sábado, 13 de junho de 2020

Opinião do dia - Luiz Fux*

A missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

*O ministro Luiz Fux, Vice- presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), expediu liminar para disciplinar regras de atuação das Forças Armadas conforme a Constituição, O Estado de S. Paulo,12/06/2020;

Ricardo Noblat - Um governo campeão de afrontas ao Supremo Tribunal Federal

- Blog do Noblat | Veja

A normalização da insanidade

Se concordassem com o que disse o ministro Luiz Fux, o próximo presidente do Supremo Tribunal Federal, a respeito do papel das Forças Armadas, o presidente Jair Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa Fernando Azevedo estariam dispensados de se manifestar. Não foi o que fizeram.

Em nota divulgada ontem à noite, os três disseram que as Forças Armadas não cumprem “ordens absurdas” como a tomada de poder, mas que também não aceitam julgamentos políticos que levem à tomada de poder “por outro poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”.

Bolsonaro voltou a afirmar que lembra “à Nação Brasileira que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República” e que “as mesmas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Horas antes, Fux expediu liminar para disciplinar regras de atuação das Forças Armadas à luz da Constituição. Disse que o poder de “chefia das Forças Armadas é limitado” e que não há margem para interpretações que permitam sua utilização para “indevidas intromissões” no funcionamento dos outros Poderes.

Merval Pereira - Mais iguais

- O Globo

Não há mais caminho na Constituição para a interpretação intervencionista. Mas, claro que sempre é possível um golpe militar

O papel das Forças Armadas na nossa democracia continua dando assunto para o debate político, e o Supremo Tribunal Federal (STF), o intérprete definitivo da Constituição, se pronunciou novamente ontem através do ministro Luis Fux, que assumirá a presidência da Corte em setembro.

Respondendo a uma consulta do PDT, Fux disse, entre outras coisas: “A chefia das Forças Armadas é poder limitado, excluindo-se qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes, relacionando-se a autoridade sobre as Forças Armadas às competências materiais atribuídas pela Constituição ao Presidente da República”.

Há, no entanto, quem tema que “esse famigerado artigo 142 ainda vai dar pano para manga”, como o historiador José Murilo de Carvalho, da Academia Brasileira de Letras. Ele escreveu um belo artigo recentemente no Globo fazendo um apanhado histórico do papel das Forças Armadas nas constituições brasileiras, onde ressaltou que desde 1891 existe a definição delas como “garantidoras dos poderes constitucionais”, aspecto que considera “ a justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua intervenção”.

José Murilo me mandou um acréscimo de suas pesquisas sobre as FA nas constituições da Argentina, Uruguai e Chile, as outras três ditaduras da América do Sul, onde ele vê um “abismo de distância”. Nossos vizinhos, de fato, não definem um papel para as Forças Armadas. A Constituição argentina de 1994 diz apenas, em seu artigo 99: “O Presidente da República é o comandante-chefe das forças armadas da Nação”. A do Chile, de 2010, diz que “As FA dependem do Ministério da Defesa e “existem para a defesa da pátria e são essenciais para a segurança nacional”. A do Uruguai, de 1997, define: “O presidente da República tem o mando supremo de todas as Forças Armadas”.

Míriam Leitão - O louco que nos governa

- O Globo

O país já está anestesiado pelas atrocidades diárias do presidente da República. Ainda assim tomou um susto com a criminosa atitude de estimular pessoas à invasão de hospitais. Isso é crime contra a saúde pública, é perturbação da ordem e incitação à prática de ilícitos. Coloca em risco pacientes, médicos e a população. Os seguidores do presidente podem seguir a proposta e executar tal desatino. Ele avisou que encaminhará os vídeos que receber à Polícia Federal. Se o fizer, será denunciação caluniosa. O negacionismo de Bolsonaro levou-o à loucura. Um louco nos governa.

Vamos olhar as leis. O código penal estabelece o crime de pôr em perigo a saúde de outrem (artigo 132), violação de domicílio (150) , infração de medida sanitária (268), incitação ao crime (286). Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de utilidade pública (265). Na lei de abuso de autoridade, o artigo 22 estabelece que é crime “invadir ou entrar astuciosamente ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio”, no artigo 25, obter provas, em procedimento de investigação ou fiscalização, de forma ilícita. Essa lei prevê o ato de cometer crime por meio de terceiros. Na lei das contravenções penais, artigo 42: “perturbar alguém, o trabalho, ou o sossego alheios, com gritaria ou algazarra”.

