segunda-feira, 30 de março de 2020

'Até Trump entendeu que não se pode mentir o tempo todo', diz professora de Harvard

Kathryn Sikkink lamentou que alguns governos, como o do Brasil, minimizem vírus e imagina um cenário similar ao do pós-guerra após pandemia

Janaína Figueiredo | O Globo

RIO — A ausência de um Estado forte que defenda os direitos humanos, o bem comum e a responsabilidade social em momentos de pandemia trará consequências graves. A avaliação é da professora Kathryn Sikkink, do departamento de Políticas de Direitos Humanos da Harvard Kennedy School, dos Estados Unidos.

Para ela, estamos vivendo nestes momentos “o grande desafio de nossas vidas. Os que estamos aqui, agora, enfrentaremos o que foi para nossos pais e avós a grande depressão do século passado”. Kathryn lamentou que alguns governos, como o do Brasil, continuem minimizando o coronavírus, e diante destas atitudes tem uma posição contundente:

— Para que uma economia funcione bem temos de proteger nossa população. Como podemos pensar numa economia que avance se nossa população está em risco? Como podemos colocar a economia acima da saúde se sem saúde não há economia? — disse.

Como muitos colegas e autoridades ao redor do mundo, Kathryn imagina um cenário similar ao pós-guerra em vários países, quando a pandemia finalmente for superada.

— Não sabemos exatamente como tudo isso vai nos marcar, mas não podemos minimizar esta ameaça. Se um Estado não cumpre suas obrigações, não respeita o direito de seus cidadãos, outros grupos farão a mesma coisa. As pessoas ficam desorientadas — lamentou a professora de Harvard.

Ela acaba de lançar o livro “A fase oculta dos direitos humanos, em direção a uma política de responsabilidade”. A tese central de seu trabalho é que para que todos possam usufruir de seus direitos, todos devem cumprir suas responsabilidades, começando pelo Estado.

— O coronavírus nos mostra de maneira exemplar como isso funciona. Temos de trabalhar todos juntos, com o Estado. E mesmo assim pode ser insuficiente — insistiu Kathryn.

Entrevista | 'Bolsonaro paga pelo seu comportamento irresponsável', diz o professor Steven Levitsky

Um dos autores do best-seller 'Como as democracias morrem', o americano se diz assombrado com a reação do presidente

Eduardo Salgado e Letícia Sander | O Globo

SÃO PAULO — Professor da área que estuda governos na Universidade Harvard, o americano Steven Levitsky é um dos autores do best-seller “Como as democracias morrem”, uma das principais referências na análise do fenômeno do populismo em escala mundial. Conhecedor da realidade da América Latina, Levitsky se diz assombrado com a reação de Jair Bolsonaro à pandemia do coronavírus. “É impressionante ver um líder colocar em risco a vida do que podem ser, no pior cenário, milhares de seus cidadãos”, afirmou.

Sobre as motivações do presidente, Levitsky acredita que só resta especular. “Não dá para saber ao certo o que ele está pensando. Talvez Bolsonaro não saiba o significado de crescimento exponencial. Ou ache que os vulneráveis terão de morrer para proteger o resto da população das agruras do impacto econômico do isolamento”, disse, ao longo de mais de meia hora de conversa, o especialista em autoritarismo, democratização e instituições.

• O presidente Bolsonaro tem defendido a reabertura de escolas e lojas. Qual é o cálculo político dessa estratégia?

Bolsonaro é bastante inepto e capaz de errar muito. Nesse quesito, ele se parece com Donald Trump. Mas nem todos os populistas são assim. Não diria o mesmo sobre o húngaro Viktor Orbán, o indiano Narendra Modi e o turco Recep Erdogan. Não sei dizer se a decisão de Bolsonaro de não ouvir o que a comunidade científica mundial está dizendo de forma quase unânime é um cálculo político ou um tremendo erro baseado no seu instinto. Mas é impressionante ver um líder colocar em risco a vida do que podem ser, no pior cenário, milhares de seus cidadãos.

• Por que Bolsonaro parece não temer ser culpado por um número crescente de mortes?

Ele pode estar pensando no curtíssimo prazo. Bolsonaro é um político que tem sofrido resistência do Legislativo e do Judiciário. Aqui e ali já há quem fale em impeachment. Outra possibilidade é que ele não entenda o que a ciência diz sobre a doença. Na semana passada, ele chegou a dizer que brasileiro pula no esgoto e não acontece nada. Não dá para saber ao certo o que ele está pensando. Talvez Bolsonaro não saiba o significado de crescimento exponencial. Ou ache que os vulneráveis terão de morrer para proteger o resto da população das agruras do impacto econômico do isolamento.

