domingo, 7 de dezembro de 2008

''É uma luta que não acaba nunca''


AI5, 40 anos depois
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Para Serra, que amargou o exílio, os jovens entendem o significado da ditadura quando a comparam com o regime democrático

O governador José Serra entende que a melhor explicação que alguém pode dar aos jovens sobre o significado da ditadura é mostrar como ela era. "É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia", disse ele. Serra opinou que a busca pelo aperfeiçoamento da democracia "é uma luta que não acaba nunca". Eis a entrevista:

O senhor estava no Chile no dia 13 de dezembro de 1968. Como entendeu a notícia da edição do AI-5, na ocasião?

Pelas informações que recebia do Brasil, eu já estava aguardando um endurecimento do regime. Soube da notícia pela Conceição Tavares, quando estava de cama, com febre tifóide, uma infecção cuja incidência era relativamente alta na região de Santiago. Na época, minha mulher estava grávida, eu tinha acabado o curso de pós-graduação em Economia e havia sido contratado pela universidade. Eu não sou da "geração de 1968". Havia deixado o Brasil em 1964, depois do golpe. Era presidente da UNE e nas semanas que sucederam o golpe fui bastante procurado pelos órgãos de repressão. Sem condições de permanecer em liberdade, passei pela Bolívia e fui para a França, onde contava com uma bolsa para estudar Economia, embora fosse aluno de Engenharia, na Politécnica de São Paulo. Voltei ao Brasil em 1965, clandestino, mas não houve condições de permanecer. Fui então para o Chile, com o propósito de terminar meus estudos. Em 1966, fui condenado pela Justiça Militar, num processo inteiramente inventado. Por isso, havia perdido quase toda as esperanças de regressar ao Brasil, no curto prazo, para uma vida normal, aberta. O AI-5 eliminou esse "quase". Aliás, acabei tendo uma recaída da febre tifóide, o que é raríssimo. A probabilidade, segundo os médicos, era de 1%. Quem sabe foi uma somatização do AI-5.

E como o senhor o vê hoje?

Quarenta anos depois o vejo como o pior episódio da história brasileira do pós-guerra. Senti que iria se abater sobre as forças da esquerda, em todas suas variantes, uma repressão para valer. Seria a ditadura de verdade, sem passeatas nem canções de protesto. Não acreditava na solidez de uma reação armada. Fiquei no Chile até 1974, já com dois filhos. Lá, sofri a repressão que não chegou a me atingir no Brasil, pois fui preso depois do golpe e, creio, por pouco e por muita sorte, não entrei numa lista de "desaparecidos". Aprendi muito, muitíssimo, com dois golpes e dois exílios nas costas. Sobretudo, a nunca subestimar os valores da democracia, a importância de obedecer as regras desse regime e, também, das políticas públicas responsáveis.

A seu ver, que país saiu dessa experiência?

Um país mais complicado, mais difícil. Só nos livramos do AI-5 em 1979, e do regime autoritário, em 1985. O preço foi alto. A Nova República teve de se defrontar com enormes expectativas de liberdade e de solução rápida dos problemas de desigualdade, num Estado relativamente desorganizado. Entre as forças que vinham da esquerda, prevalecia, e isto aconteceu até o PT vencer as eleições presidenciais, a idéia de que mudança gradual é enganação, o que valia era a "ruptura", e que o governo estava sempre do lado errado. A ditadura que começou em 1964 e se materializou completamente em 1968 frustrou também a renovação política da sociedade brasileira. Grande parte do que havia de melhor na minha geração e nas seguintes ou ficou à margem da política ou não aprendeu a fazer a política democrática.

Qual o peso da resistência ao regime na construção de lideranças que hoje ocupam cargos importantes da administração pública do País?

Para algumas lideranças, a resistência contribuiu para firmar convicções mais realistas e solidamente democráticas. Para outras, não.

O senhor foi militante da Ação Popular (AP). Como viu, do exílio, a opção que a AP depois fez pela luta armada?

A AP, como tal, não chegou a entrar na luta armada, a praticar a luta armada. Eu acompanhei o processo a distância, pois não estava no Brasil e tive pouca influência direta nos rumos da AP. Depois de 1964, a AP optou pelo marxismo-leninismo, seja lá o que isso puder significar hoje em dia. Depois se desenvolveu uma vertente forte, maoísta. Mas o partido acabou se dividindo, com os maoístas indo para o PC do B, que efetivamente tentou fazer a luta armada no Araguaia. Os que ficaram com a AP, apesar de não se organizarem militarmente, foram sendo rapidamente dizimados, muitos sob as piores torturas, como Paulo Wright, para quem escrevi mais de uma vez insistindo para que saísse do Brasil, pois acabaria sendo morto. Ele e muitos outros.

O que o senhor pensava da luta armada?

Desde que deixei o Brasil, em 1964, eu era cético sobre as possibilidades de um enfrentamento armado do regime, seja no esquema do foco guerrilheiro, o "foquismo", que procurava replicar a revolução cubana, seja no esquema da guerra popular maoísta, do campo para as cidades. O texto clássico do foquismo foi do Régis Debray, intitulado Le Castrisme, la Longue Marche de l?Amérique Latine, publicado no Les Temps Modernes, revista do Sartre, que eu lia na França, quando lá estava. Não me seduziu nem intelectual nem politicamente. No Brasil, no final dos anos 60, o texto mais influente sobre o foquismo era de um militante da Var-Palmares ou da VPR, com o cognome de Jamil (Ladislau Dowbor).

Como explicaria aquele período aos jovens que não conheceram a ditadura?

Não é fácil explicar, mas basta descrever. A melhor explicação possível sobre o que significou a ditadura é mostrar como eram coisas quando ela prevalecia. É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia. E, tanto quanto isso, se prepare para lutar pela democracia. É uma luta que não acaba nunca.

AI-5, 40 anos depois

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

As principais revelações destes cinco personagens, Jacob Gorender, Fernando Gabeira, Aloysio Nunes Ferreira, Jean Marc von der Weid, Armênio Guedes, estão aqui contidas e, em seu conjunto, formam um rico painel para explicar as visões da esquerda.

Jacob Gorender: Erro da esquerda foi isolamento da massa

O historiador Jacob Gorender, que produziu impactantes relatos sobre a luta da esquerda contra a ditadura militar, lembra que circulava em liberdade antes do AI-5, embora já estivesse vinculado ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), fundado por dissidentes do PCB que queriam a luta armada. Quando o ato veio, ele não mergulhou na clandestinidade nem se exilou, como fez a maioria dos militantes da esquerda radical, nem andava armado. Apenas acrescentou alguma prudência a seus deslocamentos.

