quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Crivella e Gabeira, voto a voto


Clicar no link e veja o último programa eleitoral de Gabeira do primeiro turno



Fábio Vasconcellos e Sergio Duran
DEU EM O GLOBO


Datafolha dá diferença de dois pontos entre os dois, que investem em áreas diferentes

Empatados tecnicamente na pesquisa Datafolha divulgada ontem, os candidatos Marcelo Crivella (PRB) e Fernando Gabeira (PV) vão disputar voto a voto para ir ao segundo turno contra Eduardo Paes, do PMDB, que lidera com folga. Nestes três últimos dias antes da eleição, Crivella intensificará sua presença nas zonas Norte, Oeste e nos subúrbios, acompanhado dos candidatos a vereador da coligação (além do PRB, PR, PSDC e PRTB) e de Agnaldo Timóteo, vereador pelo PR em São Paulo. Já Gabeira decidiu investir na classe média, segmento em que já é forte e no qual ele acredita que conseguirá mais rapidamente os votos que o separam de Crivella.

Paes manteve os 29% de intenções de voto. Gabeira subiu de 15% para 17%, segundo a pesquisa, realizada em 29 e 30 de setembro. Crivella subiu um ponto, de 18% para 19%. Jandira Feghali (PCdoB) caiu de 13% para 12%. Alessandro Molon (PT) foi de 5% para 4%; Solange Amaral (DEM), de 4% para 5%; Chico Alencar (PSOL), de 3% para 2%; e Paulo Ramos (PDT) manteve 1%. O Datafolha ouviu 1.311 eleitores. A margem de erro é de três pontos.

Já de olho no segundo turno, Gabeira faz planos para se aproximar dos eleitores com escolaridade até o ensino fundamental, segmento em que aparece com apenas com 6%:

- A consolidação da minha presença no segundo turno tinha que ser trabalhada onde ela rende mais rapidamente, que é na classe média. Então a nossa tática foi de conquistar votos através da classe média. No segundo turno, vamos falar mais explicitamente para esses setores (eleitores com ensino fundamental e que recebem até dois salários) - disse.

"Há uma diferença nos números"

Já Crivella - após gravar anteontem trechos para o seu último programa eleitoral com cerca de 200 candidatos a vereador, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) - ouviu pedidos para ir aos redutos eleitorais desses candidatos nestes últimos dias. O pedido se transformou numa maratona por diversas comunidades. Ontem, ele esteve em Lins de Vasconcelos, Méier, Pavuna, Coelho Neto, Honório Gurgel, Rocha Miranda e Madureira.

Na comunidade da Cachoeirinha, no Méier, Crivella declarou não temer a perda de apoio do PT caso vá ao segundo turno. Ele disse que a aproximação do PMDB com o PT é desespero. Para Crivella, as siglas de esquerda se aliariam com o PRB.

- A aproximação do PMDB com o PT é desespero. Não creio nesta aliança. Tenho segurança, pelas conversas já travadas com os partidos ao longo do primeiro turno - disse Crivella, que não quis comentar a pesquisa: - Há uma grande diferença nos números entre os institutos, disse, referindo-se à pesquisa do Ibope de sábado passado, na qual a distância entre ele e Gabeira era de 14 pontos.

Gabeira, que ontem foi ao Ceasa e à Saara, comemorou o resultado:

- Fiquei muito feliz porque deram apenas uma diferença de dois pontos a favor do Crivella, e isso pode nos ajudar muito porque vai estimular o eleitorado nos últimos dias.

Antes de partir em carreata para Bonsucesso, Jandira se irritou ao ser perguntada sobre a pesquisa:

- Reafirmo que a luta pelo segundo turno está entre Jandira e Crivella - disse, criticando os institutos.

Paes, por sua vez, disse que está confiante. Já Chico Alencar afirmou que pelo menos um terço do eleitorado decidirá seu voto no fim de semana, enquanto Solange destacou as discordâncias entre pesquisas e Molon destacou os indecisos.