• Alguns analistas brasileiros acham que Bolsonaro está apostando que o clima brasileiro vai ser uma barreira ao vírus, o que ainda não tem comprovação. Se for verdade, a estratégia do presidente poderá estar correta?

Sim, mas é uma estratégia altamente imprudente. Por um instante, vamos imaginar que essa hipótese se prove correta. À medida que o inverno se aproxima, a temperatura nos estados do Sul e em parte do Sudeste vai cair, o que deixará uma grande parcela da população vulnerável. Dado o tamanho e a diversidade do Brasil, não vejo como a estratégia de Bolsonaro fica de pé, mesmo que a hipótese de um coronavírus menos potente no calor se prove certa, o que hoje é apenas uma possibilidade. Bolsonaro parece preso a um padrão baseado no confronto.

Ricardo Noblat - Bolsonaro deve ser detido para não fazer tanto mal ao país

- Blog do Noblat | Veja 

Aposta no quanto pior, melhor

Sabe Deus o que se passa na cabeça do presidente Jair Bolsonaro. Ou nem Deus sabe, talvez só o dono da cabeça. No último sábado, autorizado por Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, ministro da Saúde, apareceu na televisão e disse que o isolamento social deve ser mantido enquanto não passar a pior fase da pandemia.

Ontem, menos de 12 horas depois, Bolsonaro desfilou por galerias e ruas de Taguatinha, Ceilândia e Sobradinho, cidades do entorno de Brasília, atraiu gente, posou para fotos com seus admiradores e até com crianças, apertou mãos, e anunciou que cogita de um decreto mandando todo mundo trabalhar.

Que ordem valerá? A dada por Mandetta? Ou a que Bolsonaro poderá tomar? Qual será a reação das pessoas país a fora? Se o presidente volta a circular e diz que o coronavírus não é tão feio como parece, é razoável que muitos acreditem nele. E que o imitem. Consequências? Mais infectados, mais aspirantes à morte.

É fato que de 10 dias para cá, os brasileiros vem tapando os ouvidos ao que ele diz. No fim de semana dos dias 14 e 15, as praias do Rio, a Avenida Paulista e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, estiveram atulhadas de gente. Foi no dia 15 que Bolsonaro recepcionou seus devotos à entrada do Palácio do Planalto.

- Fernando Gabeira - Memórias do grupo de risco

- O Globo

Bolsonaro tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo

Nos últimos tempos, as coisas andam tão rápidas que todo dia escrevo um pouco. No final de semana, o epicentro da pandemia já havia se deslocado para os Estados Unidos, e Boris Johnson, primeiro-ministro inglês, foi contaminado pelo coronavírus.

Temo pelo Brasil. O vírus avança como em outros lugares. Somos mais vulneráveis pelas grandes concentrações urbanas, péssimas condições sanitárias. Os Estados Unidos eram o primeiro na lista de segurança sanitária no mundo: ricos e bem equipados.

Ao longo do caminho, não devemos nos concentrar apenas numa variável, o número de casos. Há outra muito importante: o índice de mortalidade.

Além de desvantagens historicamente acumuladas, temos outras de peso. O presidente da República, que deveria articular o esforço nacional, não acredita na importância da pandemia.

Bolsonaro se acha incólume porque um dia foi atleta. E estendeu essa blindagem aos brasileiros que, segundo ele, mergulham no esgoto e nada sofrem. No momento em que a Ciência tem um grande papel, Bolsonaro está cercado de terraplanistas, tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.

A segunda desvantagem está no ministro da Economia, Paulo Guedes. Toda a sua história é a de luta para reduzir o papel econômico do Estado. Trabalhou no Chile de Pinochet e escreveu inúmeros artigos sobre o tema.

Rosiska Darcy de Oliveira - A verdadeira escolha

- O Globo

Que Bolsonaro fique falando sozinho

As únicas escolhas verdadeiras são as feitas diante da morte. Escondida em um vírus desconhecido, ela espalhou sua sombra macabra sobre o mundo lembrando à humanidade seu fragílimo destino comum, tragédia que nos irmana e revela o melhor e o pior de cada um.

Pôs a nu desigualdades vergonhosas, cúmplices da violência, e os truques de mágicos da economia, cegos aos desvalidos, que enganam a todos, inclusive os ricos, com fundos falsos de suas Bolsas. Temos que escolher entre o salve-se quem puder e a solidariedade que tínhamos desaprendido.

