quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Alberto Aggio* - A política em tempos de Pandemia


- Política Democrática Online, n. 24, outubro de 2020, p. 08-10

É uma verdade relativa a que se pode deduzir da expressão “o cidadão vive no município, não no Estado ou na Federação”. A vida mudou profundamente nos últimos tempos, tornando-se cada vez mais complexa e cosmopolita. Se as fronteiras entre os países se enfraqueceram, o que não dizer dos limites meramente administrativos das cidades. A pandemia da Covid19, que já ceifou mais de 1 milhão de vidas, é mais uma evidência da mudança. Em meio a seus trágicos resultados ou precisamente por conta deles, teríamos pelo menos um saldo positivo desse sofrimento todo se pudéssemos assimilar uma nova forma de pensar a relação do cidadão com a polis e, em função dela, construir uma maneira contemporânea de pensar a política no nosso tempo.

A pandemia fez com que todos tivessem que pensar profundamente a respeito de suas convicções filosóficas mais profundas

A começar pelo reconhecimento de que sobreviver à pandemia só foi possível com a adoção de parâmetros de orientação científica que transcenderam qualquer dimensão municipal. O isolamento social, primeiro, e o distanciamento social, em seguida (uso de mascaras, periódica e meticulosa higiene das mãos, etc.), foram as principais orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para tentar estancar o alastramento do vírus. Mesmo que ambos tenham sido cumpridos de maneira bastante parcial no Brasil, nossas condutas, sociais e pessoais, assemelharam-se a de inúmeros países do globo.

A contestação a essas recomendações desnudou as perspectivas filosóficas dos governantes, suas concepções de civilização, sua visão do presente e do futuro. Em uma palavra, as recomendações dos especialistas foram filtradas, em toda parte, pelo crivo da política. Não poderia ser diferente. Viver, ou morrer, no contexto da pandemia estaria assim submetido a uma orientação global e se consubstanciaria num plano político concreto em cada país, desde o nível regional até os entes locais do território. Nesse pacote estariam iniciativas referentes a montagem de hospitais, alocação e distribuição de medicamentos e de recursos financeiros e humanos, etc..

Rosângela Bittar - Ponto final coisa nenhuma

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final

A vacina contra o coronavírus não será obrigatória e ponto final, decretou o presidente Jair Bolsonaro. Resta-nos a esperança de que este ponto final de agora, como o foram tantos outros, seja um mero arrebatamento da ignorância. Não voltaremos à idade da pedra, mesmo que seja necessário recorrer ao papa, ao pajé ou ao Tribunal de Haia.

Ponto final quer dizer fim. Não permite réplica. A não ser que se subverta o sinal gráfico convencionado.

O ponto final, no discurso de Bolsonaro, pode significar vírgula; talvez, ponto e vírgula; com certeza reticências; muitas vezes exclamação ou até parênteses. Quem sabe, pausa para um gole d’água; também uma intervenção abusiva, subentendida a determinação para que se mude de assunto. 

Correndo o risco de glamourizar um evidente vício verbal, o histrionismo de Bolsonaro, ao banalizar a conclusão do seu pensamento com a expressão superlativa, virou marca. Todo mundo aceita, ninguém discute.

Bolsonaro é espectador do seu próprio governo. Não demonstra convicção, compromisso ou segurança nas decisões. Fala uma coisa agora e seu contrário minutos depois. Subversão total do ponto final.

Exemplo: não se fala em Renda Brasil até o fim do meu governo e ponto final. Foi o que disse antes de receber o relator e autorizar o prosseguimento do projeto relativo ao programa renegado. Talvez, no caso, coubesse só uma vírgula, abrindo caminho a um advérbio de tempo. Não se fala mais nisso, agora.

Quando o assunto foi retomado com renovado vigor, a condenada Renda Brasil tornou-se Renda Cidadã, e todos já tinham esquecido a peremptória ordem anterior.

