O Estado de S. Paulo.
A singela afirmação segundo a qual a
democracia é o regime em que se vencem e se perdem eleições é desmentida de
modo desabrido
Desde há algumas semanas, tornamo-nos
comentadores geopolíticos de nascença, encarnando uma figura parecida com
outras delineadas humoristicamente por um poeta maior há quase cem anos.
Tomando carona na bela Canção do Exílio, Murilo Mendes falava dos tipos
excêntricos da distante terra nativa, enxergando – lá, do seu exílio surreal –
nossos poetas como pretos em torres de ametista, os sargentos como pintores cubistas,
os filósofos como polacos traficantes de bugigangas. Pois agora poderia
acrescentar que há uma pequena multidão de doutores em geopolítica, capazes de
dissertar horas a fio sobre blocos, esferas de influência e alianças militares.
Nunca se terá falado tanto de Otan, da sua marcha para o leste, encurralando a Rússia e provocando a única reação possível, a de devastar a Ucrânia. A lógica que assim se expressa é sempre a dos Estados-nação, sem fazer caso do que querem e, principalmente, sofrem as populações. Para Putin, um autocrata de manual, a Ucrânia nem sequer existe, dividindo com a Rússia, desde o princípio dos tempos, um só e mesmo “espaço espiritual”. E seu programa de ação brota do reiterado lamento decorrente do “maior desastre geopolítico” – a palavra inevitável... – do século passado, a saber, a dissolução da União Soviética.