Um desastre global, o Brasil confrontado às suas fraquezas e apesar delas mostrando uma população informada por excelentes jornalistas, competência científica e a aplaudida bravura dos agentes de saúde. E um homem, o presidente da República, que já nos insultou com suas baixezas, ignorância, preconceitos e incompetência, insulta agora idosos, doentes e os mortos subestimando a ameaça assombrosa, o resfriadinho que não pega nele, o ridículo atleta.

Cacá Diegues - O amanhã do vírus

- O Globo

O valor da verdade, da ciência e das novas tecnologias pode nos proteger contra as farsas ideológicas que nos atrapalham

Pelo menos na imprensa e nas redes sociais a que tenho acesso, pouco ouço falar da origem do coronavírus, um assunto que devia nos interessar. Primeiro, porque conhecer o que não se conhecia é um princípio natural da cultura. Depois, porque não se pode enfrentar um inimigo dessa importância, sem saber de onde ele veio. Sobretudo se isso diz alguma coisa a respeito de sua força ou de sua estratégia.

Dizer que esse é um “vírus chinês” é um ridículo idiota, parece uma declaração de guerra à Alemanha por causa do 7 a 1. O vírus surgiu primeiro na China, mas a responsabilidade por sua existência não é só da China. Com seu gosto em nos causar mal e seu poder destruidor, o vírus é o resultado de nossos maus-tratos à Natureza, entendendo por Natureza tudo aquilo que, no nosso planeta, não seja humano.

Como outras pestes que assolaram o mundo, desde a invenção do ser humano, o vírus letal é uma arma especial da Natureza, que a usa quando erramos demais, em relação a seu bem-estar. Em 1520, quando um dos primeiros exploradores espanhóis chegou ao México, levando com ele a varíola que os locais não conheciam, a maior parte dos habitantes da América Central caiu vítima da doença. E não havia, ali, aglomerações humanas, aviões intercontinentais, cruzeiros marítimos, essas coisas nas quais a gente, em geral, costuma botar a culpa.

Miguel Caballero - Presidente despreza médicos e confunde a população

- O Globo

O ministro Luiz Henrique Mandetta passou a semana constrangido, tentando equilibrar-se entre as recomendações dos técnicos de sua pasta e a posição do presidente Jair Bolsonaro pelo fim do isolamento, expressada em rede nacional na terça-feira. Já o chefe não viu problemas em desautorizar o subordinado.

Mandetta declarou novamente no sábado ser a favor do distanciamento social e de medidas restritivas, e no domingo Bolsonaro fez um passeio pelo comércio de rua em cidades-satélites de Brasília. As imagens pesam bem mais que palavras lidas no teleprompter em pronunciamentos em cadeia de rádio e TV.

O tour presidencial fará recrudescer especulações sobre uma demissão do ministro. O descompasso entre o presidente e Mandetta agrava um quadro em que o Bolsonaro vive às turras com os governadores. Até um dos mais próximos, Ronaldo Caiado, de Goiás, importante na indicação de Mandetta, rompeu com o presidente. A desarticulação de quem precisa organizar com urgência uma operação de contenção de uma catástrofe num país continental é alarmante, mas não é a única consequência ruim do passeio.

Bruno Carazza* - Um novo 7 a 1?

- Valor Econômico

Bolsonaro abandona a retranca e parte para o tudo ou nada

No dia 07 de julho de 2014, véspera da semifinal da Copa do Mundo de futebol, o técnico Felipão realizou o último treino tático antes do confronto com a Alemanha. Naquele dia, após analisar os jogos anteriores dos adversários, os auxiliares técnicos Roque Júnior e Gallo haviam entregue ao comandante da equipe um relatório. Comparando os dados e as estatísticas dos dois times, os ex-jogadores sugeriam que o Brasil deveria encarar os alemães numa postura mais defensiva. Sem Neymar, machucado, a ideia era reforçar o meio-campo, deixando Fred no banco e escalando Paulinho e Willian em seus lugares.

A tese de Roque Júnior e Gallo era compactar a defesa e o meio-campo da seleção brasileira para tentar conter a velocidade e as rápidas trocas de passe entre Schweinsteiger, Kroos, Özil, Müller e cia. Cabeça-dura, Felipão não acatou a sugestão. Quando entrou no gramado, o Brasil veio com uma formação ofensiva, com Hulk, Fred e o jovem Bernard no ataque. Com 30 minutos de bola rolando os alemães já venciam por 5x0, e o resto da história o mundo todo conhece.