Vera Magalhães - Tânatos

- O Estado de S.Paulo

Só Freud explica a pulsão de morte que emana de Bolsonaro em plena pandemia

Não há outra explicação, a não ser a pulsão de morte descrita por Sigmund Freud em sua teoria, para um presidente de um país no qual quase 160 mil pessoas morreram em menos de um ano usar uma cerimônia oficial para, numa só tacada, divulgar desinformação sobre vacina e vender mais um medicamento sem eficácia científica comprovada, sem nenhum dado que ampare a “descoberta”.

A teoria das pulsões aparece pela primeira vez na obra de Freud em 1920, mas ganha contornos culturais, sociológicos e políticos nove anos depois, quando ele publica O Mal-Estar na Civilização. Neste texto ele descreve a dicotomia entre as pulsões do indivíduo – a pulsão de vida (Eros) e de morte (Tânatos) – e as expectativas da sociedade (ou da civilização).

Bolsonaro age movido a pulsão de morte desde os primórdios de sua curta passagem pelo Exército, em toda a sua carreira de defensor de tortura e assassinato nos porões e, agora, como promotor de caos no enfrentamento da pandemia de covid-19.

Carlos Melo* - Uma sabatina para não sabatinar

- O Estado de S. Paulo

A indicação de Kassio Marques para a vaga no STF é um processo de surpresas e atropelos. Surpresas porque se esperava de Jair Bolsonaro um nome “terrivelmente evangélico” – o que não ocorreu. Atropelos porque, após a indicação, aspectos do currículo do candidato foram revelados, deixando constrangimento para quem se apresenta à vaga, quem o indica e quem o aprovará, em sabatina.

Ao se afastar da promessa que fez à base evangélica, o presidente surpreendeu pelo pragmatismo, incomum no seu caso. Ser “terrivelmente” adepto de qualquer religião não é qualificativo para tribunais em Estados laicos e democráticos. O que se espera de um juiz é estatura jurídica. De sorte que Bolsonaro surpreendeu e indicou alguém com melhores condições do que se esperava.

Mas, também as articulações que levaram ao nome de Marques foram surpreendentes. O noticiário indica que a escolha compreende enfraquecimento da Lava Jato no STF. O futuro ministro pode ter visão jurídica distinta da operação; ser mais ou menos crítico em relação a isso não é um defeito, desde que faça sentido jurídico. Posicionamentos dessa ordem deveriam ser tratados pelos senadores.

Luiz Carlos Azedo - Tudo dominado? Quase

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

A indicação de Kassio Marques surpreendeu, todos esperavam alguém ‘terrivelmente evangélico’, como prometera o presidente Jair Bolsonaro

Indicado para a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal (STF) com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, o desembargador federal Kassio Nunes Marques será sabatinado hoje, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado (CCJ). A presidente da comissão, senadora Simone Tebet (MDB-MT), pretende ler e sustentar o parecer favorável do líder do MDB, Eduardo Braga (AM), que está impossibilitado de fazê-lo por motivo de saúde. Com toda certeza, Marques passará por algum constrangimento, quando nada, devido ao currículo anabolizado, mas seu nome será aprovado pela maioria. A rejeição à sua indicação está confinada aos senadores do grupo Muda Senado.

A indicação de Kassio Marques surpreendeu, todos esperavam alguém “terrivelmente evangélico”, como prometera o presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, trata-se de um magistrado do Piauí, católico, indicado pelo senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP, o principal partido do Centrão. A tese de que foi resultado de um acordo com os ministros do Supremo Dias Toffoli e Gilmar Mendes não procede; ambos prefeririam que o nome escolhido fosse um magistrado com passagem pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujos ministros Luís Felipe Salomão, Humberto Martins e Luiz Otávio de Noronha eram cotados para vaga.