Hoje ele é um crítico da luta armada, embora tenha ressalvas amenizadoras. "O poder não viria pacificamente", diz. Reconhece que Che Guevara foi "precipitado e imprudente" ao abrir uma frente guerrilheira quando estava isolado, na Bolívia.

Isso acabou se repetindo aqui, admite: "A luta armada tinha de ser combinada com ações de massa." Ele critica as opções que restaram: "Ficamos isolados, sem condições de dar respostas adequadas às acusações que o regime militar, que nos chamava de terroristas, nos fazia."

Gorender diz que hoje está convencido de que foi errado insistir na guerrilha sem ter meios de falar com as massas que eram objeto da luta política. Mas ele tem uma visão generosa sobre os erros cometidos: "A esquerda errou, mas nós temos de compreender a situação em que os erros foram cometidos." Ao final, desabafa: "O que não poderão dizer é que nós fomos passivos." Fernando Gabeira: Os dois lados não leram os sinais

Em outubro de 1968, quando 920 estudantes foram presos no congresso da UNE, em Ibiúna, a maior preocupação da polícia ao anunciar o seu feito foi dar mais destaque às pílulas anticoncepcionais apreendidas com as moças do que ao "material subversivo" encontrado, lembra o hoje deputado Fernando Gabeira (PV-RJ). O governo militar era, além de autoritário, conservador, diz ele, e isso se revelaria na censura depois do AI-5.

Esse, para Gabeira, foi o primeiro sinal da fronteira entre os comportamentos que muitos anos depois seriam uma grande referência de 1968. "Na época, a extrema direita e a esquerda radical ignoraram esses sinais porque eram igualmente conservadoras", afirma o ex-guerrilheiro do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR), que participou do mais importante seqüestro do regime militar, o do embaixador americano Charles Burke Elbrick.

Ele analisa que a luta armada pregada e sustentada pela esquerda radical trazia um leque de contradições que não se resolveriam até hoje: "A dicotomia entre burguesia e proletariado não tem de acabar com a extinção de um deles", ironiza.

Ele diz que o exílio lhe serviu para fazer observações e uma profunda avaliação crítica. Quando voltou ao Brasil, em 1979, trazia uma nova agenda, recolhida na Europa: a importância das mudanças comportamentais, o apreço pelas liberdades individuais e pela democracia e uma atenção para os problemas do meio ambiente.

Aloysio Nunes Ferreira: Diferença que pode separar vida e morte

"Tínhamos direito de recorrer à força para derrubar o regime", defende o chefe do Gabinete Civil do governo paulista, Aloysio Nunes Ferreira, à época militante da Ação Libertadora Nacional (ALN). Mas ele reconhece o equívoco que a opção pela luta armada representou: "A gente não sabia, mas o Brasil não estava à espera de jovens com armas na mão para libertá-lo."

Até 1968 Aloysio era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas naquele ano ele se tornou dissidente e derivou para a ALN e para a luta armada. Menos de dois anos depois, já no exílio, retornaria ao PCB. "Eu fui influenciado pela idéia da revolução, como milhares de jovens do meu tempo", explica. Quando voltou ao Brasil, depois de passar anos exilado na França, engajou-se, como a imensa maioria dos militantes do PCB, no MDB e na luta democrática.

Ele diz que os desencontros da luta armada serviram para ensinar-lhe lições. "A esquerda que se armou aprendeu com o tempo", reconhece. Mas o aprendizado maior, ensinado pelas perseguições da ditadura, que apelava para o arbítrio e ignorava a importância da Justiça e da imprensa livre, foi o que ele chama de liberdades formais, que à época eram solenemente ironizadas pelas "vanguardas revolucionárias". Aloysio diz: "Passamos a dar valor a liberdades formais, como o habeas corpus. Em muitos casos, elas, que nós tanto esnobamos, foram a diferença entre a vida e a morte."

Jean Marc von der Weid: Passeata reclamava agenda democrática

"Foi uma surpresa. Não sabíamos o que fazer com aquele mar de gente. Não entendemos que aquela multidão exigia uma agenda democrática e não uma receita revolucionária", observa o ex-líder estudantil Jean Marc von der Weid, sobre a Passeata dos 100 mil, que aconteceu no Rio, no dia 26 de junho de 1968, e assustou o regime militar. "Ali, era hora de progresso democrático, como o que começamos a alcançar dez anos depois", diz. "Naquele momento, acenar com democracia teria tido grande impacto."

Jean Marc, economista, seria eleito presidente da UNE em 1969, batendo José Dirceu, então presidente da União Estadual de Estudantes de São Paulo. Quarenta anos depois, ele afirma que a revolução pretendida pela vanguarda da esquerda não se refletia na realidade: "O que fazíamos não era uma revolução". Para ele, o legado de 1968 foi a afirmação da democracia e a mudança dos comportamentos.

Ele conta que as lideranças estudantis, apesar de radicais, tentavam não irritar os militares. "Nas passeatas, fazíamos um esforço enorme para controlar as provocações." Nem sempre funcionava, porque sobravam dois tipos incontroláveis, diz: os "porra-locas" e os infiltrados pela repressão. No enterro de Edson Luís, por exemplo, um provocador gritou: "Vamos atacar o Palácio Guanabara!" (sede do governo da então Guanabara). "Foi difícil segurar", lembra.

Armênio Guedes: Esquerda tinha de reagrupar forças

A partir de 1964, quando o golpe esfarinhou as facções de esquerda, a luta deveria se centrar no reagrupamento de forças, a ser conquistado com a paciência de uma organização lenta, afirma, com a experiência dos 90 anos, Armênio Guedes, histórico militante do Partido Comunista Brasileiro. O único grupamento de esquerda que atravessou todo o período ditatorial rechaçando a luta armada, o PCB se engajou em sua própria receita, diz.

"Havia muita influência radical em 1968. Não tínhamos força para impor nada aos militares. Nós tínhamos de reagrupar forças, não atacar um adversário que era mais forte e mais organizado que nós", observa. Cabia, naqueles momentos turvos, a "resistência possível", descreve. Ele não tem dúvida em afirmar que a luta armada acabou funcionando, nos anos seguintes, como combustível para alimentar a linha-dura militar.

Já o PCB, lembra, ajudou a organizar o MDB, para combater o regime militar pela via democrática. Em 1970, na primeira eleição com o AI-5 em vigor, o brasileiro negou adesão à luta - os votos brancos e nulos somaram 30,3% (em 2006, foram 10,5%). Mas, com o correr dos anos, confiou em que o voto era a sua arma para derrubar a ditadura. O ataque do regime ao PCB deu-se em 1975, quando os militares perceberam que a estratégia de lenta acumulação de forças pela via democrática começara a dar certo em 1974, quando o MDB elegeu senadores em 16 das 22 disputas estaduais.

