Por ampla maioria, a Câmara dos Deputados aprovou projeto que altera o índice de correção das dívidas de estados e municípios com a União e ainda retroage até 1997, o que, para especialistas, fere a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
No total, as dívidas de estados e municípios chegam hoje a R$ 468 bilhões. Só a prefeitura de São Paulo, comandada pelo petista Fernando Haddad, abateria R$ 24 bilhões de R$ 54 bilhões. A renegociação, que precisa passar pelo Senado, pode levar à revisão da nota de risco do Brasil. Mais cedo, o FMI divulgou relatório em que critica a política fiscal brasileira e prevê potencial menor de crescimento para o país
Renegociação: velhas dívidas, novo problema
Desconto retroativo de débitos de estados e " municípios pode piorar nota de crédito do país
Cristiane Jungblut, Martha Beck : e Clarice Spitz
A Câmara dos Deputados aprovou ontem, por 334 votos a favor e nove contra, projeto de lei complementar que altera o indexador utilizado na correção das dívidas de estados e municípios com a União, a partir de janeiro de 2013, e ainda permite um desconto no estoque acumulado até o final do ano passado. As mudanças, que ainda precisam passar pelo Senado, acenderam o sinal amarelo no mercado, que vê nelas mais um risco ao equilíbrio das contas públicas e mais um elemento de perda de credibilidade junto às agências de classificação de risco. A deterioração fiscal, com a chamada contabilidade criativa, foi um dos prin-; cipais fatores que levaram a Standard & Poor ameaçar rebaixar o rating do Brasil, colocando o país sob perspectiva negativa em junho.
Além disso, segundo especialistas, ao alterar o estoque da dívida, as alterações ferem a Lei de ; Responsabilidade Fiscal (LRF).
Na prática, a União dará a estados e municípios mais margem para gastar, reduzindo ainda mais sua contribuição para o superávit fiscal primário (economia realizada para o pagamento de juros da dívida pública). Essa contribuição hoje já é pequena. O superávit primário do setor público acumulado em 12 meses fechados em agosto está em R$ 84,7 bilhões, ou 1,82% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país), sendo que a meta oficial é de R$ 155,9 bilhões, ou 3,1% do PIB. Deste total, R$ 47,8 bilhões (0,95% do PIB) cabem a estados e municípios. No entanto, até agosto, o montante economizado por esses entes era apenas de R$ 18,9 bilhões, ou 0,41% do PIB.
Embora concordem que a troca do índice de correção das dívidas de estados e municípios seja apropriada, já que a economia brasileira mudou e hoje tem juro real na casa de 3%, muitos especialistas criticam a revisão dos débitos de forma retroativa. A professora do Instituto de Economia da UFRJ Margarida Gutierrez vê um risco para a avaliação de crédito do país.
— (A medida) pode respingar sim. Todos já estão dizendo que ano que vem o rating do Brasil vai ser diminuído. É o descumprimento de uma lei que inaugurou um divisor de águas, que foi a LRF — afirma, lembrando que outra conseqüência da : aprovação do texto é a diminuição da contribuição ! de estados e municípios para* o superávit fiscal.
Abatimento retroativo a até 1997
Pela proposta, as dívidas serão corrigidas pela taxa básica de juros Selic ou pelo IPCA mais 4% ao ano, o que for menor. Hoje, o indexador é o IGP-DI mais 6% a 9% ano. Já a revisão dos estoques, que não era parte do projeto original, foi incluída no texto com apoio do governo para beneficiar principalmente o município de São Paulo, comandado por Fernando Haddad (PT). A cidade poderá abater de seu estoque cerca de R$ 24 bilhões, reduzindo seu estoque de R$ 54 bilhões para R$ 30 bilhões, segundo informações da própria prefeitura.
Hoje, as dívidas dos estados renegociadas com a União somam R$ 400,4 bilhões, enquanto as de municípios são de R$ 68 bilhões, sendo a maior parte de São Paulo. Dessa forma, o governo atendeu à demanda de governadores e prefeitos e permitiu que o estoque da dívida anterior a 2013 seja revisto. O Tesouro vai fazer uma simulação e, se a Selic do período tiver sido mais vantajosa para a correção da dívida, ela vai substituir o indexador até então em vigor de forma retroativa desde a assinatura do contrato. Caso contrário, o contrato fica como está. No caso dos estados, as dívidas foram renegociadas com a União em 1997. As prefeituras fizeram acordos a partir de 2000.
Os técnicos da equipe econômica afirmam que a mudança do indexador não afeta a LRF, pois ele não está explicitado na lei. Mas admitem que há controvérsias em relação à revisão do estoque. Esse ponto poderia ser visto como uma alteração numa regra sagrada, que exige compromisso com o equilíbrio fiscal. Mesmo assim, eles preferem adotar um discurso vago ao comentar o assunto.
— Essa mudança não mexe nos princípios da LRF — disse um técnico.
Taxa de juros era absurda, diz líder do PSDB
Os deputados, a contragosto do governo, ampliaram os efeitos da proposta, prevendo renegociação também de contratos firmados com base na Lei 8.727/93, cujas dívidas tinham como origem basicamente débitos junto ao Banco do : Brasil e Caixa Econômica Federal Neste caso, a Selic foi adotada como limite nos contratos. Os aliados avisaram ao Palácio do Planalto que se tratava de uma "emenda indigesta" incluída na proposta para beneficiar principalmente Goiás.
O texto principal foi aprovado no início da tarde na Câmara por ampla maioria: 334 votos a favor e apenas nove contra. A proposta recebeu sinal verde do Ministério da Fazenda, depois de várias negociações com o relator, o líder do PMDB na Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
— A União adota como teto a Selic nos contratos. Até agora, os estados e municípios estavam sendo submetidos a uma taxa de juros absurda — disse Cunha.
O projeto permite ainda que capitais firmem com a União Programas de Acompanhamento Fiscal (PAF) como já existe hoje para estados, o que garantirá mais tranqüilidade financeira aos grandes municípios. Segundo técnicos da área econômica, o objetivo do programa é auxiliar na construção do superávit primário.
— O maior problema é ser retroativo, porque acaba sendo uma válvula de escape para que estados e municípios se endividem mais e gastem mais. É preciso saber se esse dinheiro vai ser direcionado para investimento ou para gasto com pessoal — pondera a economista Margarida Gutierrez.
O economista Raul Velloso, especialista em contas públicas, vê prejuízo para a credibilidade fiscal do governo. Tanto ele quanto Margarida afirmam que a aprovação da lei pode contribuir para o mau humor de agências de rating em relação ao país.
— Imagino que os R$ 15 bilhões de Libra (do bônus de assinatura do primeiro leilão do pré-sal) vão tapar muito buraco, mas haja Libra para cuidar de toda essa situação — ironiza. — No momento em que o governo perdeu sua credibilidade fiscal e o superávit diminuiu, a pergunta é: será que ele vai pagar ou refinanciar a dívida dos estados e municípios? Se decidir pagar, a dívida (federal) aumenta.
O economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP, discorda que a lei tenha um efeito nocivo sobre as contas públicas.
Antes, mesmo que estados e municípios conseguissem pagai; limitava-se a capacidade de investimentos, e um dos desafios do Brasil é elevar esse investimento — afirma.
Fonte: O Globo