Ricardo Noblat - Na reta final, Trump une-se aos democratas contra os republicanos

- Blog do Noblat | Veja

Coisas da política americana

Imagine a seguinte situação. A poucos dias do segundo turno da eleição de 2022, ameaçado de não se reeleger, Jair Bolsonaro, aconselhado por assessores, concorda em negociar com a oposição um pacote de socorro aos brasileiros que mais sofreram com os efeitos da pandemia do coronavírus.

A oposição no Congresso quer um pacote o mais generoso possível. Bolsonaro está de acordo porque seria uma chance de não ser derrotado. Mas, o conjunto de partidos que apoia o governo é contra. Alega que suas bases eleitorais, predominantemente conservadoras, acham o pacote um exagero. Questão de ideologia.

Essa é a situação que vive neste momento o presidente Donald Trump. Ele e o Partido Democrata negociam um pacote que poderá injetar na economia algo como pouco mais de dois trilhões de dólares além do que já foi gasto até aqui com os americanos mais afetados pelo Covid-19. O Partido Republicano discorda.

Monica De Bolle* - Reflexões sobre a sindemia

- O Estado de S.Paulo

Há uma urgente necessidade de planejamento desde agora para enfrentar o que sobrevirá da crise atual da covid-19

Talvez alguns leitores já estejam familiarizados com o termo sindemia. Ele vem sendo utilizado crescentemente pela imprensa após a Organização Mundial de Saúde, além do renomado periódico científico The Lancet, terem se referido à covid-19 e suas consequências como uma sindemia. Para quem não sabe o que significa, sindemia foi o termo cunhado pelo médico-antropólogo Merrill Singer nos anos 90 com o propósito de formular novas abordagens para o tratamento de doenças e o enfrentamento de problemas de saúde pública.

Sindemias consistem em situações onde duas ou mais doenças interagem biologicamente de modo adverso, onde essas doenças coexistem em níveis que caracterizam epidemias nas populações afetadas, e em contextos nos quais fatores socioeconômicos diversos contribuem para o agravamento do problema constatado. Portanto, as sindemias não tratam as doenças isoladamente, tampouco fora do contexto socioeconômico em que despontam, ao contrário do entendimento usual sobre epidemias e pandemias.

Eros Roberto Grau* - Igualdade ou desigualdade?

- O Estado de S.Paulo

Programa do Magazine Luiza é iluminado por Platão e Aristóteles, Lewandowski e Barroso

O Magazine Luiza recentemente implementou um programa de contratação de jovens que estejam cursando ensino superior e se autodeclarem negros ou pardos. Daí foram desdobrados inúmeros debates. Por conta disso emiti um parecer no qual afirmo sua correção jurídica. Não obstante, tal tem sido a repercussão dessa sua iniciativa que me permito agora escrever a propósito de sua correção em termos sociais.

O artigo 5.º da nossa Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à igualdade. Note-se bem que o preceito contém uma afirmação – a igualdade perante a lei – e uma garantia. Uma conhecida lição de Kelsen é primorosa: a chamada “igualdade” perante a lei não significa outra coisa que não seja a aplicação correta da lei, qualquer que seja o conteúdo que esta lei possa ter, mesmo que não prescreva um tratamento igualitário, desigual.

Fernando Exman - Uma ideia que pode ser mais palatável

- Valor Econômico

Projeto pode garantir verbas na ponta sem assustar o mercado

Brasília é uma ilha, costumam dizer os seus críticos quando identificam uma desconexão do que é discutido no centro do poder com o que ocorre no restante do país. E aqui vale o alerta: afirmar isso a um brasiliense mais fervoroso pode provocar discussão séria, briga mesmo. O incauto interlocutor logo é acusado de ser mais um paulista arrogante ou defender o retorno da administração federal para o Rio de Janeiro, onde se podia ir ao Parlamento e à praia no mesmo dia. Mas, feito o protesto, o próprio brasiliense há de reconhecer que a assertiva tem um fundo de verdade, o qual, inclusive, voltou a ficar em evidência na pandemia.