No dia seguinte ao maior vexame de nossa história esportiva, o técnico Luiz Felipe Scolari admitiu que nunca havia treinado a seleção com a escalação que levou a campo no Mineirão. A opção por Bernard, o garoto que tinha “alegria nas pernas”, seria uma tentativa de surpreender o técnico alemão Joachim Löw. Questionado por que não havia testado os titulares com Bernard na véspera do jogo, o técnico justificou-se dizendo que sua estratégia era “despistar” os rivais.

Jair Bolsonaro se encontra diante do adversário mais perigoso desde que assumiu o comando do país. Embora nas entrevistas o presidente sempre tenha minimizado a sua força, a verdade é que para chegar até aqui o coronavírus derrubou economias muito mais poderosas do que a nossa. 

Acompanhando com atenção as estatísticas e as tentativas das outras nações de conterem o rápido ataque da covid-19, o auxiliar Luiz Henrique Mandetta sugeriu que o Brasil enfrentasse o rival fechado na defesa, buscando ganhar tempo nos momentos iniciais da partida até que o sistema de saúde conseguisse equilibrar o jogo.

Alex Ribeiro - BC terá instrumentos para um possível QE

- Valor Econômico

Brasil ainda tem um bom espaço para baixar os juros

Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que o governo está enviando ao Congresso Nacional aumenta o arsenal do Banco Central para enfrentar o aperto de liquidez e de crédito criado pela crise do coronavírus. Mas também amplia o leque de instrumentos de política monetária não convencional, permitindo que o BC faça expansão quantitativa (QE, na sigla em inglês), se for necessário num eventual ambiente de juros zero.

O Banco Central distribuiu uma minuta da PEC a lideranças do Congresso, segundo apuração em conjunto com o repórter Fabio Murakawa, que modifica o artigo 164 da Constituição. Esse dispositivo veda a concessão pelo BC, direta ou indiretamente, de empréstimos ao Tesouro Nacional ou a qualquer outro órgão que não seja instituição financeira.

Pela proposta, serão abertas duas exceções, que se aplicam no estado de defesa, estado de sítio, calamidade pública ou “outra situação de grave ruptura econômica reconhecida pelo Congresso Nacional”. As exceções são a compra, pelo BC, de títulos de emissão do Tesouro, no mercado nacional ou estrangeiro; e de ativos financeiros, privados ou públicos, no mercado financeiro e de capitais.

Tony Volpon* - A tipologia da crise

- Valor Econômico

Quando a fase aguda da crise passar, seremos forçados a retomar a agenda fiscal ainda incompleta

Crises financeiras e econômicas infelizmente não são novidades. Podemos dizer que há uma tipologia de crises, com distintas fases. A razão para isso é institucional e não muda: a natureza do ser humano.

Vou usar alguns dados recentes dos estrategistas e economistas do UBS para ilustrar em que fase estamos na crise atual - que é, certamente, a maior desde 2008 e que deve ultrapassá-la em severidade e consequências. Farei, ao longo do desenvolvimento do meu raciocínio, comparações com a crise de 2008, assunto que eu discuto extensivamente no meu livro.

Primeiro, alguma coisa ruim acontece, mas é desprezado pelos mercados. Em 2007, foram os primeiros sinais de estresse em alguns fundos com exposição alavancada em instrumentos derivativos ligados ao mercado de dívidas imobiliárias. Na crise atual, o início da epidemia no centro da China.

Em seguida, há algum reconhecimento do problema, mas ainda com relativo desprezo, normalmente ligado à ideia de que o problema pode ser contido facilmente. Em 2007 e 2008, muitos argumentavam que o problema do setor imobiliário se resumia a certos exageros em alguns mercados locais, sem consequências nacionais ou macroeconômicas. Na crise atual, a crença que a nova epidemia era um fenômeno que ficaria restrito à China.

Eliane Cantanhêde - Mandetta à equipe: ‘No meio do caminho, uma pedra’

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro nas ruas foi forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha, e enviou poema de Drummond a sua equipe

O presidente Jair Bolsonaro aproveitou o domingo para exercitar sua birra contra o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que na véspera alertou: “Se o sr. for para metrô ou ônibus em São Paulo (como chegou a dizer em entrevista), vou ser obrigado a criticá-lo”. Ao que o presidente rebateu: “E eu vou ter que te demitir”.