Ato Inconstitucional


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Fausto Martin De Sanctis não era nascido quando a Constituição de 1946 começou a perder a validade e o Brasil iniciava, em 1964, um período de autoritarismo cujo fim só seria consolidado 24 anos depois com a promulgação da Carta de 1988.

Tinha três anos quando as prerrogativas constitucionais foram suspensas por completo, no dia 13 de dezembro de 1968, e substituídas pela vontade dos donos do poder mediante da edição do Ato Institucional nº 5.

Era um adolescente de 13 anos quando, em 1978, o regime se viu compelido a revogar seu ato mais arbitrário, data que se convencionou marcar como o fim da ditadura e o início da distensão.

A democracia só voltaria quase inteira em janeiro de 1985, com a eleição ainda indireta de um presidente civil, morto antes da posse, substituído pelo vice, aliado do antigo regime, um exemplar fiador da transição.

Aos cidadãos brasileiros só seriam devolvidos na plenitude seus direitos e garantias em 1988, com a conclusão da Assembléia Nacional Constituinte e o arcabouço legal sob o qual Fausto Martin De Sanctis iniciaria três anos depois, aos 27 de idade, a sua carreira de juiz.

Trajetória impecável, implacável, referida no mais escorreito senso de Justiça. Especializado em crimes de colarinho-branco, condenou gente importante, traficantes, doleiros, empresários, banqueiros, enquadrou aos costumes entre todos os mais notórios.

Tudo dentro dos conformes até o momento em que, acusado de extrapolar os limites da lei, deu expressão ao sentido de seu coração justiceiro e resolveu negar a supremacia dos ditames da Constituição, para ele apenas um conjunto de idéias que não podem restringir as ações necessárias à transformação do Brasil.

Disse o juiz em sua justificativa: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado. A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição."

Fausto Martin De Sanctis foi muito criticado por externar um pensamento atinente ao senso comum, expressão pronta e acabada de um sentido de justiça voluntarioso, concernente às ruas, mas incongruente com o dever dos tribunais: a guarda absoluta do respeito às leis, não obstante suas limitações e imperfeições.

O juiz De Sanctis certamente conhece muito bem o texto do ato mais inconstitucional da história recente do Brasil, salvo-conduto à violência do Estado contra os cidadãos que, ao juízo dos parâmetros da ditadura, eram inimigos do Brasil.

A ausência de vivência daquela época talvez tenha ensejado no juiz e em tantos outros brasileiros de sua geração o sentimento de que o sentido do correto é superior aos entraves da lei. Tudo contra o mal se explica e justifica.

A distância de 40 anos obscurece a visão de que Artur da Costa e Silva e 16 ministros de Estado tinham plena convicção de que defendiam a preservação do modelo institucional mais conveniente ao Brasil.

Ao juiz e a todos os brasileiros que consideram a Constituição insuficiente para o cumprimento da missão indispensável de pôr o País nos eixos, seria recomendável a leitura daqueles 12 tenebrosos artigos.

Não porque em qualquer hipótese queiram se associar às ordens ali escritas, mas para que possam perceber o germe do abuso subjacente a um senso de justiça deturpado.

Ali, a alegação apresentada era a do imperativo de se preservar "a autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, desse modo, os meios indispensáveis à obra da reconstrução econômica, financeira, moral e política do Brasil".

Aqui, 40 anos passados, quando o juiz De Sanctis serve apenas como símbolo de uma boa intenção apartada da referência histórica e da força da isonomia dos princípios, o que se tem no Brasil é o risco da opção pelo caminho mais curto e aparentemente mais justo.

Não se deve comparar os propósitos, dirão os que ainda não compreenderam que não há cotejos acusatórios, mas um convite à reflexão. De fato, mas vamos reparar: no AI-5, que deu ao regime o poder de decidir sobre a vida e a morte dos brasileiros, nada autoriza a violência, a tortura.

Ela aparece como conseqüência. Tudo começa como uma proposição de respeito à lei, mas acaba em abuso porque os meios implicam indiferença às normas vigentes, "insuficientes" e, portanto, passíveis de atropelo.

Vale para o bem e para o mal, dependendo do ponto de vista do que seja bom ou mau. Esses 40 anos de AI-5 nos ensinam uma comezinha lição: antes uma Constituição imperfeita que a negação da supremacia do valor constitucional.

O pós-Lula começou, com ele no Planalto

Elio Gaspari
DEU EM O GLOBO


Nosso Guia perdeu seu melhor papel e está preso à bola de ferro dos juros que a ditadura do Copom lhe impõe

O GOVERNO Lula começou a terminar no dia 26 de outubro, no meio da crise econômica mundial, quando o PT perdeu a eleição em São Paulo e José Serra, um dos candidatos da oposição, elegeu Gilberto Kassab.

Naquela noite desmancharam-se o Brasil do pré-sal, a base triunfalista do projeto eleitoral do poste Dilma Rousseff e a funcionalidade do discurso da "marolinha".

Nosso Guia está diante de uma adversidade que lhe nega o papel que melhor desempenha. Não pode mais culpar os outros ("Bush, resolve tua crise") nem propor idéias exóticas (uma reunião de todos os presidentes dos Banco Centrais, inclusive a doutora Siosi Mafi, do reino de Tonga).

Constrangido, Lula carrega a bola de ferro da taxa de juros insana imposta por um ente extra-constitucional chamado Copom.

Ele, que não veste smokings, vê-se metido na casaca de maestro de uma ekipekonômica cuja sabedoria universal quebrou o mundo. Uma enrascada: não pode ser o que gosta de parecer e é obrigado a continuar parecendo-se com o que não gosta de ser.

Em abril passado Lula chegou a pensar (e a agir) para mudar o rumo da política econômica do seu governo. A conquista do "investment grade" pelo Brasil anestesiou-lhe a audácia e, daí em diante, passou a dizer que "o Brasil vive um momento mágico".

A idéia segundo a qual um presidente pode rolar a crise econômica injetando otimismo no mercado demanda uma pré-condição: o discurso não pode agredir a realidade. Os juros altos agravarão os efeitos da crise internacional sobre o Brasil. Quando uma economia paga 13,75% ao ano e perde US$ 7,1 bilhões num só mês, aquilo que poderia ter sido um remédio virou veneno.

