José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ ALIÁS
Pouco mais de 36% dos venezuelanos decidiram, no referendo recente, pela totalidade do povo da Venezuela ao suprimir restrições à ilimitada reeleição dos governantes do país. A consulta foi feita para legitimar a pretensão de Chávez a um novo mandato, daqui a 4 anos. Grave é o fato de que a larga proporção dos que se abstiveram expressa apenas que os que preferem a alternância de poder não demonstraram ter condições de propor ao país uma alternativa consistente ao continuísmo de Chávez. A Venezuela é, hoje, um país governado em nome dos que se omitem.
Estaríamos em face de mais uma ditadura latino-americana não fossem as peculiaridades do que ocorre na Venezuela e se estende à Bolívia e ao Equador. A notícia que vem sendo difundida pela imprensa desde o ano passado, de que as novas constituições e as mudanças constitucionais nesses três países são obras de um professor espanhol de direito, da Universidade de Valência, Roberto Viciano Pastor, propõe que se reveja, com outros olhos, a dinâmica do que vem sendo chamado de nova esquerda na América Latina. O que ocorre na Venezuela é apenas a ponta de uma ampla transformação política em andamento na região.
Viciano Pastor, de farda negra, já estendeu o braço direito em saudação fascista ao ditador da Espanha, o falecido generalíssimo Franco. Vem da direita católica ultramontana, pertence hoje ao Partido Comunista Espanhol e faz parte de uma entidade que se dedica à gestação e assessoramento de mudanças constitucionais na América Latina. A mobilização política se dá em nome dos novos sujeitos da ação política. Não só os que foram marginalizados ao longo da história latino-americana pelo modelo de Estado e de partido político que é basicamente expressão do legado da Revolução Francesa, mas os que foram marginalizados e subestimados pela esquerda marxista, como os camponeses e os índios. Deprecia a democracia representativa e propõe a manifestação plebiscitária de um poder popular articulado em torno de um presidencialismo concentrador, forte e continuísta. A ideologia dessas orientações é antidemocrática e integrista, de um autoritarismo dissimulado na mecânica das reeleições e na mobilização dos pobres e desvalidos como novos sujeitos de referência, de direitos e de ação política.
Em boa parte, a possibilidade dessa cruzada de direita dissimulada de esquerda no discurso verbalmente radical, nacionalista ou regionalista e anti-imperialista, surgiu com o fim da Guerra Fria e seus efeitos devastadores para os partidos comunistas, sobretudo aqui, em que sempre foram fracos. A esquerda latino-americana em boa parte o era porque aprisionada na polarização do confronto Leste-Oeste, reduzindo todos os descontentamentos sociais, até de quem proletário não era, à visão de mundo do proletariado teórico de Marx. O fim da polarização ideológica internacional suprimiu as mediações políticas dos muitos e diferentes descontentamentos sociais deixando a massa dos insatisfeitos livres de enquadramentos políticos postiços, mas ao mesmo tempo à mercê de novas ideologias e de novos demagogos de algum modo identificados com os movimentos populares ou até deles oriundos.
Na era que se abriu com o fim da Guerra Fria, há duas grandes tendências ideológicas influentes no aparelhamento e no direcionamento dos descontentamentos sociais latino-americanos e não só a do grupo espanhol influente na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Também originário da direita católica, há o amplo leque de influência ideológica e política dos seguidores do falecido Louis Althusser. Era ele um francês nascido na Argélia, que fora militante da juventude católica. Tornou-se comunista e promoveu uma releitura da obra de Marx que, justamente, a priva do seu princípio constitutivo, o princípio da contradição. Ela a reduz a um sistema de classificações conceituais que nega a práxis e sua historicidade social e politicamente transformadora nas sobredeterminações de instâncias com relativa autonomia, como a ideologia e a religião.
O pensamento althusseriano se difundiu na América Latina a partir da França e da esquerda francesa e se difundiu também no meio católico, especialmente entre teólogos, a partir da Bélgica, da Universidade de Louvain, uma universidade católica. Essa outra tendência foi formativamente influente no surgimento e ascensão do PT, no Brasil, na Nicarágua sandinista e, agora, no Paraguai. Não é casual que o MST no Brasil, que tem como referência teórica e doutrinária a obra de uma discípula de Althusser, atue como partido político e preconize as mesmas soluções políticas integristas viabilizadas pelo grupo espanhol para a Venezuela, o Equador e a Bolívia.
Essas reorientações teóricas e ideológicas, que nos vem, na verdade, da grande tradição do pensamento conservador, se complicam num cenário político em que as demandas sociais interpelam a sociedade legada pela dominação colonial e pela escravidão. São demandas de esquerda porque questionam as estruturas sociais injustas, as iniqüidades que se renovam, a economia que não gesta transformações nem viabiliza uma sociedade nova, de desigualdades sociais no mínimo atenuadas.
Mas as respostas oriundas desse neo-autoritarismo, que se materializa nos governos da nova esquerda latino-americana, tem sido, na verdade, respostas de direita. O integrismo que as norteia propõe uma refundação da sociedade e não sua transformação. Quando o MST fala em 500 anos de latifúndio, remete-nos para a negação da história já feita e realizada e não se revela capaz, como também ocorre com o PT e vem ocorrendo com os governos desses diferentes países, de propor um projeto histórico em que a mudança se dê pela superação das contradições que geram a pobreza e a injustiça. O discurso sobre os novos sujeitos não redistribui possibilidades de mudança e de esperança. Redistribui as injustiças pela troca de lugar social de suas vítimas e não pela superação das causas das iniqüidades sociais.
*José de Souza Martins, Sociólogo, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é autor de Retratos do Silêncio, Coleção "Artistas da USP", Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2008); A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008.