Como não havia logística para ir a São Paulo ontem, Bolsonaro decidiu fazer o teste no Distrito Federal mesmo, indo a padarias, mercadinhos, fazendo até fotos com criança. Evidentemente, uma forma de provocar a queda do ministro, mas Mandetta não caiu na armadilha.

A atitude do presidente foi considerada “óbvia”, um pretexto para a exoneração – que, aliás, provocaria um efeito dominó no Ministério da Saúde. Assim, Mandetta se recolheu, pedindo paciência à equipe com um poema de Carlos Drummond de Andrade: No Meio do Caminho. Resta saber o que o ministro dirá na coletiva de hoje à tarde, além de pedir desculpas à mídia. Na guerra contra o coronavírus e a morte, ela é a sua grande aliada.

Denis Lerrer Rosenfield* - A pandemia, o sentido da vida e a política

- O Estado de S. Paulo

Discursos demagógicos não têm efeito sobre os cidadãos, que sentem a ameaça próxima

A pandemia, o isolamento e o medo põem questões que vão mais além das relativas a como levar uma vida “normal”, por produzirem indagações sobre o próprio sentido da vida.

Em situações normais, as pessoas estão preocupadas com as atividades profissionais e domésticas, tal como acontecem no dia a dia. Preocupações básicas são as que regem este tipo de condição: a renda, a escola das crianças, a sociabilidade profissional e a familiar, o amor, a amizade, o ir às compras. Já em situações como esta que estamos vivendo, as preocupações são de outra ordem: a doença, o medo da morte, a possível falta de mantimentos, a manutenção do emprego, a redução da renda, o isolamento, a pergunta pelo amanhã.

Uma analogia possível é com a condição de guerra. Nesta, a saída abrupta da normalidade é imediatamente sentida: a existência humana é mostrada em sua fragilidade, a emergência toma conta do dia a dia. A morte abrupta surge para cada um como uma realidade, seja ela militar, seja civil. No entanto, os sentimentos e emoções daí resultantes não são necessariamente os mesmos, pois as pessoas não se isolam, mas vêm a cumprir uma função social junto ao Estado, sob a forma da defesa da pátria. A morte ganha, nesse aspecto, sentido.

Marcus André Melo* - Razões da desordem

- Folha de S. Paulo

Se a quarentena for bem sucedida, o presidente alegará que houve histeria; se fracassar, que gerou o caos

A crise sanitária move as placas tectônicas da política no país, afetando tanto seu conteúdo substantivo (a agenda) quanto a forma (estilo de governança). A pandemia vertebra a disputa política em torno de uma nova dimensão: como lidar com a emergência sanitária e suas consequências econômicas. A agenda pública torna-se monotemática. Saem de cena as questões que levaram à ascensão de Bolsonaro: corrupção, segurança pública e guerras culturais.

A forma também muda: já não há lugar para o estilo adversarial de governar. A retórica não desaparecerá, mas sua eficácia se reduzirá brutalmente. Estratégias de culpabilização e confronto terão claros retornos decrescentes. O senso de emergência produzido por uma ameaça avassaladora aumenta a demanda por lideranças que tenham capital moral e capacidade para coordenar ações e construir consensos na sociedade em geral e na comunidade de especialistas. A popularidade das lideranças políticas tende a crescer em toda parte em situações de guerra ou ameaças externas —fenômeno conhecido no jargão como "rally round the flag" (união pela pátria). Bolsonaro, no entanto, passou a ser visto ele próprio como ameaça.

Celso Rocha de Barros* - O presidente mandou o Brasil morrer

- Folha de S. Paulo

É até difícil interpretar o que Bolsonaro tinha em mente quando foi à TV

Parecia que tinha dado certo. Na segunda-feira passada, Bolsonaro deu sinais de que passaria a apoiar o esforço dos governadores contra a pandemia. Houve alguma liberação de recursos, que não foi grande, mas foi um bom começo. Parecia que alguém tinha conseguido convencer o presidente da gravidade da situação.

Mas é o Jair.

Na terça-feira, o presidente da República foi à TV para matar gente. Voltou a dizer que a Covid-19 era só uma “gripezinha” e mandou a população voltar às ruas. Mentiu como sempre e como nunca. Mandou para a morte o grande número de idosos que ainda acredita nele. Nos dias seguintes, obrigou o ministro da Saúde, que vinha fazendo um bom trabalho, a se tornar cúmplice de seus crimes, para que nunca pudesse denunciá-los. Mandetta voltou atrás no pronunciamento de sábado, mas não se sabe o tamanho do dano que já tinha sido feito. Muita gente voltou às ruas.