COLABORARAM Ludmilla de Lima e Waleska Borges

No último programa de TV, candidatos apostam tudo nos eleitores indecisos

Flávio Tabak e Luiz Ernesto Magalhães
DEU EM O GLOBO

Sem apresentar novidades, concorrentes fazem balanço de suas campanhas

O voto dos indecisos, que representam hoje cerca de 5% do eleitorado, foi o objeto do desejo dos candidatos a prefeito na noite de ontem, no último programa eleitoral na TV antes do primeiro turno. Apesar de as mais recentes pesquisas apontarem que Jandira Feghali (PCdoB) caiu para o quarto lugar, a candidata apareceu no vídeo afirmando que não é isso que constata nas ruas. O locutor do programa chegou a afirmar que a vaga no segundo turno está sendo disputada entre ela e o senador Marcelo Crivella (PRB). Jandira concentrou o programa no eleitorado feminino, e a atriz Fernanda Montenegro voltou a pedir, no vídeo, votos para a candidata.

- Essa guerra das pesquisas não engana mais ninguém. A pesquisa de verdade é aquela que vemos na rua entre o povo mais sofrido. Nossa campanha cresce e emociona. Vamos governar para todos, da Zona Sul à Zona Oeste. Agradeço o carinho e apoio. Peço para que façam uma corrente de votos para estarmos no segundo turno - disse a candidata, que voltou a prometer acabar com filas nos hospitais e implantar o bilhete único.

Fernando Gabeira (PV), que aparece em terceiro e tecnicamente empatado com Crivella, disse também que as ruas indicam sua presença no segundo turno das eleições.

- Me orgulho dos meus eleitores. E conto com seus argumentos para conversar com parentes e amigos sobre a nossa candidatura - disse.

Gabeira disse que fez uma campanha propositiva, respeitando adversários, e acrescentou que quer contar com eles no segundo turno, mas sem negociações que envolvam a ocupação de cargos públicos:

- Não haverá empreguinhos para aliados - disse.

O candidato do PV lembrou que levou para a campanha propostas para a segurança pública, e que foi o primeiro a divulgar as contas da com transparência.

Chico Alencar (PSOL) e Alessandro Molon (PT) também reapresentaram suas principais propostas para saúde, educação e transporte. Eles pediram que seus eleitores convencessem os amigos que são os melhores para comandar a cidade:

O líder nas pesquisas, Eduardo Paes (PMDB), reforçou a idéia de que sua candidatura significará a união entre governo federal, o estado e a prefeitura. O candidato citou várias vezes o nome do presidente Lula. O governador Sérgio Cabral reapareceu no vídeo pedindo votos para Paes. Já nas imagens de TV, que até então se concentraram mais nas Zonas Norte e Oeste, o programa fez referências também à Zona Sul.

- Pertenço a uma geração de políticos que não viu o Rio ser uma cidade maravilhosa. Nos últimos 20 anos, brigas e desentendimentos levaram o Rio a perder força econômica e boa parte do prestígio.

Crivella reafirma que não mistura religião e política

No programa, Paes pede para que os eleitores façam uma corrente de votos, também de olho nos eleitores que não fizeram suas escolhas. Ele voltou a prometer ampliar a rede das UPAs, acabar com a aprovação automática e trabalhar pela implantação do bilhete único no transporte.

Crivella agradeceu a seus eleitores e disse que não mistura religião com política. O bispo licenciado da Igreja Universal acrescentou, no último programa, que vai governar para todas as crenças.

- Vou governar para todos os cariocas. Principalmente o povo mais humilde. Esta é a hora de o Rio diminuir as desigualdades com políticas públicas. Vou colocar os hospitais e postos de saúde para funcionar, implantar o Cimento Social e a Zona Franca Social em todas as comunidades - afirmou.

Solange Amaral (DEM) usou a imagem do prefeito Cesar Maia e das marcas de sua gestão como uma demonstração de que seria a candidata mais preparada. Foram exibidas imagens de Vilas Olímpicas, comunidades atendidas pelo Favela-Bairro e do Ônibus da Liberdade, que transporta gratuitamente os alunos da rede municipal.