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ ALIÁS
Pouco mais de 36% dos venezuelanos decidiram, no referendo recente, pela totalidade do povo da Venezuela ao suprimir restrições à ilimitada reeleição dos governantes do país. A consulta foi feita para legitimar a pretensão de Chávez a um novo mandato, daqui a 4 anos. Grave é o fato de que a larga proporção dos que se abstiveram expressa apenas que os que preferem a alternância de poder não demonstraram ter condições de propor ao país uma alternativa consistente ao continuísmo de Chávez. A Venezuela é, hoje, um país governado em nome dos que se omitem.
Estaríamos em face de mais uma ditadura latino-americana não fossem as peculiaridades do que ocorre na Venezuela e se estende à Bolívia e ao Equador. A notícia que vem sendo difundida pela imprensa desde o ano passado, de que as novas constituições e as mudanças constitucionais nesses três países são obras de um professor espanhol de direito, da Universidade de Valência, Roberto Viciano Pastor, propõe que se reveja, com outros olhos, a dinâmica do que vem sendo chamado de nova esquerda na América Latina. O que ocorre na Venezuela é apenas a ponta de uma ampla transformação política em andamento na região.
Viciano Pastor, de farda negra, já estendeu o braço direito em saudação fascista ao ditador da Espanha, o falecido generalíssimo Franco. Vem da direita católica ultramontana, pertence hoje ao Partido Comunista Espanhol e faz parte de uma entidade que se dedica à gestação e assessoramento de mudanças constitucionais na América Latina. A mobilização política se dá em nome dos novos sujeitos da ação política. Não só os que foram marginalizados ao longo da história latino-americana pelo modelo de Estado e de partido político que é basicamente expressão do legado da Revolução Francesa, mas os que foram marginalizados e subestimados pela esquerda marxista, como os camponeses e os índios. Deprecia a democracia representativa e propõe a manifestação plebiscitária de um poder popular articulado em torno de um presidencialismo concentrador, forte e continuísta. A ideologia dessas orientações é antidemocrática e integrista, de um autoritarismo dissimulado na mecânica das reeleições e na mobilização dos pobres e desvalidos como novos sujeitos de referência, de direitos e de ação política.
Em boa parte, a possibilidade dessa cruzada de direita dissimulada de esquerda no discurso verbalmente radical, nacionalista ou regionalista e anti-imperialista, surgiu com o fim da Guerra Fria e seus efeitos devastadores para os partidos comunistas, sobretudo aqui, em que sempre foram fracos. A esquerda latino-americana em boa parte o era porque aprisionada na polarização do confronto Leste-Oeste, reduzindo todos os descontentamentos sociais, até de quem proletário não era, à visão de mundo do proletariado teórico de Marx. O fim da polarização ideológica internacional suprimiu as mediações políticas dos muitos e diferentes descontentamentos sociais deixando a massa dos insatisfeitos livres de enquadramentos políticos postiços, mas ao mesmo tempo à mercê de novas ideologias e de novos demagogos de algum modo identificados com os movimentos populares ou até deles oriundos.
Na era que se abriu com o fim da Guerra Fria, há duas grandes tendências ideológicas influentes no aparelhamento e no direcionamento dos descontentamentos sociais latino-americanos e não só a do grupo espanhol influente na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Também originário da direita católica, há o amplo leque de influência ideológica e política dos seguidores do falecido Louis Althusser. Era ele um francês nascido na Argélia, que fora militante da juventude católica. Tornou-se comunista e promoveu uma releitura da obra de Marx que, justamente, a priva do seu princípio constitutivo, o princípio da contradição. Ela a reduz a um sistema de classificações conceituais que nega a práxis e sua historicidade social e politicamente transformadora nas sobredeterminações de instâncias com relativa autonomia, como a ideologia e a religião.
O pensamento althusseriano se difundiu na América Latina a partir da França e da esquerda francesa e se difundiu também no meio católico, especialmente entre teólogos, a partir da Bélgica, da Universidade de Louvain, uma universidade católica. Essa outra tendência foi formativamente influente no surgimento e ascensão do PT, no Brasil, na Nicarágua sandinista e, agora, no Paraguai. Não é casual que o MST no Brasil, que tem como referência teórica e doutrinária a obra de uma discípula de Althusser, atue como partido político e preconize as mesmas soluções políticas integristas viabilizadas pelo grupo espanhol para a Venezuela, o Equador e a Bolívia.
Essas reorientações teóricas e ideológicas, que nos vem, na verdade, da grande tradição do pensamento conservador, se complicam num cenário político em que as demandas sociais interpelam a sociedade legada pela dominação colonial e pela escravidão. São demandas de esquerda porque questionam as estruturas sociais injustas, as iniqüidades que se renovam, a economia que não gesta transformações nem viabiliza uma sociedade nova, de desigualdades sociais no mínimo atenuadas.
Mas as respostas oriundas desse neo-autoritarismo, que se materializa nos governos da nova esquerda latino-americana, tem sido, na verdade, respostas de direita. O integrismo que as norteia propõe uma refundação da sociedade e não sua transformação. Quando o MST fala em 500 anos de latifúndio, remete-nos para a negação da história já feita e realizada e não se revela capaz, como também ocorre com o PT e vem ocorrendo com os governos desses diferentes países, de propor um projeto histórico em que a mudança se dê pela superação das contradições que geram a pobreza e a injustiça. O discurso sobre os novos sujeitos não redistribui possibilidades de mudança e de esperança. Redistribui as injustiças pela troca de lugar social de suas vítimas e não pela superação das causas das iniqüidades sociais.
*José de Souza Martins, Sociólogo, Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é autor de Retratos do Silêncio, Coleção "Artistas da USP", Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008; Sociologia da Fotografia e da Imagem (Editora Contexto, 2008); A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008); A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008.