A essa altura, é até difícil interpretar o que o presidente tinha em mente quando foi à TV para matar gente. Talvez tenha sido só sociopatia: talvez ele simplesmente não compreenda que a vida dos outros mereça consideração. Talvez tenha se inspirado em Trump, que vem discursando a favor da volta ao trabalho —sem data marcada, após estudos, e com a manutenção do isolamento por enquanto. Note-se que até o ideólogo Steve Bannon defende um isolamento forte que permita uma saída rápida da crise. Talvez os brasileiros morram porque o presidente da República assiste a vídeos ainda mais toscos que os de Bannon no YouTube.

Vinicius Mota - Esqueçam o dinheiro

- Folha de S. Paulo

É inútil emitir toneladas de moeda se falta capacidade de fazer e entregar

A ilusão do dinheiro funciona muito bem em tempos normais. Espalha seu encanto por toda a parte. Enfeitiça as mentes, que acreditam no poder de um pedaço de papel, ou de uma cifra impressa na tela, de se transformar em produtos e serviços, como passe de mágica.

Quando chega o furacão, na forma de uma guerra ou de uma epidemia, às vezes ela atrapalha. Está atrapalhando agora. O que importa nessas situações de mobilização são as pessoas e as coisas estarem disponíveis no momento certo, não valores monetários abstratos.

De quantos respiradores mecânicos vamos precisar? De quantos leitos hospitalares? De que volume de máscaras e luvas descartáveis? Testes para detectar a doença? Equipes para buscar infectados? Instalações de isolamento? De quantos profissionais de saúde necessitaremos?

Leandro Colon – Isolamento político

- Folha de S. Paulo

Não há uma figura de alto calibre do governo que abrace o discurso de menosprezo

Contra o confinamento social, Jair Bolsonaro se meteu em um isolamento político, como reforçam o tom da entrevista do ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde), no sábado (28), e as declarações do vice, Hamilton Mourão, à Folha.

Não há uma figura de alto calibre do governo que abrace o discurso de menosprezo à pandemia. Nem mesmo o ministro Paulo Guedes, em pânico pelos efeitos do coronavírus na economia, tem feito pouco caso.

É indefensável o gesto do presidente neste domingo (29) em passear pelo comércio de Brasília, conversar com pessoas e, pior, causar aglomeração, foco de contaminação.

O coronavírus já havia ainda mais afastado o Legislativo do Planalto. Os panelaços diários pelo país indicam um desgaste popular, apesar de o presidente manter sob sua rédea uma parcela fiel e significativa do eleitorado da disputa de 2018.

O temor em perder apoio de empresários e de trabalhadores autônomos levou o chefe da República a endurecer o discurso e defender a abertura do comércio e de escolas.

O que a mídia pensa - Editoriais

Quem tem juízo e quem não tem – Editorial | O Estado de S. Paulo

Para Bolsonaro, não importa preservar a economia ou as vidas dos cidadãos; a única coisa que interessa é salvar seu governo e, principalmente, sua imagem

Os líderes do G-20, grupo das principais economias do mundo, anunciaram uma injeção da ordem de US$ 5 trilhões na economia global para enfrentar os impactos da pandemia de covid-19. “O G-20 se compromete a fazer o que for necessário para superar a pandemia”, informou o grupo em nota oficial. No comunicado, o G-20 se diz “determinado a não poupar esforços, individual e coletivamente, para proteger vidas; salvaguardar empregos e a renda das pessoas; restaurar a confiança, preservar a estabilidade financeira, estimular a recuperação e o crescimento econômico; impedir a interrupção do comércio e da cadeia global de suprimentos; ajudar todos os países carentes de assistência; coordenar ações nas áreas financeira e de saúde pública; e combater a pandemia”.

Na reunião, feita por teleconferência, todos os líderes do G-20 tiveram alguns minutos para comentários. O presidente Jair Bolsonaro usou seu tempo para defender medidas para estimular a economia e destacar os supostos progressos no desenvolvimento de uma droga à base de hidroxicloroquina para conter o novo coronavírus – cujas pesquisas, a despeito do otimismo de Bolsonaro, estão ainda longe de ser conclusivas.

Música | Zeca Pagodinho - Vivo Isolado do Mundo

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - O amor antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o amor antigo, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.