Para entrar em um hospital, em qualquer momento, é preciso apresentar documentos, passar pela segurança, saber se a pessoa pode receber visita, lavar as mãos, passar álcool gel, respeitar as restrições. Numa pandemia, todos esses cuidados aumentam. Se é crime invadir um hospital em períodos normais, imagine no meio de uma pandemia. Os governadores do Nordeste em carta o chamaram de inconsequente.

Ascânio Seleme - O golpe impossível

- O Globo

Em “Como as democracias morrem”, o autor Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade de Harvard, aponta quatro indicadores que definem líderes que resolvem adotar este caminho

Em “Como as democracias morrem”, o autor Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade de Harvard, aponta quatro indicadores que definem líderes que resolvem adotar este caminho. Primeiro, eles rejeitam as regras democráticas e constitucionais; em seguida, tentam restringir as liberdades civis de rivais políticos e da imprensa; depois, negam a legitimidade de opositores; e, finalmente, encorajam ou toleram a violência. Jair Bolsonaro se encaixa nos quatro, segundo o próprio Levitsky em entrevista ao “Correio Braziliense”. O problema é que ele não tem as ferramentas indispensáveis para tocar estes indicadores adiante. Faltam-lhe apoio popular e maioria no Congresso.

Pela via institucional, Bolsonaro não conseguiria subverter a ordem democrática. Não aprovaria um reforma do Judiciário, por exemplo, para construir um Supremo ao seu gosto. Não aprovaria uma reforma política para reestruturar os partidos de acordo com suas ideias. E sequer conseguiria discutir uma reforma administrativa por não ter o aval dos servidores, embora disponha de mais de 20 mil cargos de livre nomeação que já distribuiu entre aliados, sobretudo militares (das Forças Armadas, das PMs e dos Bombeiros) e seus familiares. Sem apoio popular ele também não prosperaria. Nem o cercadinho do Alvorada Bolsonaro conseguiu manter intacto. Outro dia ouviu-se dali uma mulher dizer que ele traiu a nação.

Daniel Aarão Reis - Um governo em cuecas

- O Globo

Um governo paranoico, que será capaz de tudo para evitar ou impedir o pleno funcionamento da democracia

Disse o mais nervoso: “perseguem a mim e a minha família”. Ecoou um segundo: “tô levando bordoada e correndo risco... podemos perder este país... nenhum de nós vai se dar bem se perdermos o país”. Uma terceira voz acompanhou: “nossos valores estão sob risco... em 30 anos, trata-se da maior violação dos direitos humanos”. Um mais velho, cabelos brancos, de quem se poderia esperar mais serenidade, não ficou atrás: “somos diferentes deles, por valores... é tiro, porrada e bomba... botamos a granada no bolso do inimigo... não vamos perder o rumo, não podemos perder o rumo”. Reclamou um quinto dos controles: “o tribunal... é uma usina de terror... se faz alguma coisa — tá arriscado a ir para a cadeia”. “É que a mídia é enviesada, joga medo”, completou mais um. “Eu matava ou morria... acabo na cadeia”, exclamou um outro. O líder da reunião fechou a rodada: “querem a nossa hemorroida e a nossa liberdade, que vocês saiam da toca, que se exponham, não podem deixar que eu leve porrada sozinho, que o povo se arme...” e exclamou, épico: “um povo armado jamais será escravizado”.

Parecia uma reunião de alguma organização política clandestina, prestes a ser destruída por forças poderosas. Nada disso, era o governo de uma república por nome Brasil que fazia uma reunião de ministros de Estado para discutir um plano de desenvolvimento. Aconteceu há menos de dois meses, e a reunião, secreta, acabou divulgada pelos meios de comunicação.

Centrão aumenta perigo fiscal das pautas-bomba – Editorial | O Globo

Pelo menos 110 projetos de lei, parte redigida pela nova base de Bolsonaro, atentam contra a recuperação

A crise econômica de grandes dimensões que começa a ser detectada por diversos indicadores pode ser potencializada por vários projetos de lei apresentados ao Congresso que o governo precisará rejeitar. Caso contrário, a recuperação, se vier, será lenta e insuficiente para restabelecer empregos e salários varridos pela recessão que se inicia, e não conterá os estragos sociais e políticos que acompanham este tipo de debacle.

Estas propostas são chamadas de pautas-bomba porque, formuladas sem qualquer preocupação com a administração responsável dos gastos públicos, também não consideram uma definição de prioridades que leve em conta interesses da maior parte da população, podendo agravar problemas que a própria crise já torna mais sérios. O perigo potencial desta agenda explosiva já começou a aumentar porque o governo, como no resto do mundo, é forçado a expandir suas despesas em imprescindíveis programas de emergência — no bônus para os informais, na ajuda às pequenas empresas etc., e preveem-se pressões para transformar gastos emergenciais em perenes.