Os dois anos de governo que restam serão difíceis e a maneira como Nosso Guia e a nação petista lidarão com a adversidade haverá de marcar a história da sua gestão. Num quadro de dificuldades econômicas e fortalecimento de candidaturas oposicionistas, não se pode prever qual será o grau de ferocidade com que os companheiros irão à campanha, muito menos o nível de desembaraço que oferecerão aos aloprados com suas sacolas de lona. Ressalve-se que se percebe no tucanato um certo encanto pelo adestramento de mastins, bem como uma habilidosa manipulação de aloprados com malas Vuitton velhas.

Pode parecer um exagero a afirmação de que o governo de Lula já começou a terminar, mas o senador Garibaldi Alves (PMDB) e o deputado Arlindo Chinaglia (PT) deram um sinal premonitório: ambos gazetearam uma cerimônia organizada por Lula no Planalto. Isso aconteceu no dia 28 de novembro, uma sexta-feira. Os dois tinham mais o que fazer em seus Estados. Como se diz nos palácios, em fim de governo só quem bate à porta é o vento.

Bota tsunami nisso!


Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - A oposição tem como líquido e certo que José Serra será presidente da República, crente que a crise econômica irá explodir empresas e empregos e, com eles, os 70% de popularidade de Lula e o palanque de Dilma Rousseff.

Pode ser? Tudo pode, mas há três fatores para contrariar a certeza.

O primeiro é que, aqui e alhures, considera-se que nenhum país escapa da crise, mas o Brasil tem indicadores macroeconômicos sólidos, bom colchão em dólares (ainda...) e mercado interno robusto.

O segundo é que a popularidade de Lula, faça chuva, faça sol, mensalão ou cuecão, fale ele o palavrão que falar, tem sido uma rocha.

E o terceiro é que o mesmo Datafolha que apurou os 70% de Lula completou a informação: 78% dos brasileiros estão otimistas e achando que a vida vai melhorar em 2009.

Mais: 58% acreditam que serão pouco afetados, e 10%, nada afetados. Crise? Que crise?Os brasileiros, portanto, ainda acreditam em Papai Noel e que a crise é só uma marolinha, enquanto o tsunami devora 1,2 milhão de vagas em três meses e 533 mil num único mês nos EUA. E está vindo.

Isso demonstra má informação e confiança quase mística em Lula.Com motivo. Nos anos de bonança externa, durante seu governo, a renda e o emprego aumentaram, a classe C virou metade da população, o PAC alimentou votos para cima e o Bolsa Família, para baixo.

Lula, portanto, tem que reduzir ao mínimo o efeito da crise no eleitor de carne e osso (baixando juros, por exemplo?) e fazer como no mensalão, no dossiê, na crise aérea, na guerra da Abin e da PF: fingir que não é com ele. O que der certo contra a crise, o mérito é dele; o que der errado, a culpa é do Bush, do mercado, do liberalismo, dos astros.

Para eleger Dilma, Lula tem que calibrar o equilíbrio entre o tamanho da crise e sua popularidade.

Um tsunami, para afetar seu projeto, tem que ser de bom tamanho.

Senão Lula fura 2009 e surge em 2010 na crista da onda.

União dos opostos


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Não há partido com melhor sensibilidade para sentir para que lado os ventos estão soprando do que o PMDB, e os movimentos na aliança governamental mostram que a biruta do partido já está mudando de direção, não tão depressa que faça os diversos grupos que estão dentro do governo perderem os últimos suspiros de poder, nem tão devagar que não permita um realinhamento para a sucessão de 2010 em boas condições políticas. A disputa pela presidência do Senado é um bom indicativo disso. Tudo parece conspirar para que se repita com o PT, e não como farsa, a crise política que quebrou a união do PSDB e do então PFL e ajudou a derrota do PSDB na eleição de 2002.

As sucessões das presidências da Câmara e do Senado já mostram que, mais uma vez, poderão fazer vítimas na aliança governamental. A sucessão da Câmara, que opôs o então PFL ao PSDB, foi o início do fim da aliança política que em 2002 deveria ter apoiado José Serra à sucessão de Fernando Henrique, e acabou com as principais lideranças do PFL nos braços de Lula.

O deputado Inocêncio Oliveira, que era o candidato do PFL para assumir a Câmara num rodízio previamente combinado, foi surpreendido por uma ação de bastidores do tucano Aécio Neves, desestabilizando a aliança. Quando o então presidente Fernando Henrique soube da articulação, ela já estava consumada.

Desta vez, por acordo, o PMDB, que tem o direito de presidir as duas Casas por ter as maiores bancadas, está exigindo o rodízio na Câmara, que o PT dirige por concessão do PMDB.

Mas, para que o rodízio entre os dois principais partidos de apoio ao governo permaneça valendo, havia a presunção de que o PMDB deixaria o PT assumir a presidência do Senado.

O veto de Renan Calheiros ao candidato natural do PT, o senador Tião Viana, está apenas dando início ao processo de disputa intensa que, ao que tudo indica, o PMDB revigorado nas urnas municipais vai desencadear contra o PT.

Pode ser até que a decisão do PMDB de lançar candidatura própria não se viabilize por falta de nomes de consenso dentro do próprio partido, mas apenas a manobra que está acontecendo já demonstra a impossibilidade de manter essa união PT-PMDB até a eleição de 2010 sem um racha tradicional.

O presidente do PMDB, Michel Temer, de amplo acesso nas hostes oposicionistas, já tem garantido o apoio do PT para a presidência da Câmara, mas se o PMDB do Senado não aceitar o rodízio, também a disputa na Câmara ficará sem parâmetros, dando margem a que um novo fenômeno Severino Cavalcanti surja, com o apoio do baixo clero ao candidato autônomo Ciro Nogueira, do PP.

No Senado, para se eleger candidato do governo, o petista Tião Vianna depende mais dos acordos que vem fechando com o PSDB do que do apoio do PMDB, que busca em José Sarney uma alternativa partidária ao desejo do Palácio do Planalto.

Embora as coligações das últimas eleições municipais sugiram um forte alinhamento do PMDB com o PT, alianças entre PSDB e PMDB não são armações políticas banais. Muito embora o PT tenha participado de mais de 40% das vitórias de candidatos do PMDB, o PSDB esteve presente em cerca de 32% delas.

A freqüência de alianças entre os três maiores partidos teve a preponderância de alianças entre o PMDB e o PSDB. Na maioria dos estados do Norte-Nordeste, no entanto, o PMDB está muito mais fortemente aliado ao PT, por conveniências regionais que já estão se desencontrando, como é o caso da Bahia, onde o líder peemedebista Geddel Vieira Lima, embora ministro da Integração Nacional, mantém um desentendimento cordial com o governador petista Jaques Wagner, a quem derrotou na eleição para a prefeitura de Salvador.