O futuro já começou


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

A oposição pisa com cuidado, mas já deixa marcas evidentes de que aproveita as eleições municipais para dar os primeiros passos em ritmo explícito de campanha à sucessão presidencial.

Os dois candidatos mais cotados, os governadores tucanos José Serra (SP) e Aécio Neves (MG), há algumas semanas trocaram os respectivos expedientes nos Palácios dos Bandeirantes e da Liberdade por vistosos rodopios nas mais importantes capitais, alguns com direito a fotografias conjuntas.

Fazem movimentos semelhantes aos do campo oficial comandado pelo presidente Luiz Inácio da Silva que, a pretexto de prestar ajuda aos petistas candidatos a prefeito, marca a presença da ministra Dilma Rousseff nos palanques mais convenientes. Não necessariamente os mais necessitados.

Serra e Aécio, por exemplo, em evento recente posaram de mãos, braços e sorrisos dados junto ao tucano Beto Richa, candidato cuja reeleição em Curitiba dispensa auxílio externo, com seus 74% na preferência do eleitorado.

Ambos gravam depoimentos de apoio aos aliados, obviamente conscientes de que não influem nem contribuem nas intenções de votos locais, mas convictos da necessidade de pôr seus blocos na rua desde já, se não quiserem entregar a vantagem nas pesquisas (principalmente Serra, o primeiro colocado) aos traiçoeiros cuidados da inércia.

Uma figuração bem estudada, em modelo amigável, de forma a marcar as escaramuças de São Paulo como fato isolado. Basta notar como Aécio pôs o pé no freio nas declarações pró-Geraldo Alckmin, retomou o discurso do “pós-Lula” e Serra vem circulando todo simpático pelos Estados, já ousando uma ou outra manifestação de natureza oposicionista.

Nada que se configure em conflito com o presidente Lula, mas firme o suficiente para estabelecer o contraponto. Ontem mesmo registrou nos jornais sua posição crítica ao governo federal.

Sobre a crise econômica comparou as tentativas de transparecer tranqüilidade absoluta à atitude do regime militar que na crise do petróleo dava garantias sobre a imunidade do Brasil à instabilidade mundial.

A respeito da crescente popularidade do presidente, permitiu-se ironias: “É preciso ver se isso se traduz em efetiva solução dos problemas”.

Além de se mostrar, os candidatos oposicionistas começam também a falar. Não ainda sobre o assunto propriamente dito, pois oficialmente o início da corrida está marcado para meados de 2009.

A respeito disso, falam por intermédio de correligionários - como Gilberto Kassab, que não perde a chance de “lançar” Serra candidato a presidente - ou por vias transversas, deixando “escapar” algumas de suas estratégias.

É o caso, por exemplo, dos comentários cada vez mais insistentes sobre a possibilidade da formação de uma chapa puro-sangue, juntando Serra e Aécio, governadores dos dois maiores colégios eleitorais do País.

O governador paulista é sempre citado como o titular, coisa que, em tempos de posições não enquadradas à disciplina estratégica, suscitaria algum tipo de manifestação de desagrado por parte do governador mineiro, também candidato a presidente, mas lembrado para vice.

Aécio Neves pode até não gostar das referências, mas não desmentiu nenhuma delas. Direta nem indiretamente. Não quer dizer que aceite, mas significa que não lhe interessa alimentar a cizânia nem fomentar as intrigas nesse momento de largada federal ainda disfarçada de movimentação meramente municipal.

Área de serviço

Considerando que os candidatos nanicos que insistem em participar impedindo a realização de debates na televisão não ganham votos nem simpatia com isso, alguma motivação muito consistente certamente os conduz que não o mero exercício da implicância pelo prazer de implicar.

Êxodo

Ouvindo tucanos daqui e dali, das mais diferentes correntes, compreende-se por que no Palácio dos Bandeirantes se garante que Geraldo Alckmin, perdendo ou ganhando, o governador José Serra não vai retaliar. Por desnecessário.

Se não passar para o segundo turno agora, Alckmin terá conseguido a proeza de sair sempre menor a cada nova rodada eleitoral da qual participa e passado da condição de oponente de Lula, em 2006, para a categoria dos políticos de dimensão municipal. Ainda assim, fazendo força para se manter nesse patamar.