Vista pelo ângulo político, a situação é também preocupante, porque o Planalto atraiu para sua base partidos do centrão (PP, PL, PSD, PTB e outros), que carregam a marca da fisiologia, do toma lá dá cá. E, segundo levantamento do site VirtuNews, feito em parceria com o CLP - Liderança Pública, dos pelo menos 110 projetos de lei que tramitam no Congresso classificados como pautas-bomba, 45% deles (49) foram apresentados por este grupo de partidos.

Hélio Schwartsman – O parque dos enjeitados

- Folha de S. Paulo

Talvez as próxima gerações aprendam que, olhando de perto, não existem heróis

Alguns leitores criticaram minha coluna de sexta-feira (12) sobre racismo e a derrubada de estátuas, afirmando que existe uma diferença entre apagar a história e deixar de celebrar certas figuras à luz de mudanças nos valores da sociedade. A segunda atitude, ao contrário da primeira, é defensável.

Não poderia concordar mais. Quem se der ao trabalho de voltar a meu escrito verá que tomei o cuidado de não defender figuras como Edward Colston, que parece ter sido principalmente um traficante de escravos que enriqueceu e fez caridade, ou os generais confederados, mencionando só Colombo e Churchill.

Nenhum dos dois entrou para o clube dos heróis estatuáveis pelas ideias que defenderam, mas por feitos mais específicos, respectivamente a “descoberta” da América e a liderança dos britânicos durante a Segunda Guerra.

Julianna Sofia – Múltipas bizarrices

- Folha de S. Paulo

Quanto mais erros, mais Weintraub amplia apoio de radicais

Buscou-se um desfecho simbólico —não por isso menos vexatório ou inócuo— para a presepada em torno da medida provisória que dava poderes ao ministro Abraham Weintraub (Educação) para nomear, sem eleições, os reitores de universidades federais durante a pandemia. Equivocado no nascedouro por patente inconstitucionalidade (violação da autonomia universitária), o ato foi revogado pelo Palácio do Planalto.

Após sua edição, a MP fora criticada pela cúpula do Legislativo, por parlamentares e pela comunidade acadêmica. O episódio provocou reações de partidos políticos, que recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para derrubar a medida, além de gerar ruído em votações importantes no Senado.

Demétrio Magnoli* - Um retângulo vazio

- Folha de S. Paulo

Pela esquerda ou pela direita, país não dá a mínima para a educação pública

O plano de Doria saiu há 18 dias, com cinco colunas descrevendo as fases de reabertura de São Paulo e 15 linhas elencando previsões de reativação de cada atividade.

Lá no fim, na linha educação, um retângulo vazio indica a ausência de previsão de retomada de aulas presenciais. Escolas, só depois de indústrias, escritórios, shoppings, igrejas, parques, restaurantes, bares, passeatas e futebol. A história se repete, Brasil afora. A educação foi catalogada oficialmente como a mais supérflua das "atividades não essenciais". Weintraub é a cara da elite governante nacional.

Ciência? Um artigo publicado na Lancet (https://bit.ly/30sNBeN), revisando diversos estudos internacionais, conclui pela falta de evidências de que o fechamento de escolas seja efetivo contra a Covid-19, cujo comportamento epidêmico é o oposto daquele da gripe: o coronavírus tem alta transmissibilidade mas incidência muito menor em crianças. Experiência? Na Europa, 22 países reabriram as escolas no ponto de partida da flexibilização, seis a oito semanas atrás, seguindo restrições sanitárias, sem gerar focos significativos de contágio.

A esquerda enxerga a escola pelos óculos do sindicalismo (remunerar professores), enquanto a direita a vê pelos olhos do mercado (fornecer mão de obra).

Manobra canhestra – Editorial | Folha de S. Paulo

Corretamente devolvida, MP que mudava nomeação de reitores soava a intervenção

Acertou o presidente do Senado e do Congresso, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ao devolver sem votação da Casa a medida provisória 979, que daria ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, o poder de nomear reitores e vice-reitores de universidades e institutos federais durante a pandemia.

Tão logo se tornou público, o texto foi tachado de inconstitucional pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Consta da Carta de 1988 que as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial.

