Em depoimento exclusivo, ajudante de ordens relata momentos finais da luta do então governador de São Paulo contra o câncer
Alberto BombigEm 1992, o jovem tenente da Polícia Militar José Roberto Rodrigues de Oliveira viu dois colegas de farda morrerem baleados por um homem que havia invadido uma casa em Pirituba, zona norte de São Paulo. Eram encontros frequentes com a morte, como esse, que motivavam a cada dia o oficial a tentar trocar a violência das ruas pelo trabalho um tanto burocrático na Casa Militar do Palácio dos Bandeirantes.
Quatro anos depois, Oliveira chegaria à sede do Executivo paulista, localizada no outro extremo da capital do Estado, para atuar na segurança do então governador Mario Covas. Como no poema de Bandeira, a "indesejada das gentes", no entanto, também o acompanharia até o novo endereço. O destino o escolheria para, no dia 6 de março de 2001 - há exatos dez anos -, testemunhar o que ele define como "momento histórico" -, a morte do governador em exercício do Estado de São Paulo, após uma luta franca contra o câncer que se tornou pública e mobilizou o País.
Na madrugada daquele dia, Oliveira dava plantão no Instituto do Coração (Incor), em frente ao quarto onde Mario Covas Júnior, nascido em 21 de abril de 1930, em Santos, travava sua batalha final. O câncer na bexiga havia sido diagnosticado três anos antes, logo após a reeleição do governador, que desde então se viu obrigado a seguir uma rotina de tratamentos, crises e internações hospitalares.
Só os modernos aparelhos médicos emitiam sinais de que o paciente ainda resistia naquela madrugada em São Paulo, até que, às 5h32, Oliveira assistiu, conforme seu relato, ao término do embate - o momento em que o coração do governador parou de bater.
"Vi o monitor do computador, que mostra pressão, pulsação, de repente fazer piiiiiiiiii... Eu falei para o médico, tinha um médico intensivista que ficava no corredor observando esses dados aí, de pressão, essas coisas: ‘Doutor, é um momento histórico’. Ele respondeu:
‘Realmente’. Até me arrepio", conta com exclusividade ao Estado Oliveira. "De repente, (os sinais vitais) voltam (a aparecer no aparelho), e eu falei: ‘Doutor, está voltando!’. E ele: ‘Não, não, isso é assim mesmo, vai, volta, mas, infelizmente, ele acabou de falecer", completa o policial, hoje ajudante de ordens do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), então vice de Covas e que, àquela altura, já estava no comando do Estado.
Não deu tempo de Oliveira externar emoção. Sua função exigia que ele comunicasse imediatamente o chefe da Casa Militar que, em seguida, informaria Alckmin da morte de Covas.
Foi o que ele fez. Somente horas depois, quando já era dia, o dever deu lugar ao sentimento. "Nós descemos a (avenida) Rebouças (transportando o corpo) com o carro (funerário). Realmente, esse momento é único (...) Vários helicópteros voando, a rua parando, os seguranças chorando porque ele não era parente, mas a gente viveu como se fosse, nós vivemos a doença dele e procuramos, da melhor forma, minimizar os problemas dele. É um ser humano que estava ali", conta o hoje major, aos 47 anos.
Treinamento. De fato, todos os oficiais da equipe de segurança de Covas foram obrigados a passar por um treinamento de enfermagem para acompanhá-lo, pois o governador se recusou a sair de cena para se dedicar exclusivamente ao tratamento. Pelo contrário. Mesmo debilitado, ele tentava manter a rotina do cargo. "Ele estava realmente no comando do Estado", relembra Oliveira. "Você percebia nele a vontade de querer que as coisas melhorassem. Ao mesmo tempo, você percebia a fragilidade, porque a doença ia avançando."
A insistência de Covas em não sucumbir à doença foi acompanhada pela imprensa. Certa vez, ele chegou a desabafar com os jornalistas: "Eu estou para morrer, podem publicar", bem ao seu estilo que transitava entre o rabugento e o sincero. No início de 2001, o câncer havia atingido as membranas que revestem a medula cervical e o cérebro, e Covas pediu à equipe de segurança para ir até Bertioga, no litoral paulista. "Vamos até a praia porque é última vez que eu vou vê-la", disse ele, segundo Oliveira.
No helicóptero. No litoral, ele teve uma recaída, e a família mandou Oliveira ir ao Guarujá buscar o médico David Uip, que determinou sua transferência imediata ao Incor, onde se submeteria ao tratamento quimioterápico. O governador, sua mulher, Lila, a filha Renata, o médico e o policial foram de Bertioga para São Paulo no maior helicóptero do governo, que pesa cerca de cinco toneladas. Diante da gravidade do caso, Uip disse que o piloto deveria pousar direto no heliponto no Hospital das Clínicas, ao lado do Incor, cuja capacidade não ia além de três toneladas.
"O piloto manteve o helicóptero ligado sem soltar todo o peso (ao pousar). Nós tiramos ele (Covas) no braço. Era um momento em que não tinha o que fazer. Era emergência mesmo", relembra Oliveira. Segundo ele, momentos antes do pouso, Covas encontrou tempo para brincar. "Ele disse para a dona Lila e para a Renata saírem correndo imediatamente porque o prédio ia despencar." A mesma história é contada por Alckmin para sublinhar o "estilo Covas".