Por sua vez, os três partidos de oposição, PSDB, DEM e PPS, que acabam de oficializar uma aliança política para a eleição de 2010, saíram das eleições municipais como a maior força política, com 1.416 prefeituras.

O presidente Lula teve recentemente o exemplo concreto de como sua base parlamentar tão grande quanto heterogênea não funciona quando há indefinição quanto ao futuro político.

Mesmo batendo seu próprio recorde de popularidade, atingindo 70% na última pesquisa do Datafolha, o presidente Lula já não tem a capacidade de ditar o comportamento de seus aliados, como na tentativa de aprovar uma reforma tributária que não agrada a governadores fortes politicamente como o de São Paulo, José Serra, que posa com Lula e defende a reforma tributária, mas mexe seus pauzinhos, inclusive no próprio PT, para inviabilizar sua aprovação.

Os próximos meses serão cruciais para os planos futuros do governo. Agora que já se sabe pelo próprio médico Lula que o paciente Brasil "sifu", é só esperar pelos sinais da crise que chegarão mais explicitamente no primeiro trimestre do próximo ano para vermos a quantas andará o projeto sucessório oficial.

Lula, que também tem olfato de caçador, já sentiu a mudança dos ventos, e trata de se aproximar de José Serra, provável candidato do PSDB e por enquanto líder das pesquisas de opinião, para eventualmente fazer uma transição tão cordial quanto a sua com Fernando Henrique, caso se caracterize inviável uma candidatura oficial.

Serra também trata Lula a pires de leite, tendo até mesmo discordado publicamente de Fernando Henrique para defendê-lo de seus ataques, na certeza de que enquanto a crise econômica não roer sua popularidade - se é que vai mesmo roer -, o presidente será um personagem importante na sucessão presidencial, e não tê-lo como inimigo pode ser fundamental.

Reforma e contra-reforma


Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Não há no Brasil dois estados iguais, mesmo assim é possível avaliar a atuação de suas elites. Basta, por exemplo, comparar o Ceará com o Maranhão ou Pernambuco com a Bahia nos últimos 50 anos

Um artigo do secretário de Desenvolvimento do Espírito Santo, Guilherme Dias, ex-ministro do Planejamento do governo FHC, intitulado “A anti-reforma” (Folha de S.Paulo, 04/12), tirou do sério o relator da reforma tributária, deputado Sandro Mabel (PR-GO). Ontem, o parlamentar replicou com outro artigo contra os “anti-reforma”, no qual gasta mais tinta ao acusar o economista de teleguiado do governador paulista José Serra do que esgrimindo argumentos técnicos. Por que esse assunto exalta os ânimos? É por causa da ruptura do pacto federativo.

Desigualdades

A reforma tributária proposta pelo governo Lula mexe num vespeiro ao propor a mudança radical do sistema de arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que passaria a ser unificado, com cinco alíquotas. Até aí, tudo bem. O problema é que muda o sistema de cobrança do imposto, que passaria a ser feito no destino (estados consumidores). Na origem (estados produtores), ficariam apenas 2% do valor arrecadado. Para viabilizar a mudança, Mabel teceu acordos com empresários, secretários estaduais de Fazenda e prefeitos. Objetivo: isolar São Paulo, o estado mais penalizado pelo caráter Robin Hood do projeto. Supostamente, a reforma tiraria dos estados ricos (SP, MG, RJ, ES, RS, DF, GO e MS são contra) para dar aos mais pobres. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pretende passar à História como o líder político que acabou com relação desigual entre o “Sul Maravilha” e os estados do Norte e Nordeste.

Mas o relatório de Mabel desagrada gregos e baianos. Com a crise mundial, a reforma tributária seria como pular do trampolim sem saber se tem água na piscina. Por exemplo, estima-se em R$ 24 bilhões as perdas da Previdência. O IVA(Imposto Sobre Valor Agregado) federal concentra recursos na União. A mudança abre espaço para milhares de contestações judiciais, anistia fraudes fiscais e favorece lobbies empresariais, principalmente da indústria alimentícia e bancos.

“A quem interessa a desorganização das finanças estaduais e municipais, depois do longo e custoso processo de saneamento das contas, a partir da consolidação e do refinanciamento das dívidas com o Tesouro Nacional e da implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal? Será que os defensores dessa proposta de reforma tributária querem ainda mais concentração de recursos e poder no governo central?”, indaga Dias. A primeira pergunta se baseia numa hipótese; a segunda, na certeza.

Patrimonialismo

São várias as causas do desenvolvimento desigual no Brasil. Algumas são naturais, como o preço cobrado pelo cristalino da Serra da Borborema ao desviar os ventos alísios do Nordeste, que levam as chuvas para longe do semi-árido. Ou as bençãos dos olhos d’água na Chapada da Ibiapaba, das cheias do Pantanal e do Amazonas, da larva vulcânica que rompeu o cristalino da Serra do Mar e deu origem às “terras roxas.” Outras, são econômicas, como os ciclos da cana-de-açúcar, do cacau, da borracha, do algodão, do café, do ouro e diamantes, com seus esplendores e decadências, congelando no tempo a iniquidade social herdada da escravidão nas atividades ainda hoje remanescentes. Há, ainda, as conseqüências históricas das insurreições das províncias no Império, sufocadas a ferro e fogo, como a Confederação do Equador, que transformou Pernambuco num estado periférico, e a Cabanagem, no qual dois terços da população masculina do Pará foram dizimados, dentre outros episódios sangrentos.

A principal causa das nossas desigualdades, porém, é o patrimonialismo. Ainda hoje as oligarquias são as que mais se beneficiam dos investimentos públicos nos estados, graças ao apoio que emprestam à União para que esta imponha sua centralidade (normatizar, coagir e arrecadar) aos estados mais populosos e dinâmicos. Um exercício de motivação comum nas empresas é a simulação de uma guerra mundial, na qual as nações envolvidas dispõem de recursos financeiros, alimentos, minerais e armas em condições desiguais. Ao final da guerra, a relação se inverte completamente. No jogo, sempre há duas nações com recursos exatamente iguais e que acabam em situações muito diferentes, por causada atuação de seus governantes.

Não há no Brasil dois estados iguais. Assim mesmo, é possível avaliar historicamente a atuação de suas elites. Basta, por exemplo, comparar as trajetórias do Ceará com o Maranhão ou de Pernambuco com a Bahia nos últimos 50 anos.

Senso trágico e senso de galhofa


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO(PE)

Tragédias e tormentas não se anunciam, preferem surpreender, mais devastadoras do que fatos previsíveis. Fados, deuses e autores, igualmente pérfidos, divertem-se emitindo sinais enganosos para desarmar prevenções e cautelas nos personagens. Quanto mais alta a animação, maior é a queda.