A premissa da MP era que o distanciamento social impediria o processo, previsto em lei, de escolha de dirigentes das instituições federais de ensino por meio de consulta interna e formação de lista tríplice. Ao governo caberia, de acordo com a propositura, nomear líderes enquanto as atividades presenciais estiverem suspensas.

O MEC ignora ou finge ignorar que tais procedimentos têm sido mantidos virtualmente durante o período de quarentenas.

Eros Roberto Grau* - O Itamarati, para sempre!

- O Estado de S.Paulo

O restaurante que encantou minha juventude me emociona sem parar

Começo a escrever estas linhas relembrando a canção que afirma ser “sempre bom lembrar coisas passadas”. A superposição do passado e do presente leva-me de repente ao Itamarati, que lá estava, na Rua José Bonifácio 270, desde os anos 40! O restaurante que encantou minha juventude e me emociona sem parar estará inserido no meu futuro. O tempo não existe, em razão do que estivemos, estamos, estaremos todos eternamente juntos.

Ponho-me a escrevê-las, de um lado, porque desejo libertar-me da aflição que suporto por conta da superposição entre afirmações de políticos membros da “corona” e a epidemia do coronavírus. Os primeiros, a gritar que a saúde não vale nada – em latim, sanitas tua potius nulla erit. A pandemia de covid-19 seria, para eles, mera ficção! De outro lado, escrevo-as, estas linhas, transtornado pelo que leio num texto do José Rogério Cruz e Tucci – Sinal dos tempos: o apagar das luzes do velho Itamarati – dando notícia do fechamento do nosso Itamarati.

Vencendo o tempo volto a lá estar com amigos que ainda por aqui estão e alguns que já se foram para o Céu. Michel Temer, Sergio e Renato Mange, Edmur Andrade Nunes Pereira Neto, Erasmo Valadão Novaes França, Luiz Antônio Sampaio Gouveia, Luiz Eduardo Lopes da Silva, Erasmo de Boer, Luiz Antônio Ferreira de Castilho, José Rogério et caterva.

João Gabriel de Lima - Somos Bangcoc, não Paris

- O Estado de S.Paulo

Vivemos em guetos. Moradias de um lado, empregos do outro. Pobres de um lado, ricos do outro

Caçadores de androides ziguezagueiam entre arranha-céus, em seus carros voadores. Telões trepidantes iluminam gente amontoada entre barracas de espaguete. Anos atrás, quando pensávamos no futuro das cidades, uma imagem recorrente era a bagunça urbana do filme Blade Runner, de Ridley Scott – tirando, claro, a parte dos androides (os carros voadores continuam sendo um sonho...).

Não fosse o coronavírus, estaríamos todos, a esta altura de junho, falando sobre as eleições municipais. E discutindo o futuro de nossas cidades. Mas será que pandemia e metrópoles não podem ser parte da mesma conversa?

Um programa de debates na TV francesa defendeu que as cidades poderão sair até melhores da era do coronavírus. Mais gente trabalhando de casa. Menos trânsito. A prefeitura de Paris aproveitou a quarentena para aumentar o número de ciclovias. A realidade aqui no hemisfério sul, no entanto, está mais para Blade Runner mesmo.

Metrópoles – como explica o economista Edward Glaeser, professor de Harvard, em seu clássico O Triunfo da Cidade – são, antes de tudo, pontos de encontro. De pessoas, culturas, negócios. Mas as metrópoles brasileiras, ao contrário das europeias, ainda não fizeram a lição de casa do encontro – ou adensamento, na linguagem dos urbanistas. Adensar significa que residências, escritórios e serviços devem conviver nos mesmos espaços — como em Paris. Em vez disso, vivemos em guetos. Moradias de um lado, empregos do outro. Pobres de um lado, ricos do outro. A fazer a ponte entre tais universos, sistemas de transporte abarrotados e falidos.

The Economist: Jair Bolsonaro ameaça a democracia?

- The Economist, O Estado de S.Paulo

Desde que assumiu o governo, em janeiro do ano passado, muitos brasileiros temem o risco que ele representa

Em muitos fins de semana desde que a covid-19 chegou ao Brasil, os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro realizam manifestações em Brasília e São Paulo, para demandar a reabertura da economia, parcialmente submetida a um lockdown, o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e o retorno do regime militar dos anos 1964/1985. Alguns estão armados. Em Brasília, Bolsonaro com frequência se junta a eles, distribuindo abraços e apertos de mão e desafiando as regras de saúde estabelecidas. Nem ele e nem as pessoas usam máscaras no rosto.