Durante muito tempo, uma caminhada pelo Plano Piloto, área nobre e central, de fato pouco dizia sobre a situação do Brasil e do brasileiro, as mazelas vividas nos rincões ou os desafios enfrentados nos grandes centros urbanos. Infelizmente, a crise acabou aproximando Brasília da realidade observada já há muitos anos em outras capitais e regiões metropolitanas.

Gustavo Loyola* - Riscos no horizonte

- Valor Econômico

O fracasso na aprovação de reformas trará um quadro de turbulência econômica em 2021

A mediana das projeções para o crescimento do PIB brasileiro em 2021 está em 3,47%, segundo a pesquisa Focus divulgada pelo Banco Central na última segunda-feira. Entretanto, alguns riscos relevantes se acumulam no horizonte e podem levar tais previsões a se frustrarem, deixando a economia brasileira bem aquém de uma recuperação em “V”, após o gigantesco tombo provocado pela covid-19.

O risco mais óbvio deriva da provável queda da renda disponível das famílias, em razão do término do programa do coronavoucher, para o qual não há substituto possível em razão das limitações fiscais. Alguma mitigação parcial deste efeito pode ser viabilizada, observadas as possibilidades orçamentárias, mas somente uma recuperação mais forte da ocupação faria a massa real de renda das famílias crescer em 2021 e sustentar o aumento do consumo.

Pedro Cafardo - Brasil é o pior dos Brics e ainda brinca com fogo

- Valor Econômico

Eventual vitória de Biden nos EUA acabará com o espaço para o negacionismo ambiental e pode levar o país a um bloqueio internacional capaz de asfixiar ainda mais a economia brasileira

O Brasil é, de longe, a maior decepção entre as quatro grandes países emergentes incluídos no histórico trabalho da Goldman Sachs que criou o grupo do Brics - Brasil, Rússia, Índia e China. Se você quer saber quais desses países mais corresponderam às previsões de crescimento econômico, basta ler a sigla de traz para frente. A China foi disparadamente melhor, seguindo-se Índia e Rússia, com o Brasil na lanterna.

O estudo da Goldman Sachs é normalmente atribuído a Jim O’Neill, que formulou o conceito e a sigla em 2001, mas foi assinado por Dominic Wilson e Roopa Purushothaman, com a publicação do “Dreaming With BRICs: The Path to 2050”. Embora tenha sido divulgado em outubro de 2003, esse “paper” trabalha com uma série histórica que começa no ano 2000. A previsão principal é que os quatro grandes emergentes - o texto original não inclui a África do Sul - deverão se tornar, até 2050, a maior força da economia mundial, superando em valor de PIB os países do G-6 - Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália.

Bruno Boghossian - O circo político da vacina

- Folha de S. Paulo

Governo paga por imunizante que foi criticado pelo presidente em ataque a Doria

Nem os auxiliares de Jair Bolsonaro conseguem sustentar por muito tempo o circo político armado diariamente pelo chefe. Em menos de 24 horas, o Ministério da Saúde foi obrigado a cortar mais um fio da campanha do presidente contra a vacina chinesa para a Covid-19, produzida em São Paulo.

A pasta anunciou nesta terça (20) que vai pagar R$ 2,6 bilhões para incluir 46 milhões de doses da Coronavac em seu Programa Nacional de Imunizações. Bolsonaro deveria explicar por que vai gastar uma fortuna com um produto que, na véspera, ele mesmo tentou desmoralizar.

Na segunda (19), o presidente abriu um evento disposto a atacar a vacina chinesa para acertar o governador João Doria (PSDB). Em poucos minutos, ele criticou o preço do imunizante, insinuou que sua eficácia não está comprovada e citou um levantamento que indica que 46% dos brasileiros recusam sua aplicação.

Hélio Schwartsman - O sistema funciona?

- Folha de S. Paulo

Receio que, se funcionasse, Kassio Nunes não seria aprovado

O que aconteceria com Kassio Marques se nosso sistema de escolha de juízes para o STF fosse plenamente funcional? Receio que, neste caso, o futuro ministro não teria seu nome aprovado pelo Senado.