O pior que poderia acontecer ao presidente Lula nesta sombria virada de ano seria um retumbante triunfo pessoal como o inimaginável recorde de aprovação (70%) verificado pelo Instituto Datafolha.

Desconhece-se a hora em que o presidente foi informado na quinta-feira a respeito dos resultados da nova sondagem que seria anunciada na manhã seguinte, tudo leva a crer que haja uma relação de causa e efeito entre o recorde de popularidade e uma certa exaltação na oratória presidencial durante uma cerimônia no Rio com a inclusão de uma metáfora chula, logo deletada na versão oficial do discurso.

Não chegam a ser alarmantes os efeitos de uma eventual euforia sobre a linguagem dos pronunciamentos presidenciais, o que deve preocupar é um eventual desmando nos conteúdos contrastando com a necessária prudência. O rolo compressor de um otimismo local pode ter efeitos deletérios diante de um cenário mundial tão deprimente.

A visível pressão para obter índices econômicos positivos no último trimestre de 2008 e no primeiro de 2009 pode substituir uma discussão imperiosamente técnica por outra, surfista, em torno do tsunami global e das marolas que aqui chegarão. O "olho gordo" de vizinhos encalacrados - caso do Equador - só tenderá a aumentar se o marketing político for acionado para valorizar a gestão da economia.

A obsessão em garantir um crescimento de 4% no PIB de um ano pré-eleitoral pode alimentar a conhecida vocação para aventuras característica de regimes políticos insuficientemente consolidados. Estes 70% de popularidade na metade do segundo mandato - quando os efeitos da fadiga de material já deveriam estar visíveis - não ajudam o programa infra-estrutural do PAC nem as políticas públicas em áreas como a saúde e a educação onde os resultados são mais demorados. Ao contrário, favorecem o carnaval demagógico e a folia assistencialista.

Os problemas de caixa enfrentados recentemente pela gigantesca Petrobras foram contornados mas não devem ser ignorados. O processo engasgou uma vez e nada impede que engasgue novamente caso não sejam tomadas providências mais drásticas. O pré-sal inebriou certas esferas que deveriam estar infensas a libações deste tipo.

A crise mundial é na realidade um conjunto de crises concêntricas (estrutural, sistêmica, conceitual, ambiental, alimentar, política), difíceis de driblar no seu conjunto. As sucessivas convocações palacianas para consumir e gastar dão um ar festeiro e falso ao processo econômico. A quermesse que se pretende reeditar neste final de ano reclama um cardápio mais consistente, responsável. Compatível com uma conjuntura onde impera a sisudez e a circunspecção.

Tragédias e tormentas são potencializadas pela despreocupação, pelo descaso e pela desatenção. Os grandes estadistas e os grandes generais jamais dispensaram boas doses de inquietação. O catastrofismo tem utilidade, pode ser salutar - estimula as defesas, testa a capacidade preventiva.

Exercita o senso trágico. Sempre mais digno, mais atento, mais compenetrado e mais produtivo do que o senso da galhofa.

» Alberto Dines é jornalista

A Crise e o Governo

Marcos Coimbra
Sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
DEU NO ESTADO DE MINAS

Submetido diariamente a um noticiário cada vez mais lúgubre, o cidadão ouve as manifestações do presidente como se viessem de alguém incapaz de enxergar o que está acontecendo. Se tudo piora e só Lula não vê, o problema está nele

A cada dia que passa, aumenta a certeza de que o Brasil já está sendo fortemente atingido pela crise internacional. Também aumenta a convicção de que o pior está, infelizmente, longe e que seus efeitos serão mais graves nos próximos anos.

O presidente e o governo insistem em uma atitude que faz pouco sentido. Talvez se justifique manter uma postura moderadamente otimista para evitar o pânico e inibir comportamentos que podem ampliar os problemas que nossa economia enfrenta. Afinal, ninguém quer que a população comece a guardar sua poupança debaixo do colchão.

Mas há o risco oposto. Não de que as pessoas acreditem que tudo vai bem, pois, nisso, elas não acreditam mesmo. Foram publicadas nas últimas semanas algumas pesquisas sobre as reações à crise no Brasil e todas mostraram quão disseminada é a preocupação da população com suas repercussões no país. Poucos são os que crêem no mantra de que “o Brasil é maior que qualquer crise”.

O problema do panglossianismo oficial é que ele provoca uma crescente desconfiança da opinião pública a respeito do que o governo diz. Submetido diariamente a um noticiário cada vez mais lúgubre, o cidadão ouve as manifestações do presidente como se viessem de alguém incapaz de enxergar o que está acontecendo. Se tudo piora e só Lula não vê, o problema está nele.

É sempre perigoso quando governo e sociedade pensam de maneira claramente diferente. Abre-se uma distância entre suas percepções que pode aumentar e se transformar em um fosso. Desde a redemocratização, não foram poucos os episódios desse tipo. O próprio Lula passou por um, à época do mensalão, que quase engole seu governo.

Assim, insistir na tecla de que as coisas “não vão tão mal” é uma opção que o governo precisa saber quando descartar. Para isso, tem que se manter alerta, sem levar a sério o que ele mesmo repete diariamente. O que não é fácil. De tanto fazer do otimismo irreal sua bandeira, fica complicado voltar a ser, apenas, realista.

O saudoso ministro Mário Henrique Simonsen dizia que bons governos são como bons trapezistas. Têm que fazer com que todos acreditem que conseguem voar, mas se eles próprios acreditarem nisso, se esborracham. Será que Lula sabe que não consegue ou está embalado pelas histórias que conta?

Das muitas razões que explicam sua popularidade e as altas taxas de aprovação de seu governo, a boa fase que a economia brasileira viveu nos últimos anos é uma das mais importantes. Foi o aumento do consumo e a melhoria do emprego que permitiram a ele honrar seu compromisso básico com o eleitor: mostrar que um presidente vindo do povo faria um governo que o beneficiasse.

Cumprir essa promessa foi possível no quadro internacional em que governou até agora sem menosprezar as ações que empreendeu para que as oportunidades geradas por ele fossem aproveitadas. Mais que isso: foi com a crescente arrecadação propiciada por uma economia em expansão que se tornou viável financiar amplas políticas distributivas. A marca popular mais imediata do governo Lula, o Bolsa Família, só pôde existir nesse cenário.

Qual vai ser o discurso de Lula nos novos tempos? Será ele capaz de reciclar seu estilo de comunicação com o povo, ancorado na noção de “proximidade” (“sou como você, faço o que você precisa”)? Lula conseguirá ser o presidente da contenção, depois de se acostumar a ser o da bonança?