O prédio do hospital resistiu ao peso da máquina, mas Covas desabou, pela primeira vez, em frente a Oliveira. "Realmente eu vi uma fragilidade, ele chorando com a dona Lila porque estava morrendo", relembra. "Foi a última vez que ele falou", conta.
Na quarta-feira, 7 de março, Oliveira voltaria de novo ao litoral, dessa vez na cabine de um caminhão do Corpo de Bombeiros. Na carroceria viajava o corpo de Mario Covas para ser sepultado em Santos. Perto do mar.
DEPOIMENTOSAécio Neves, ex-governador e senador do PSDB por Minas Gerais
'Ganhei na Câmara por causa do Covas'
"Mário Covas não se preocupava com circunstâncias, mas com convicções. Ou era admirado ou era temido. Tem um episódio muito marcante na minha vida com o Covas, quando, em 2000, eu tentei fazer uma aliança para me eleger presidente da Câmara. Eu achava que era hora de o partido assumir a presidência da Casa. Mas eu não tinha o apoio do governo, que queria preservar a sua aliança com o PFL. Decidi então ir a São Paulo, falar com o governador. Disse a ele: governador, eu tenho condições de disputar. Ele me perguntou: ‘Você acha que tem chance? Tem os votos? Então dispute’. Numa sexta-feira, já doente, Covas pegou um avião e foi a Brasília. Entrou na sala da liderança, abraçando todo mundo, e disse: ‘E por que é que o PSDB não pode ter a presidência da Câmara? Pode sim. Aécio é nosso candidato’. Eu ganhei a eleição à presidência da Câmara por causa do Mário Covas."
Geraldo Alckmin, governador de São Paulo
'Amava as pessoas e sofria com o problema delas'"O Mario Covas era um homem que tinha apreço pela democracia porque tinha respeito pelas pessoas e pelo povo. Ele era, às vezes, bravo. Eu me lembro que uma vez, chegando ao gabinete, ele governador, eu, vice, e a dona Ana, a secretária, falou para o Mario Covas: ‘Como o senhor está bem-humorado!’. Ele olhou assim para ela e disse: ‘Não conte para ninguém’. Às vezes, também revia suas posições. Eu fui eleito presidente do PSDB de São Paulo, e o Covas tinha apoiado a Zulaiê Cobra Ribeiro. Veja o que é um homem magnânimo, porque eu não tive o apoio dele, ganhei a eleição e depois ainda virei vice-governador dele duas vezes. Eleito presidente do diretório, fui ao gabinete dele. Tinha lá um jornal pregado na parede: ‘Covas derrotado’. Falei: ‘Olha senador, me dê tempo, e o senhor vai ver que eu serei um presidente do partido’. Três semanas depois, fizemos um almoço para arrecadar fundos para o PSDB. O Covas e a dona Lila foram os primeiros a chegar."
José Serra, ex-governador de São Paulo
'Uma apoiou o outro nas vitórias e nas derrotas'"Na minha memória, a cada ano que passa, o Mario Covas se torna maior e melhor. Vão ficando seus atributos essenciais: a coragem de defender suas ideias, a dedicação à vida pública, a integridade pessoal. Lembro com carinho do Mario. Eu o conheci em Santos quando eu era presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes) e ele, deputado recém-eleito, pela primeira vez, antes do golpe de 1964. Só o revi quando voltei do exílio, no final dos anos 70. Passamos a conviver e batalhar sempre do mesmo lado. Cada um apoiou o outro nas vitórias e derrotas. Devo a ele ter sido relator de vários capítulos importantes de nossa Constituição. O Mario era esquentado. Em comícios, mais de uma vez, ajudei a segurá-lo quando ele se dispunha a descer do palanque e partir para a briga, quando alguém gritava ou exibia algo ofensivo, alguma baixaria. O Mario Covas não tinha casca grossa para absorver ofensas pessoais, o que é incomum entre os políticos."
Bruno Covas,secretário do Meio Ambiente do Estado
'Mais que as obras, ficaram os exemplos' "Meu avô fazia política 24 horas por dia, sete dias por semana. Em 1995, vim morar com ele em São Paulo para estudar e acabei acompanhando-o nos seis anos de governo. Foi uma grande experiência, que nos aproximou. É impressionante o fato de que em um país como o Brasil, onde ser político muita vezes significa somente coisas ruins, ele ainda seja tão lembrado dez anos depois de sua morte. Muitas pessoas, quando contam histórias dele, se emocionam. Se a gente for ver tudo o que ele fez, muito mais do as obras e outras realizações, ficaram os exemplos. O grande sonho dele era construir uma ponte para reduzir a distância entre ricos e pobres. Uma vez, nas férias, cheguei em casa de madrugada, fazia muito frio e ele estava acordado. Perguntei, de brincadeira, se ele havia perdido o sono. ‘Como você consegue dormir sabendo que há tanta gente que não tem onde morar?’, foi a resposta que deu."
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO