Outubro ganhou especial significado com a filiação de Marina Silva ao PSB e o anúncio de que se estava ali a celebrar uma aliança política de novo tipo, com a qual se alteraria o rumo da política nacional. Por agregar duas personalidades crescidas no perímetro desenhado pelo PT ao longo das últimas décadas, a anunciada aliança pareceu prejudicar mais a candidatura governista que a oposicionista. Lula, com sua conhecida sagacidade, referendou a impressão ao dizer que recebia o anúncio da nova chapa como se fosse "um golpe no fígado" - frase que expressou uma decepção e uma confissão de que algo abalara o equilíbrio do lutador.
Os dias que se seguiram, porém, mostrariam que tudo ficaria desequilibrado. A inesperada aliança desorganizou o que parecia organizado e cercou de incertezas a disputa eleitoral de 2014. As pesquisas seguiram iguais, mas cálculos e discursos foram calibrados, especulações passaram a privilegiar outros cenários. Uma pergunta ganhou o palco: a aliança Eduardo Campos-Marina Silva terá gás, conteúdo e envergadura suficientes para mudar um jogo que parecia predefinido e assentado na polarização PT x PSDB?
A nova coligação pegou os políticos de calças curtas, desinteressados de buscar novos recursos programáticos e retóricos de campanha, acomodados no velho ramerrame de uma polarização que soa à opinião pública como eco antecipado do que já se conhece: a mesmice, o artificialismo e a inocuidade de um discurso político saturado. Diante de uma proposição que fala em "terceira via" e em "despolarizar" o ambiente, todos tiveram de retocar a maquiagem e se preocupar com o que falarão daqui para a frente.
Esse é o principal efeito, que se afirmará mesmo que Eduardo e Marina não digam nada de especial e venham a naufragar amanhã. Se antes ambos surgiam como coadjuvantes de uma nova corrida entre PT e PSDB, agora, unidos, invertem a situação: tornam-se protagonistas com razoável poder de fogo, quer para incomodar, forçar um distinto desfecho para o embate ou oferecer aos eleitores uma perspectiva de futuro.
O PSDB vem perdendo força e vigor já faz tempo. Tem pouca voz, quando comparado com anos anteriores. Pode ser recriado e readquirir vitalidade? Pode, mas não será fácil, pois a dinâmica eleitoral e as disputas que ela criará não favorecerão isso no curto prazo. Há excesso de espuma no partido, muitos atritos e desentendimentos, que travam uma retomada vencedora e a incorporação de ideário mais progressista, mais afinado com a social-democracia.
Um segundo mandato de Dilma Rousseff, por sua vez, tenderá a abrir em Brasília uma estrada de acomodação em direção ao centro, seja porque o arsenal de ideias do PT está com estoque baixo, seja porque o preço que terá de ser pago para garantir Dilma II travará qualquer reformismo que vier a ser cogitado.
Ambos os partidos - carne da mesma carne, em boa medida - estão a pagar um preço alto pela teimosia em se hostilizar reciprocamente. Funcionam como espelhos um do outro. Compõem-se com o que há de mais atrasado na cena política e ao fazerem isso deixam de combater o arcaísmo sociocultural, que em princípio deveria ser seu pior pesadelo.
Eduardo e Marina terão de mostrar nos próximos meses que podem ser um vetor alternativo. Terão de explicitar ideias, propostas, projeto e, sobretudo, convencer o eleitor de que um novo modo de fazer política e governar é de fato possível, mantidas as atuais regras do jogo. Ocuparão espaço crescente se conseguirem demonstrar que os governos anteriores (FHC, Lula, Dilma) - sem consciência de que faziam isso e sem articulação alguma entre eles - cumpriram um roteiro de realizações que precisam ser preservadas e que modelaram uma sociedade mais complexa e exigente, a qual deseja política e políticos melhores.
O surgimento de um terceiro polo de postulação democrática poderá ajudar a que emerja um debate mais qualificado e sereno entre vertentes de esquerda moderada, cada qual com sua marca, suas virtudes, seus pecados e seus compromissos. Encerrará um ciclo em que o neoliberalismo funcionava, na retórica política, como um bicho-papão, o metro que se empregava ou para justificar opções "modernas" favoráveis ao mercado, ou para atacar os adversários de uma esquerda autoconcebida como imune ao mercado. Por ter sido assim tratado no plano discursivo, o neoliberalismo não pôde ser enfrentado e derrotado na prática, dificultando a superação dialética das conquistas do período Lula e FHC.
Resta saber como o sistema assimilará a novidade. Depois da "minirreforma eleitoral", o cenário é desolador.
Há riscos e perigos no horizonte. Marina, Eduardo, PSB e Rede terão de mostrar que estão à altura da situação que criaram, aparar suas diferenças e avançar de fato em termos de definição programática. Precisarão modular as tentações personalistas e messiânicas, fazer que suas diferenças ajudem a fortalecer a unidade pretendida. Somente assim conseguirão atrair, por exemplo, os 20 milhões de votos obtidos por Marina em 2010.
E há, por fim, o perigo maior: o de a aliança não se traduzir institucionalmente, isto é, não ganhar densidade como ator político qualificado para vencer e governar. Nesse caso, flutuará como folha ao vento, atrairá eventuais desgarrados políticos sem encarnar numa criatura confiável, que traga consigo uma pedagogia democrática, desative a descrença na política, interpele o fascínio juvenil pela violência e cimente outro patamar de políticas públicas.
Se tais riscos forem contornados, a aliança tenderá a galvanizar parte importante do eleitorado. Poderá articular as elites políticas e as correntes democráticas mais expressivas em torno de um projeto de País, dando agenda e representação às ruas. Porque as ruas não estão em silêncio, não deixaram de se movimentar e deverão fazer ouvir sua voz mais à frente.
Professor Titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
Fonte: O Estado de S. Paulo