É possível que Marques seja um bom magistrado e que sua fortificação curricular seja um pecado venial, mas não estamos falando de um cargo obscuro nos meandros da administração, e sim de uma vaga na Suprema Corte do país, onde deveriam ter assento apenas os melhores e mais probos de cada geração.

Não é possível que, entre os cerca de 2 milhões de brasileiros em carreiras jurídicas, não exista ninguém com excelência técnica e sem pecados curriculares.

Apesar de eu mesmo ter classificado como pouco funcional nosso modelo de seleção, no qual o presidente indica mais ou menos livremente um nome, que precisa ser sabatinado e aprovado pelo Senado, devo dizer que o sistema não é tão ruim quanto alguns o pintam. O risco maior, que seria a entronização de ministros próximos demais de quem os designou, foi posto à prova e não se materializou.

Vinicius Torres Freire – EUA vencem batalha contra 5G chinês

- Folha de S. Paulo

Mais países proíbem, oficialmente ou na prática, compra de equipamentos da Huawei

A em geral pacífica Suécia proibiu as teles do país de comprar equipamentos de infraestrutura de telecomunicações das chinesas Huawei e ZTE. Seguiu orientação de seus militares e do seu serviço de segurança. As empresas chinesas vão ficar fora também do 5G sueco.

E daí a Suécia? É mais um exemplo da lista agora bem relevante de países que baniram a tecnologia chinesa, oficialmente ou na prática. A restrição a essas empresas é uma discussão que ultrapassa a mera maluquice diplomática subalterna de Jair Bolsonaro.

Funcionários americanos estão oficialmente no Brasil para convencer o governo brasileiro a proibir a Huawei de fornecer equipamentos para as redes 5G. Até abril de 2021, devem ser leiloadas as frequências para 5G (“estradas” de dados) entre as teles.

Pelo menos desde 2012, há campanha americana contra as firmas chinesas que vendem infraestrutura de telecomunicações. A Huawei é a líder mundial do setor. Sob Donald Trump, a campanha se tornou conflito aberto. Entre outras medidas, Trump quer estrangular o fornecimento de softwares, chips e outras tecnologias para as empresas chinesas, além de criar rede de comunicação mundial “limpa”, livre de ciberameaças –isto é, sem participação da China.

Elio Gaspari - O nome do crime é milícia

- O Globo / Folha de S. Paulo

O que se fez foi colocar na praça um novo tipo de bandido, o miliciano

A má notícia vem de um consórcio de pesquisadores: metade dos bairros do Rio de Janeiro estão ocupados por milícias. Um em cada três moradores da cidade vive em áreas controladas por essas organizações criminosas. A boa notícia está nas livrarias. É “A República das Milícias”, do repórter Bruno Paes Manso, com um retrato da construção dessa ruína social.

Paes Manso mostrou como os justiceiros surgiram até de forma simpática: “Milicianos de PMs expulsam tráfico”. Isso em 2005, passaram-se 15 anos e a simpatia é atraída para a notícia de que na semana passada a polícia do Rio matou doze milicianos.

Policiais expulsando traficantes de drogas em nome da benemerência era uma lenda urbana. Logo veio o controle das vans que faziam transporte ilegal de passageiros. (A Fetranspor, guilda dos empresários que faziam transporte legal, corrompia parlamentares e governadores.)

É difícil acreditar que Jair Bolsonaro não conhecesse a cidade em que vivia quando disse, em 2018, que “as milícias tinham plena aceitação popular, mas depois acabaram se desvirtuando. Passaram a cobrar gatonet e gás”.

Bolsonaro tinha no seu entorno o ex-sargento Fabrício Queiroz e o ex-capitão Adriano da Nóbrega. Um está preso. O outro, foragido, foi queimado no interior da Bahia.