Se passar, terá perdido de vez o ar de inocência e a prerrogativa de atuar no papel de vítima para vencer embates internos contra os mais fortes.

Na avaliação corrente no partido, Alckmin errou feio no cálculo: se enfraqueceu para disputar o governo de São Paulo em 2010 e fortaleceu a candidatura presidencial de José Serra.

Entre os defensores da tese, vários são adeptos de última hora. Na primeira, deram a Alckmin a nítida impressão de que qualquer pulo no escuro contaria com forte rede de amparo.

Herança maldita


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. É engraçado, mas preocupante, que tenha sido preciso conversar com Hugo Chávez para que caísse a ficha do presidente Lula sobre a gravidade das conseqüências da crise econômica para todos os países numa economia globalizada. No momento em que Chávez é quem tem o bom-senso na análise do quadro internacional, mesmo que pelas razões erradas - provavelmente quer culpar o "grande Satã" pela derrocada da economia mundial -, alguma coisa está fora do eixo. O fato é que a crise é séria e está nos pegando no contrapé com as contas externas, que já vinham deteriorando-se por causa do câmbio. A expansão internacional do comércio, com o mundo comprando loucamente, especialmente a China, e os preços das commodities que foram para as nuvens, compensavam o câmbio supervalorizado. Provavelmente, esse lado bom acabou.

A Bolsa brasileira é a segunda que mais cai no mundo porque está sustentada em empresas que vão sofrer esse impacto na veia - Vale, Petrobras, as siderúrgicas. Análises indicam que as exportações não vão ter o desempenho do passado, e as importações explodirão com o câmbio, que ainda estaria supervalorizado.

Essa é a razão do desabafo do governador de São Paulo, José Serra, potencial candidato do PSDB à sucessão de Lula em 2010, que criticou "duas vulnerabilidades" na economia do país: o déficit em conta corrente "ascendente" e a expansão "exagerada" dos gastos correntes, pressentindo que pode lhe caber uma verdadeira "herança maldita".

O gasto primário do governo cresceu a uma média real de mais de 8% ao ano nos últimos três anos, e vamos passar de um superávit nas contas correntes de 0,11% do PIB no ano passado para um déficit de 2,02% do PIB este ano, com uma previsão de chegarmos a 2010 com um déficit de 3,36% do PIB. Isso não significa que as contas nacionais vão explodir, mas teremos problemas internos de investimentos porque vamos importar cada vez mais, com o dólar ainda barato, e o mercado interno aquecido.

Com a crise internacional, a compra de equipamentos vai se reduzir, pois os investimentos ficarão congelados, e a importação vai migrar cada vez mais para consumo. Quando Serra fala que o câmbio está "hipervalorizado", mesmo com a desvalorização do Real nos últimos dias, ele está refletindo a opinião de que o dólar deveria se valorizar ainda mais, o que não estaria acontecendo devido à atuação do Banco Central, que estaria segurando a cotação para ajudar a controlar a inflação.

Mesmo à custa da subida dos juros e da queima de reservas internacionais, embora até o momento não existam indicações de que a política do governo de vender dólares esteja reduzindo as reservas internacionais, que, ao contrário, cresceram.

Do lado fiscal, poderemos ter problemas, pois o aumento de arrecadação, que está permitindo manter o superávit primário apesar do aumento dos gastos públicos, poderá não se sustentar com a redução do ritmo de crescimento da economia.

Serra falou na necessidade de aumentos reais de arrecadação de cerca de 9% ao ano até 2012, referindo-se aos aumentos já contratados pelo governo Lula. O economista Fabio Giambiagi lembra que, se o gasto corrente tivesse conservado o peso que tinha em 2003, em vez de aumentar ano após ano, o setor público hoje teria superávit nominal, ou seja, "a dívida pública estaria caindo em termos nominais, além do que, ela seria muito menor, o que nos deixaria, entre outras coisas, muito menos expostos às conseqüências fiscais negativas da alta dos juros".

