“A moral é o cerne da pátria, a corrupção, o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que a pretexto de salvá-la, a tiranizam. NÃO ROUBAR E NÃO DEIXAR ROUBAR! POR NA CADEIA QUEM ROUBE: EIS O PRIMEIRO MANDAMENTO DA MORAL PÚBLICA!” (Ulisses Guimarães – discurso na sessão de promulgação da Constituição, em 05.10.1988)
Quem tem hoje mais de 45 anos de idade e
desde muito cedo se interessou pelo Brasil e pela política brasileira
certamente entenderá por que a semana que transcorre entre os dias 5 e 12 de
outubro é politicamente significativa, não importa em que ano estejamos. Ela
começa com a data comemorativa de nossa maior conquista contemporânea (a
Constituição de 1988) e conclui-se combinando a data da padroeira do Brasil com
a da morte de Ulisses Guimarães, o líder político promulgador da mesma Carta, morte
ocorrida em 1992, num acidente aéreo, ao sobrevoar a Serra da Mantiqueira, em
feriado fatal. Entre os dois eventos, somente quatro anos, durante os quais a
figura central da vida política brasileira nas duas décadas anteriores
transitou do esplendor da consagração política e cívica ao amargor do
ostracismo eleitoral. Ao falecer já não presidia seu partido, nem a Câmara dos
Deputados. Um horizonte radioso perdera-se em densa nuvem, mas Ulisses foi dos
raros que saíram da vida para entrar na História sem que para sabermos disso
precisemos consultar livros. Seu corpo não foi encontrado. Sua memória virou
vento a soprar, da altura da Mantiqueira, lições aos nossos ouvidos. Se
cinquentões hoje podem acessá-la desse modo, que escrevam sobre ela aos mais jovens,
carentes da sua partitura.
Neste 2021 atribulado houve quem cuidasse
de lembrar dessas coisas. Do brado retumbante do Dr. Ulisses no seu maior
outubro e do humor vívido do seu brando outono. Chegara-me, por amigos, o célebre
discurso da promulgação da Constituição e uma gravação da entrevista que
concedeu ao Roda Viva, alguns meses antes de nos deixar.
Na entrevista, as tiradas coloquiais são impagáveis e educam tanto quanto lições de lógica e sensibilidade políticas, cuja falta hoje é tanta, que virou um lugar comum apontá-la. O que mais impressiona, no entanto, é ver, com o passar do tempo, sua figura ficar cada vez maior e as pelejas do controverso varejo político, no qual não regateava em mergulhar, se diluírem na constatação principal: foi político com senso de medidas e proporções adequado para ser imprescindível na atitude de assumir sempre uma intransferível responsabilidade pelos atos (seus e de quem liderou) e pelas consequências que geravam. Impermeável à perfeição, jamais fomentou nos correligionários, ou mesmo no povo, identidades consigo. Consciente de sua luminosa maleabilidade (que lhe levou, uma vez, a confidenciar ao país só agir sob pressão, em contraste com a firmeza férrea do gal. Geisel), nunca desejou subir aos céus porque já sabia voar com os pés no chão. No barro da política se sentia em casa enquanto as nuvens lhe eram estranhas. Prudentemente, viveu longe delas e, de fato, como a confirmar uma intuição sua, foi entre elas que encontrou a morte.