Bernardo Mello Franco - De pai para filho

- O Globo

Em 2001, Antonio Carlos Magalhães foi acusado de ordenar a violação do painel eletrônico do Senado. As provas eram fartas, e o Conselho de Ética aprovou relatório favorável à cassação do velho político baiano. Antes que o plenário confirmasse a pena, ele renunciou. O mandato ficou com seu primeiro suplente, o empresário ACM Júnior.

“Tenho a responsabilidade de ser filho do melhor e maior político brasileiro”, discursou o herdeiro ao estrear na tribuna. Na véspera da posse, ele disse que sua missão era “honrar” o patriarca. “Tomarei as atitudes em conjunto com meu pai”, afirmou

Dezenove anos depois, a manobra se repete em Brasília. Flagrado com dinheiro na cueca, o senador Chico Rodrigues se licenciou ontem do cargo. Deixou a cadeira para Pedro Arthur Rodrigues, seu filho mais velho, também filiado ao DEM.

Foi uma jogada ensaiada. Num acordão com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o roraimense saiu de cena para aliviar a pressão sobre os colegas. A ideia é que ele se esconda dos holofotes até fevereiro. Se tiver sorte, ninguém se lembrará do caso quando a licença acabar. Enquanto isso, seu gabinete ficará sob os cuidados do primogênito.

Míriam Leitão - Estado geral da democracia

- O Globo

Não precisa fazer interpretações para concluir que a democracia brasileira vai mal. Basta juntar os fatos. Não são feitos mais os ataques verbais às instituições nem as passeatas pedindo o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso, mas isso não significa que o presidente Bolsonaro mudou. Ele é o mesmo que sempre desprezou valores democráticos. A paz com o centrão não é governabilidade, está mais para conluio. Partidos, políticos e o presidente têm o mesmo objetivo: manter o poder e suspender o combate à corrupção.

O episódio do senador Chico Rodrigues traz uma série de lições. Alguém pode concluir que tudo funcionou bem, afinal a Polícia o encontrou, o Supremo o afastou inicialmente, ele próprio pediu afastamento. É uma visão benigna, mas não realista. O fato é que o vice-líder do governo se sente tão à vontade que leva maços de dinheiro para casa. A PF que o encontrou continua trabalhando, mas ela está sendo esvaziada. Até quando terá essa autonomia? Até que ponto poderá chegar? O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, deixou no ar um silêncio eloquente sobre o escândalo. O ministro do Supremo que afastou Chico Rodrigues foi criticado por senadores. Eles não queriam julgá-lo no Conselho de Ética. Os colegas o aconselharam a dar um “jeitinho”: sair por 121 dias, entregar o mandato ao filho suplente e deixar tudo em casa. O presidente da República fingiu que não tinha com ele a anunciada “quase união estável”.

Merval Pereira - A Covid-19 politizada

- O Globo

O combate à Covid-19 continua sendo politizado pelos agentes públicos, sendo que, antes mesmo de a vacina chegar, já se discute se ela será obrigatória. Os dois contendores principais continuam sendo o presidente Jair Bolsonaro e o governador de São Paulo João Dória, já antecipando a eleição presidencial de 2022, onde um tentará a reeleição, e o outro aparece como oponente forte, à frente do mais rico Estado, que pretende se descolar da performance econômica do país para tornar-se alternativa visível.  

A disputa mais ridícula encerrou-se ontem, quando o ministério da Saúde anunciou que comprará 46 milhões de doses da vacina coronavac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantã. Duas dificuldades emperraram a decisão anunciada ontem: a vacina ser chinesa, e o governador João Dória ter sido o responsável pelo acordo com o Instituto Butantã.  

Foi preciso que governadores pressionassem o governo para que essa vacina entrasse no plano nacional de imunização, que vai comprar mais milhões de doses de diversas outras vacinas, como a do laboratório AstraZeneca que já garantiu 100 milhões de doses da vacina desenvolvida com a Universidade de Oxford. No Brasil, ela deverá ser produzida pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com a previsão de 165 milhões de doses durante o segundo semestre de 2021.  

