos deputados liberais: “A crise consiste justamente nisso: os senhores não mais podem nos impor sua ordem e nós ainda não podemos impor-lhes a nossa”. A desordem do pós-guerra e a impossibilidade de resolvê-la, num ou noutro sentido, eram precisamente a expiação do crime cometido: a aventura bélica. Na prática, como acentua Gramsci, Treves indicava a inviabilidade de uma solução socialista.
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Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, v 1. pp. 93-114. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2006..