Desde que Bolsonaro, antigo capitão do Exército com ideias de direita, assumiu o governo, em janeiro de 2019, muitos brasileiros temem a ameaça que ele representa para a democracia. Alguns argumentam que as instituições do País são fortes o bastante para freá-lo. Na verdade, o presidente lotou o seu governo com oficiais militares. Mas eles são vistos como tendo uma influência moderadora e as manifestações são pequenas.

As tensões aumentaram nas últimas semanas. Bolsonaro se tornou mais ameaçador, ao se dirigir ao Congresso afirmando que “o tempo da vilania acabou, agora é o povo no poder”, e ao Poder Judiciário dizendo “acabou, porra!”. Alguns ministros militares, a começar pelo vice-presidente Hamilton Mourão, general aposentado, também fizeram ameaças veladas contra o STF, o Congresso e a mídia.

Em uma mensagem pelo WhatsApp vazada no mês passado, o ministro do STF Celso de Mello escreveu: “temos de resistir contra a destruição da ordem democrática para evitar o que ocorreu na República de Weimar “que foi derrubada por Hitler”. “A democracia brasileira está sob uma grave ameaça”, diz Oscar Vilhena Vieira, diretor da faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “O presidente não vem tentando apenas criar um conflito institucional, mas também estimulando grupos violentos”.

Falsa simetria – Editorial | O Estado de S. Paulo

Fala do procurador-geral Augusto Aras no julgamento da ação que questiona inquérito do STF revela confusão entre fake news e jornalismo profissional

No julgamento da ação que questiona o inquérito das fake news e ameaças contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que as pessoas precisam “ter mais cuidado na leitura das notícias” para não acreditarem em fake news. Segundo Aras, as notícias falsas não estão apenas em blogs ou em redes sociais. A fala do procurador-geral da República revela uma enorme confusão sobre o que são as fake news e o que é o jornalismo profissional. O caso é especialmente grave tendo em vista que o tema se relaciona diretamente com os direitos e liberdades fundamentais, e a missão institucional do Ministério Público é a defesa da ordem jurídica e do regime democrático.

“Sabemos que esse fenômeno maligno das fake news não se resume a blogueiros ou às redes sociais. Ele é estimulado por todos os segmentos da comunicação moderna, sem teias, sem aquele respeito que a minha geração aprendeu a ler o jornal, acreditando que aquilo era verdade”, disse Augusto Aras. “Temos que hoje ter mais cuidado na leitura das notícias para fazermos um filtro fino para encontrar um mínimo de plausibilidade em relação a esta campanha de fake news, que não guarda limites de nenhuma natureza.”

Como se vê, segundo Augusto Aras, as fake news também são difundidas na imprensa, o que recomendaria cautela na sua leitura. O procurador-geral da República sugere “fazermos um filtro fino”. Ao falar assim, Aras revela desconhecimento sobre o significado de fake news. Elas não são apenas uma informação equivocada, contendo, por exemplo, algum conteúdo inexato. Fake news são mensagens falsas criadas e disseminadas deliberadamente com o objetivo de causar dano. É por isso que o material produzido pelo jornalismo profissional não tem nenhuma simetria com as fake news. Estas são, por sua própria essência, o antijornalismo.

O governo e as universidades federais – Editorial | O Estado de S. Paulo

MP devolvida é mais um capítulo da guerra do governo contra o ensino superior público

O governo voltou a ser derrotado na segunda tentativa de restringir, por meio de uma medida provisória (MP), a autonomia das universidades federais em matéria de consulta à comunidade acadêmica para a elaboração de listas tríplices para reitor. A primeira tentativa ocorreu no final de 2019, quando Bolsonaro baixou uma MP com esse objetivo. Mas, como não foi votada pelo Congresso em tempo hábil, ela caducou há alguns dias. A segunda tentativa se deu nessa quarta-feira, quando o presidente baixou uma nova MP com o mesmo objetivo. Mas, por não atender aos requisitos constitucionais da urgência e relevância, ela foi devolvida pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ao Executivo. De 1988 até agora, essa é a quarta MP devolvida.

Quando baixou as duas MPs, a que caducou e a que foi devolvida, o governo justificou a iniciativa - que na prática lhe dava a prerrogativa de escolher os novos reitores sem qualquer consulta - em nome do combate à crise de saúde pública. A alegação é que a pandemia de covid-19 impediria a presença física de professores, estudantes e funcionários nas votações. A justificativa não procede, pois as universidades federais há anos já realizam reuniões virtuais, para agilizar o processo decisório.