O país tem ainda outros 40 milhões de doses garantidas por integrar iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que reúne diversos países. Outra disputa já se apresentou, essa sobre a obrigatoriedade da vacinação pública. O governador João Dória se antecipou anunciando que em São Paulo será obrigatória, mas seu candidato a Prefeito, Bruno Covas, disse que isso não será necessário, pois as campanhas de vacinação são suficientes para fazer a população se mobilizar.  

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Senado não pode se esquivar do caso Chico Rodrigues – Opinião | O Globo

Conselho de Ética precisa iniciar o exame das denúncias contra o senador, para não alimentar conflito entre poderes

O flagrante dado pela Polícia Federal no senador Chico Rodrigues (DEM-RR) com R$ 32.250 na cueca revelou não apenas outro caso grotesco de assalto ao contribuinte no meio político. Também fornece uma oportunidade de firmar entendimento claro sobre os espaços do Judiciário e do Legislativo na punição desses crimes, para que não haja choque indesejável entre os dois poderes. Um bom sinal foi o recuo ontem do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, ao revogar a liminar que suspendera o mandato do parlamentar, cujo julgamento no plenário estava previsto para hoje.

O pedido de licença de 121 dias feito por Rodrigues cumpre na prática a medida cautelar do ministro. Mas não resolve a questão institucional. Depois de agir por impulso ao emitir a liminar, Barroso, que preside o inquérito sobre o desvio de dinheiro da saúde em que Rodrigues foi apanhado, se viu compelido a levar o caso ao plenário. O objetivo implícito era não desencadear outra crise como a deflagrada pela libertação monocrática do traficante internacional André do Rap pelo ministro Marco Aurélio Mello.

Mesmo que Barroso não tivesse recuado, a regra que vale para o caso de Rodrigues foi decidida pelo próprio Supremo, quando julgou uma ação dos partidos PP, PSC e SD sobre o afastamento do deputado Eduardo Cunha da presidência da Câmara em 2016. Ficou decidido na ocasião que deve ser submetida ao Congresso toda medida que impossibilite o exercício regular do mandato por um parlamentar investigado. É o mais razoável para evitar intromissão de um poder no outro.

Se Rodrigues não renunciar, portanto, os senadores não podem se furtar à responsabilidade de julgá-lo. O pedido de licença não passa de uma manobra de evasão, de modo a dar tempo para articulações que adiem o recebimento das denúncias indefinidamente. Funciona assim em Brasília.

O certo é o Senado convocar o quanto antes seu Conselho de Ética para examinar o processo. Há uma fila de casos no Conselho, o mais célebre envolvendo o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e suas “rachadinhas” de quando era deputado estadual na Alerj.

Música - Beth Carvalho - O meu Guri (Chico Buarque)

 

Poesia | Fernando Pessoa – Meus amigos

Meus amigos são todos assim:

metade loucura, outra metade

santidade. Escolho-os não pela

pele, mas pela pupila, que tem que ter

brilho questionador e tonalidade

inquietante. Escolho meus amigos

pela cara lavada e pela alma

exposta. Não quero só o ombro ou

o colo, quero também sua maior

alegria. Amigo que não ri junto, não

sabe sofrer junto. Meus amigos são

todos assim: metade bobeira,

metade seriedade. Não quero risos

previsíveis, nem choros piedosos.

Quero amigos sérios, daqueles que

fazem da realidade sua fonte de

aprendizagem, mas lutam para que

a fantasia não desapareça. Não

quero amigos adultos, nem chatos.

Quero-os metade infância e outra

metade velhice. Crianças, para que

 não esqueçam o valor do vento

no rosto, e velhos, para que nunca

tenham pressa. Tenho amigos para

saber quem eu sou, pois vendo-os

loucos e santos, bobos e sérios,

crianças e velhos, nunca me

esquecerei de que a normalidade é

uma ilusão imbecil e estéril.