Igor Gielow | Folha de S. Paulo
Entre um ensaio de crise institucional e outro, o Supremo Tribunal Federal deverá analisar nesta quarta (4) a possibilidade de haver candidaturas avulsas nas eleições do ano que vem. É uma quimera bem intencionada, mas ainda assim uma quimera.
Baseada numa consulta feita à corte, a ideia tem um embasamento nobre, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Convenção Americana dos Direitos Humanos (1969). Sustenta que todos podem votar e se eleger, ideia secundada pela Procuradoria-Geral da República.
Bonito e inócuo, a começar pelas incongruências processuais inerentes à proposta. Só para começar, como é que um "avulso" vai se financiar? O sistema eleitoral brasileiro está manco desde que o mesmo Supremo, num dos seus arroubos ativistas e demagógicos, proibiu doações feitas por empresas em 2015.
OK, vivemos no reino do caixa dois e o petrolão está aí para demonstrar a podridão, mas em vez de consertar o carro, os ministros o enviaram ao ferro-velho sem deixar opções ordenadas no lugar. Em vez de, por exemplo, regular doações privadas, proibindo o "um pouco para cada um" e correlações empresas/contratos governamentais, optou-se pelo financiamento público.
Como se viu quando a questão foi parar no Congresso, deu errado. Nossos probos representantes tentaram espetar um fundo bilionário -ressaltando aqui que o valor debatido lá atrás, de R$ 3,6 bilhões, não daria nem para começar o jogo. O caixa dois, ainda que algo coibido pela pressão da Lava Jato, vai prosperar.
"As campanhas têm de ser mais baratas!", gritam as pessoas "do bem". De acordo, mas me conte como. Desde a repaginação de Paulo Maluf por Duda Mendonça em 1992 até o estelionato Dilma Rousseff "by" João Santana em 2014, a espiral de custos tornou-se um negócio em si, eivado de ilícitos como se sabe bem. Retomar a Lei Falcão na TV e ignorar os outros gastos entregam uma equação que não se fecha. Um candidato ao Palácio do Bandeirantes pode contar com R$ 3 milhões só em gasto com jatinhos em 2018.
Esse voluntarismo inconsequente faz sucesso. A dupla dinâmica Marina Silva e Joaquim Barbosa sempre foi entusiasta do "avulso". A argumentação em favor do instituto, feito pela procuradora-geral, Raquel Dodge, relaciona o financiamento partidário à corrupção, como se "outsiders" fossem puros por definição.
Não é só o dinheiro. Se o país demorou anos para se recuperar da aventura Fernando Collor, o que dizer de candidatos com apelo midiático e capacidades inauditas de gestão pública? Vão governar baseados em quê? Mantras? Incenso e oração? O Congresso pode ser medonho, mas é com ele que se governa. A ideia de deslegitimar de vez a política partidária é tentadora dado o estado das coisas, mas é mesmo a melhor saída? Não parece.
Só a ideia de uma liderança nacional envergando virtudes demiúrgicas para driblar a modorra de Brasília deveria dar calafrios nesse pessoal que qualifica quem não pensa igual a eles de "fascista", aspas obrigatórias até porque a ignorância histórica sobre o tema impera.
"Tem de haver reforma política!", esbravejam então. De acordo, mas me conte qual. Cada vez que a palavra mágica surge, o diabo se assusta; o debate que quase empurrou o aberrante distritão goela abaixo do eleitor é um exemplo.
O ambiente então fica fértil para bruxarias. De um ano para cá, várias "start-ups" políticas surgiram. Nenhuma chegou a virar um Movimento Brasil Livre, que quando não está esperneando pela moral e os bons costumes está preparando candidatos competitivos que miram um eleitorado fora do radar da gente "do bem" -por serem conservadores, basicamente. Para pular os obstáculos de realidade, o MBL acopla seus nomes a partidos como o DEM e PSDB.
Mas agora surge outro atalho, na forma do RenovaBR, uma brincadeira de endinheirados que também querem ter uma bancada parlamentar para chamar de sua. Um fundo bancaria a "formação", algo meio difuso, de "lideranças" potenciais. O celeiro inicial é o movimento Agora, que busca ter até 30 nomes "competitivos" para a Câmara, nas palavras de seu colíder Leandro Machado.
Ele nega ter relação como o fundo em si, que é bolado pelo sócio da Tarpon Investimentos Eduardo Mufarej, seu amigo e fundador do Agora, além de ter ligações com o Partido Novo e o Centro de Políticas Públicas do pré-candidato a governador Luiz Felipe D´Ávila (PSDB). "Só entraremos nessa se for tudo 100% legal", disse. Vai ser difícil convencer a Justiça Eleitoral de que o fundo não é campanha antecipada e financiamento ilegal de candidatos.
Os nomes chamativos associados ao projeto, como Luciano Huck, Abílio Diniz e Bernardinho, dão um ar novidadeiro ao negócio. Pode ser, para quem acredita nisso, mas de todo modo a política tradicional irá resistir -a PGR foi instada a pronunciar-se a pedido do PT, aquela sigla que a acusa de parcialidade no resto do tempo, sobre o tema.
A possibilidade de o Senado aprovar emenda limitando o financiamento de pessoas físicas a 10 salários mínimos também atinge esse pessoal descolado. João Amoêdo, do Novo, já contava com um cofrinho mais gordo de gente como Armínio Fraga e ele mesmo. Como a eleição fora de hora do Amazonas demonstrou, na hora H as velhas estruturas tendem a modular o padrão de jogo, sob o risco da ilegitimidade da alta abstenção.
Assim, resta esperar os discursos da ala que se chama progressista do Supremo e torcer para que ao fim não adubem ainda mais a jabuticabeira da política nacional.