Na realidade, a MP que acaba de ser devolvida é mais um capítulo da guerra declarada pelo governo Bolsonaro contra o ensino superior público. Ela começou no ano passado quando, em audiência na Câmara, Weintraub acusou as universidades federais de serem “centros de drogas e balbúrdia”. Prosseguiu com o congelamento das verbas orçamentárias e tentativas de alterar o peso dos professores, alunos e funcionários na eleição das listas tríplices para reitor. Avançou quando o Ministério da Educação deixou claro que não escolheria os candidatos mais votados, caso não fossem “alinhados ao pensamento de Bolsonaro”. E culminou neste ano quando, em nome de um combate ao que as autoridades educacionais chamam de “doutrinação ideológica”, os Ministérios da Educação e da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações restringiram a concessão de bolsas para a área de humanidades.

Marcus Pestana - 1960, sessenta anos depois!

Hoje chego aos 60. Nunca pensei que isso aconteceria. Não porque achasse que morreria antes. Mas, o sonho da eterna juventude acalenta a todos nós. E logo no meio de uma pandemia, longe dos familiares e amigos.

Dia de Santo Antônio, não só casamenteiro, mas padroeiro da minha cidade, Juiz de Fora, que já se chamou Santo Antonio do Paraibuna.

Envelhecer é inexorável, muito a contragosto é verdade. Como sou um otimista na ação, procuro seguir o conselho de Picasso: “Quando me dizem que sou muito velho para fazer uma coisa, procuro fazê-la imediatamente”. Embora os limites físicos reais sabotem este plano diariamente.

1960 foi o ano da inauguração de Brasília. Finalmente ocuparíamos o Brasil profundo, coroando o Plano de Metas do presidente JK, o presidente bossa nova de um país feliz. O Brasil cresceu 9,4% no ano, a inflação era um pouco superior a 25%. Éramos 70 milhões de brasileiros, 45% nas cidades, 55% no campo. O país era jovem, 53% tinham até 19 anos. As desigualdades eram presentes, 20% viviam com renda até um salário mínimo e tínhamos 27,5% de analfabetos. Curiosamente, os primeiros resultados do Censo de 1960 foram anunciados no intervalo do clássico Flamengo versus Vasco, no Maracanã.

1960 foi o ano da eleição do carismático e promissor Presidente dos EUA, Jonh Fitzgerald Kennedy. Foi também o ano da eleição de Jânio Quadros, que renunciaria meses depois, desencadeando a crise pré-64. Nasceu Airton Sena, que tantas alegrias nos daria no automobilismo. A FDA americana, a ANVISA de lá, aprovou a primeira pílula anticoncepcional, importante passo na luta pela libertação feminina. Houve o espetacular assalto ao trem pagador, que renderia até filme, e Éder Jofre se tornou campeão mundial de boxe.

Em 1960, Ziraldo lançou a primeira revista em quadrinhos brasileira, a Turma do Pererê. A Portela foi campeã em conturbada apuração. A TV Record promoveu o primeiro Festival da Música Popular Brasileira, ganho pela “Canção do Pescador” de Newton Mendonça. Nelson Rodrigues publicou seu clássico “O Beijo no Asfalto”. Nas rádios as mais tocadas eram “Banho de Lua” com Celly Campelo e “A Noite do meu Bem” de Dolores Duran. A Bossa Nova fazia sucesso nas classes médias urbanas. No Brasil de 1960, apenas 38,54% das casas dispunham de energia elétrica, 35,38% possuíam rádio e apenas 4,6% tinham TV.

Ministro Ramos rechaça golpe militar, mas ressalta que 'outro lado' não pode 'esticar a corda'

General afirma a revista ter ido a ato contra o governo 'disfarçado' e confirma pretensão de ir para reserva

- O Globo

RIO - O ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, afirmou ser "ultrajante e ofensivo" dizer que as Forças Armadas vão dar um golpe militar no país, mas ressaltou que o "outro lado" não pode "esticar a corda". Ele afirmou ainda não haver motivos para se cogitar um processo de impeachment no Congress ou afastamento do presidente Jair Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ramos, que é general da ativa, afirmou em entrevista à "Veja" publicada nesta sexta-feira que esteve "disfarçado" na manifestação contra o racismo e o governo, em Brasília, no último domingo, e confirmou que depois de ter sido criticado por outros militares de alta patente por sua participação em um ato ao lado de Bolsonaro no mês passado, vai pedir a aposentadoria das Forças Armadas.
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"É ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda", disse. O ministro se mostrou assustado com as faixas de protesto na manifestação com acusações de fascismo ao governo Bolsonaro.