E seu governo? Na sua conformação atual, é o governo mais adequado ao momento de dificuldades que vivemos? Seu ministério, onde as figuras notáveis são raras exceções, é tão bom hoje quanto parecia quando o que ele desejava era que ninguém “aparecesse demais”?

Muita coisa vai mudar com a economia brasileira e com o Brasil nos próximos dois anos. Tomara que Lula saiba se adaptar e adaptar seu governo ao que vem por aí. Só assim atravessaremos esse período com custo menor.

As pesquisas atuais sobre sua popularidade são como os números do crescimento do PIB até o terceiro trimestre: mostram o que foi o passado e pouco dizem sobre o que o aguarda (e a nós).

Prefiro o Lula


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Não são nada razoáveis as críticas de analistas ouvidos por esta Folha a propósito do otimismo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Primeiro, porque faz parte do instinto básico de Lula. Quando ele ainda era oposicionista, queixou-se mais de uma vez a amigo comum do que ele considerava pessimismo meu (não é pessimismo, é realismo, mas não interessa).

Se lamentava o pessimismo quando estava na oposição e não ganhava eleição, agora que ganha e bate recordes de popularidade, só pode ser superotimista.

Em segundo lugar, se o presidente diz "nosfu", o país infarta, claro. Discutir se "sifu" é expressão adequada ou não à "majestade do cargo" é irrelevante. Em terceiro lugar, governantes -e não apenas o do Brasil- têm hoje mais a função de animadores de auditório do que de administradores, quando resolvem seguir o modelo quase único pró-mercado.Tanto é assim que a ministra Dilma Rousseff teve o seu momento-verdade anteontem ao dizer:

"O governo não pode legislar sobre empregos. Não podemos baixar uma medida provisória dizendo: "Fique o emprego como está"".

Pois é, se não pode manter o emprego, tampouco pode manter o poder aquisitivo dos salários, que é afinal o que de fato conta. Resta, pois, animar o público, no que está tendo o mais absoluto êxito, a ponto de 78% dos brasileiros acreditarem que sua vida vai melhorar no ano que vem, o que contraria as previsões de 11 de cada 10 economistas.

Vai ver que esses 78% sabem de uma frase cáustica do também economista Roberto Campos (1917-2001), que me foi enviada pelo leitor Arnaldo Risemberg: "Há três maneiras de o homem conhecer a ruína: a mais rápida é pelo jogo; a mais agradável é com as mulheres; a mais segura é seguindo os conselhos de um economista".

Recessão ou depressão


Fernando Henrique Cardoso
DEU EM O GLOBO


A história da presente crise financeira é a história de uma morte anunciada. São incontáveis as referências feitas nos últimos anos aos déficits gêmeos da economia americana: na balança comercial e nas contas públicas. Os críticos do governo Bush, com Paul Krugman à frente, cansaram de clamar contra os gastos excessivos nas guerras, combinados com cortes de impostos para as camadas mais ricas da população e com uma política monetária complacente. O que não se conhecia a fundo era o mau uso que bancos e instituições assemelhadas faziam dessa situação de dinheiro farto, acompanhada de desregulamentação financeira. Daí emergiu o monstro da crise, muito mais feio do que se podia imaginar.

Havia sinais antecedentes. Em maio de 2007, assisti a uma conferência no Citigroup em Nova York. Ali, pela primeira vez, escutei falar em “subprime mortgage”, da boca de Bob Rubin, ex-secretário do Tesouro de Clinton, à época conselheiro sênior do Citi. Disse ele que, por sorte, os bancos não carregavam o risco dessas hipotecas, que haviam sido “empacotadas”, junto com outros títulos, e revendidas a terceiros e quartos compradores por intermédio de “veículos especiais estruturados”, que recebiam o aval das agências de avaliação de riscos, apesar de misturarem títulos bons com hipotecas altamente arriscadas. Parecia certo o que Rubin dizia: a farra dos papéis tóxicos se fazia à margem da contabilidade dos bancos. Mas quando veio a quebradeira, eles tiveram que reconhecer a responsabilidade por tais operações e incorporar os prejuízos aos seus balanços. Caso contrário, o Tesouro e o Fed, restritos por lei a injetar recursos apenas nos bancos, estariam de mãos atadas e o colapso do sistema financeiro seria inevitável.

Daí por diante foi o corre-corre conhecido: os bancos de investimento estavam atolados em papéis podres, e não só hipotecários. A falência de um deles desencadeou o fechamento de vários outros, atingiu algumas seguradoras e as agências semi-oficiais de garantia de hipotecas populares.

Na mesma época, Bill Rhodes, vice-presidente sênior do Citi, escreveu um artigo dizendo com todas as letras que em algum momento nos próximos dois anos haveria uma crise. Em agosto de 2007 as primeiras explosões foram escutadas pelos mercados, embora muitos governos permanecessem surdos a elas. As bolsas começaram a registrar o desfazimento do sonho dourado do crescimento econômico contínuo, do fim dos ciclos. Quando em setembro/outubro daquele ano os bancos começaram a cobrar taxas significativamente mais altas do que as oficiais nos empréstimos entre eles e, finalmente, pararam de emprestar uns aos outros, estava instalada a bruxa: a desconfiança.

A reação dos bancos centrais e dos Tesouros tem sido gigantesca. Em pouco tempo, as contas passaram a ser feitas na casa das centenas de bilhões de dólares. O total “enxugamento da liquidez” deu lugar ao “empoçamento” do dinheiro: os bancos retêm os recursos recebidos, com medo de emprestar e não receber depois ou por temerem ter de cobrir novos prejuízos que venham a surgir, como a cada dia surgem.

Incerteza, medo, falta de confiança, paralisia dos créditos. Nesta hora, todos gritam: mais ajuda! Mais governo! Só o governo restabelece a confiança. Não por acaso, Gordon Brown, de lame duck (pato manco) do governo inglês passou a herói do capitalismo financeiro. Nada de conceder empréstimo aos bancos a juros baratos, como queriam fazer os americanos. É preciso injetar dinheiro do Tesouro diretamente nas veias dos bancos, comprando-lhes ações, consolidando os capitais. E depressa, antes que quebrem e a economia real sofra mais ainda com a falta de crédito e de suas conseqüências, a principal das quais será o aumento do desemprego. Ou seja, socializemos as perdas, antes que venha o caos!

Provavelmente não virá o caos, mas a recessão bate às portas do mundo. Até a China, que seria a esperança contra a crise, está retraindo fortemente o crescimento. O risco agora é outro: o de depressão. Para comparar, na crise de 1929 as bolsas subiram fortemente até agosto. Despencaram em outubro. Como os bancos centrais fizeram o oposto do que agora estão fazendo, a paralisia de crédito foi fatal. Mas a economia real só caiu mesmo entre 1930 e 1932.