Confira outros trechos da entrevista:

Sobre impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão
"Acho que não vai acontecer, porque não é pertinente para o momento que estamos vivendo. O Rodrigo Maia (presidente da Câmara) já disse que não tem nenhuma ideia de pôr para votar os pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Se o Congresso não cogita essa possibilidade, o TSE que vai julgar a chapa irregular? Não é uma hipótese plausível".

Atos contra o governo
"Só há uma coisa que me incomoda e me desperta atenção. Um movimento democrático usando roupa preta. Isso me lembra muito autoritarismo e black blocs. Quando falo em democracia, a primeira coisa que me vem à mente é usar as cores da minha bandeira, verde e amarelo. No domingo, fiquei disfarçado no gramado em frente ao Congresso observando o pessoal. Eles não usavam vermelho para não pegar mal. Mas me pareceu que eram petistas".

Participação em ato pró-governo e reserva
"Fui muito criticado no dia seguinte pelos meus companheiros de farda. Não me sinto bem. Não tenho direito de estar aqui como ministro e haver qualquer leitura equivocada de que estou aqui como Exército ou como general. Por isso, já conversei com o ministro da Defesa e com o comandante do Exército. Devo pedir para ir para a reserva".

Entrevista | Luiz Eduardo Ramos: “É ultrajante dizer que o Exército vai dar golpe”

O chefe da Secretaria de Governo defende a tese de que não há motivos para pensar em um impeachment de Bolsonaro e anuncia sua passagem para a reserva

Por Thiago Bronzatto | Revista Veja

Ninguém percebeu, mas havia um ministro da equipe de Jair Bolsonaro infiltrado na manifestação contra o governo no último domingo em Brasília. E não era qualquer ministro. Luiz Eduardo Ramos, chefe da Secretaria de Governo, é quem controla as indicações para os cargos mais importantes, o responsável pela articulação política, o fiador da aliança com o notório Centrão e, por ser general da ativa, também desperta algumas teorias conspiratórias que serviram de mote para os protestos do fim de semana. De gorro, máscara e óculos escuros, Ramos ouviu bem de perto os gritos contra o presidente, assistiu às performances de combate ao racismo e diz ter se assustado com as faixas que traziam acusações de fascismo contra o governo. No mês passado, o general acompanhou Bolsonaro em um ato em frente ao Palácio do Planalto, onde apoiadores atacaram o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. A participação dele foi alvo de críticas e causou um tremendo mal-estar entre militares de alta patente. O ministro, por causa disso, anunciou que vai se aposentar das Forças Armadas. Em entrevista a VEJA, Ramos classifica as manifestações como legítimas, critica os ataques que são feitos ao presidente e confessa que a coisa que mais o deixa irritado é quando lhe perguntam sobre a possibilidade de golpe militar no Brasil.

Qual a possibilidade de um golpe militar no Brasil?

Fui instrutor da academia por vários anos e vi várias turmas se formar lá, que me conhecem e eu os conheço até hoje. Esses ex-cadetes atualmente estão comandando unidades no Exército. Ou seja, eles têm tropas nas mãos. Para eles, é ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda.

O senhor se refere a exatamente o quê?

O Hitler exterminou 6 milhões de judeus. Fora as outras desgraças. Comparar o presidente a Hitler é passar do ponto, e muito. Não contribui com nada para serenar os ânimos. Também não é plausível achar que um julgamento casuístico pode tirar um presidente que foi eleito com 57 milhões de votos.

O que seria um julgamento casuístico?

Um julgamento do Tribunal Superior Eleitoral que não seja justo. Dizem que havia muitas provas na chapa de Dilma e Temer. Mesmo assim, os ministros consideraram que a chapa era legítima. Não estou questionando a decisão do TSE. Mas, querendo ou não, ela tem viés político.

E se essa impugnação vier a acontecer?

Sinceramente, não vou considerar essa hipótese. Acho que não vai acontecer, porque não é pertinente para o momento que estamos vivendo. O Rodrigo Maia (presidente da Câmara) já disse que não tem nenhuma ideia de pôr para votar os pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Se o Congresso, que historicamente já fez dois impeachments, da Dilma e do Collor, não cogita essa possibilidade, é o TSE que vai julgar a chapa irregular? Não é uma hipótese plausível.

Forças Armadas não aceitam tentativas de tomada de poder, diz Bolsonaro ao comentar decisão de Fux

Presidente assina nota conjunta ao lado de vice e ministro da Defesa

Bruno Góes / O Globo

BRASÍLIA — Em nota assinada em conjunto com o vice Hamilton Mourão e o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, o presidente Jair Bolsonaro se manifesta sobre a decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux sobre o papel da Forças Armadas. No documento, eles afirmam que os militares "não aceitam tentativas de tomada de poder".

Fux concedeu nesta sexta-feira uma liminar declarando que as Forças Armadas não exercem poder moderador em eventual conflito entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. A decisão foi tomada em uma ação em que o PDT pediu para a Corte esclarecer as atribuições dos militares, de acordo com a Constituição Federal.

A nota de Bolsonaro, Mourão e Azevedo é dividida em quatro tópicos. No primeiro, há a lembrança de que, segundo o artigo 142 da Constituição, "as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República".

Logo em seguida, afirmam que "as mesmas destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem".

Bolívar Lamounier - Bolsonaro: seis por meia dúzia?

- Revista IstoÉ 

Vamos lá, capitão, mostre sua coragem! Visite um hospital, conheça o trabalho que o pessoal médico faz nas UTIs

Na eleição presidencial de 2018, dezenas de milhões de brasileiros optaram pelo voto útil mais inútil de nossa história. Queriam se livrar do PT, mas arranjaram Bolsonaro. Como escreveu o filósofo americano Andrew Peirce, todo problema é causado por soluções. Pelas vagas indicações programáticas feitas durante a campanha, é plausível que a emenda tivesse saído um pouco melhor que o soneto. Mas não saiu, por várias razões, entre as quais duas são óbvias. Primeiro, porque o coronavírus não estava a fim de cooperar. Ao contrário, está deitando e rolando. O brasileiro médio não se distingue por um sentimento acentuado de responsabilidade ou por uma disposição a colaborar. Adora aglomerações.

A segunda razão chama-se Jair Messias Bolsonaro. Ignorante, autoritário e irresponsável, ele parece passar o dia todo pensando “naquilo”: tumultuar o país, com uma indisfarçável intenção de arrastá-lo para um golpe militar. Ou seja, o Brasil, quando mais precisava de um líder sensato e apaziguador, tornou-se refém de um especialista em dividir e desorganizar. Se conhecesse um pouco mais de história, perceberia que o primeiro a ser defenestrado por um golpe será justamente ele, Jair Bolsonaro. Conseguirá ser nomeado para nossa embaixada (que no momento está fechada) em Vanuatu.

Marco Antonio Villa - Bolsonaro caminha para o golpe

- Revista IstoÉ

O presidente pouco se importa com os milhares de óbitos. Ou com os milhões de desempregados

A cada dia que passa as crises sanitária, econômica e político-institucional ficam ainda mais graves. O governo Bolsonaro não sabe como agir de forma coordenada. Na verdade, não há mais governo. O que existe de fato
é um grupo político tentando a todo custo sobreviver em plena conjunção das maiores crises — no tempo e em profundidade — da história do Brasil. Isto levará inevitavelmente a uma catástrofe, que será ainda maior quanto mais se postergar a abertura de um processo de impeachment.

Evidentemente que para dar este passo será necessária uma hábil articulação política na esfera congressual e — de acordo com o que é possível nesta situação de anormalidade que vivemos — mobilização popular que não se resume a atos públicos. Mas, é inegável — e os fatos diários reafirmam, especialmente nos últimos meses deste ano — que não há nenhuma outra possibilidade para solucionar a crise.

O impasse político não foi edificado pela oposição. Pelo contrário, ela pouco ou nada fez. O governo foi avançando no processo de desmoralização das instituições sem que houvesse uma efetiva ação contrária, de defesa da democracia, da Constituição. As bases foram sendo sucessivamente solapadas. 

A timidez das respostas fez com que aumentasse a ousadia dos extremistas. Nunca na nossa história assistimos cenas, como as ocorridas, desde fevereiro, em Brasília. Jair Bolsonaro deu inúmeras demonstrações de desapreço ao nosso ordenamento legal. Transformou o Palácio do Planalto numa organização paralegal. Organizou até um sistema de informações só dele. E, pior, fez questão de publicizar este ilícito, como se fosse uma demonstração de esperteza, de alguém que não se submete à organização estatal.

Música | Arraiá de Geraldo Azevedo: - "Moça Bonita" (Geraldo Azevedo e Capinan)

Poesia | João Cabral de Melo Neto - Rios sem discurso

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.

João Cabral de Melo Neto, in “Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto”. [Seleção Antônio Carlos Secchin], São Paulo: Global Editora, 8ª ed., 2001, pag. 191.
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