O New Deal criou uma rede de proteção social e deu impulso a obras de infra-estrutura, mas não conteve a crise, que se prolongou até 1937/38. Foi a preparação para a guerra, com os déficits justificados por ela, junto com imensos empréstimos aos países aliados, com prazos de carência até o fim da guerra e com taxas de juros irrelevantes, que reanimaram a economia americana e, mais tarde, a do mundo.

Seria insensato pregar a guerra entre os países como modo de evitar a depressão. Busquemos outros tipos de “guerra”: a guerra à pobreza e ao aquecimento global, por exemplo. Barack Obama vem apontando nessa direção. Não basta falar das redes de proteção social, por mais imperativas que sejam, como são, para evitar a tragédia social. É preciso investir produtivamente e há como fazê-lo; a busca de energias alternativas, a manutenção das infra-estruturas existentes (sociais e físicas) e a abertura de novas, sobretudo apelando à inovação tecnológica, talvez seja a receita para evitar que a recessão se transforme em depressão. Tomara a isso se acrescente uma mudança cultural que refreie a civilização do consumo e do desperdício e volte a injetar no sistema econômico um mínimo de ética e na sociedade uma preocupação maior com a equidade.


*Ex-presidente da República

O gasto de hoje prejudicará a economia de amanhã?


Paul Krugman
DEU NO ZERO HORA (RS)

Neste momento, há um intenso debate sobre quão agressivo deve ser o governo dos Estados Unidos na tentativa de recuperar a economia. Muitos economistas, inclusive eu, estão clamando por uma grande expansão fiscal para evitar que a economia siga em queda livre. Outros, no entanto, preocupam-se com o fardo que o enorme déficit orçamentário irá colocar sobre as futuras gerações.

Mas as preocupações com o déficit estão totalmente equivocadas. Sob as condições atuais, não há conflito entre o que é bom no curto prazo e o que é bom no longo prazo; uma forte expansão fiscal pode, na verdade, melhorar as perspectivas de longo prazo da economia.

A alegação de que os déficits orçamentários enfraquecem a economia a longo prazo é baseada na crença de que o financiamento governamental desloca o investimento privado – o governo, ao emitir muita dívida, eleva rapidamente a taxa de juro, deixando as empresas pouco dispostas a investir em novas plantas e equipamentos, e isso, por sua vez, reduz a taxa de crescimento da economia a longo prazo. Sob circunstâncias normais, esse argumento faz muito sentido.

Mas as atuais circunstâncias estão muito além da normalidade. Imagine o que poderia ocorrer no próximo ano se a administração Obama capitulasse frente aos falcões do déficit e encolhesse seus planos fiscais. Isso levaria a taxas de juro mais baixas? Certamente, não conduziria à redução das taxas de juro de curto prazo, que são mais ou menos controladas pelo Federal Reserve. O Fed já está mantendo essas taxas o mais baixas possível – virtualmente, em zero – e não mudará essa política a menos que veja sinais de que a economia está ameaçada de superaquecimento. E essa não parece ser uma perspectiva realista em breve.

E sobre o juro de longo prazo? Essas taxas, já no nível mais baixo em meio século, refletem principalmente taxas futuras de curto prazo. Austeridade fiscal pode empurrá-las ainda mais para baixo – mas somente criando expectativas de que a economia poderia se manter profundamente deprimida por um longo tempo, o que iria reduzir, não elevar, o investimento privado.

A idéia de que apertar a política fiscal quando a economia está deprimida na verdade leva à redução do investimento privado não é apenas um argumento hipotético: é exatamente o que ocorreu em dois importantes episódios da história. O primeiro ocorreu em 1937, quando Franklin Roosevelt equivocadamente deu ouvidos aos preocupados com déficit de sua própria era. Ele reduziu de forma acentuada o gasto do governo, entre outras coisas cortando o Works Progress Administration (agência criada em 1935 para gerar empregos e sair da Grande Depressão) pela metade, e ainda elevando impostos. O resultado foi uma severa recessão, e uma queda abrupta no investimento privado. O segundo episódio teve lugar 60 anos depois, no Japão. Em 1996-97, o governo japonês tentou equilibrar seu orçamento cortando gastos e elevando impostos. E outra vez a recessão que se seguiu conduziu a uma queda drástica no investimento privado.

Apenas para ser claro, não estou afirmando que a tentativa de reduzir déficits orçamentários sempre é ruim para o investimento privado. Você pode se basear no caso da restrição fiscal de Bill Clinton nos anos 90, que ajudou a abastecer o maior boom de investimentos dos EUA da década, o que por sua vez ajudou a provocar uma recuperação no crescimento da produtividade.

O que torna a austeridade fiscal tão má idéia, tanto nos EUA de Rooselvet quanto no Japão dos anos 90, foram circunstâncias especiais: nos dois casos, o governo recuou frente a uma armadilha de liquidez, uma situação na qual a autoridade monetária cortou taxas de juro tão rápido como possível, e a economia ainda continuou a funcionar bem abaixo de sua capacidade. E nós estamos no mesmo tipo de armadilha hoje – motivo pelo qual preocupações com déficit estão deslocadas.

Mais uma coisa: expansão fiscal será ainda melhor para o futuro dos EUA se uma grande parte dessa expansão tomar a forma de investimento público – construção de estradas, reforma de pontes e desenvolvimento de novas tecnologias, iniciativas que tornam a nação mais rica no longo prazo.

O governo deve ter uma política permanente de grandes déficits orçamentários? Claro que não. Embora a dívida pública não seja tão ruim como a maioria das pessoas acredita – é basicamente dinheiro que nós devemos a nós mesmos –, no longo prazo o governo, como os indivíduos, tem de equilibrar o gasto e a receita.

Mas neste momento temos um rombo no gasto privado: os consumidores estão redescobrindo as virtudes de poupar no mesmo momento em que as empresas, escaldadas por excessos passados e limitadas pelos problemas no sistema financeiro, estão cortando investimento. Com o tempo, essa lacuna poderá fechar, mas até que isso ocorra o gasto do governo terá de ser feito da forma mais eficiente possível. Caso contrário, o investimento privado e a economia como um todo irão despencar ainda mais.

A questão essencial, então, é que as pessoas que consideram a expansão fiscal de hoje ruim para as futuras gerações entenderam tudo errado. O melhor plano de ação, tanto para os trabalhadores de hoje quanto para seus filhos, é fazer o que for necessário para conduzir a economia no rumo da recuperação.

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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