Ele ressalta que, em 2005, quando esse processo estava no início, a direção do Ipea, em estreita colaboração com o Ministério da Fazenda, estava trabalhando em um plano de contenção do crescimento do gasto, que incluía a decisão de não elevar os gastos públicos além do crescimento do PIB.

A proposta, ainda com Palocci ministro da Fazenda, foi enviada junto com o PAC ao Congresso e acabou não indo adiante. "Depois disso, o ministro da Fazenda caiu, a direção do Ipea foi defenestrada e, das pessoas que estávamos trabalhando naquele plano, não ficou uma em pé. O que aconteceu a partir daí foi conseqüência direta das escolhas que foram feitas naquela ocasião, em 2005. Deixamos passar uma oportunidade excepcional de atacar frontalmente o problema fiscal brasileiro", lamenta Giambiagi, hoje no BNDES.

Uma curiosidade é que a Lei de Responsabilidade Fiscal, implementada no segundo governo Fernando Henrique, baseou-se no hábito de governantes detonarem as contratações no último ano de governo, para ganhar eleições, ou após as perderem, mas seus idealizadores não imaginaram que um governante pudesse estourar as contas no meio do mandato, deixando contratada para o sucessor uma gastança futura.

É o que está acontecendo com o governo Lula. A folha salarial do ano que vem está em R$155 bilhões, e boa parte dos aumentos que Lula está dando vão rebater no próximo mandato. A conta é que se chegará a 2012 com uma folha de R$182 bilhões.

Ao mesmo tempo em que as dificuldades de crédito já se fazem sentir para as empresas brasileiras, e os novos investimentos estão parados, o presidente Lula pede a seus ministros que providenciem crédito "porque o Natal está chegando".

O período de 2003 até o terceiro trimestre de 2007 representou o mais forte ciclo de expansão da economia mundial, do comércio internacional e da liquidez global da história moderna, na definição do professor de Harvard Ken Rogoff. Agora, que os ventos viraram, o governo teria que fazer o que deveria ter feito nos tempos de bonança: além de aumentar o superávit primário, dar uma prioridade às reformas estruturantes, especialmente à reforma tributária, para incentivar as exportações e os investimentos, retirando os impostos de máquinas e equipamentos.

Dois pesos, duas medidas


Maria Inês Nassif
DEU NO VALOR ECONÔMICO

No dia 29 de abril de 2002, os bancos de investimentos Morgan Stanley Dean Witter e Merrill Lynch recomendaram a seus clientes que reduzissem a exposição a títulos brasileiros, e o Salomon Smith Barney reduziu a projeção do Ibovespa de 2002. No dia 2 de maio, foi a vez do ABN Amro reduzir baixar a recomendação de negócios com o Brasil; no dia 3, o Santander; no dia 6, o Goldman Sachs. Em poucos dias, foi dada a largada para um longo ataque especulativo contra o país que só viria a arrefecer, de fato, quando o mercado soube os nomes dos escolhidos pelo presidente eleito apesar das pressões do mercado, Luiz Inácio da Silva (PT), para comandar a economia e o Banco Central - isso, já no final do ano. O governo americano e o Fundo Monetário Internacional (FMI) atuaram intensamente para que o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) contornasse a crise que se fabricou em torno de um processo eleitoral em que o petista era o preferido sem se distanciar do modelo político neoliberal - e para que o candidato com maiores chances de vitória se comprometesse com a manutenção dessa política.

O jogo de pressões foi pesado e claro. O então secretário do Tesouro americano, Paul O"Neill, no meio das turbulências que abalavam o país, declarou que se opunha à concessão de um empréstimo de emergência do FMI. "Jogar dinheiro do contribuinte dos EUA na incerteza política do Brasil não me parece brilhante", afirmou. Teve que se desdizer depois por pressão do Departamento de Estado - e se tratava de um desembolso de US$ 10 bilhões de um crédito que o Brasil já tinha. Somente a seguradora AIG, durante essa crise de 2008, levou US$ 85 bilhões do dinheiro do contribuinte dos EUA.

O atual secretário do Tesouro, Henry Paulson, era presidente do Goldman Sachs em 2002 - a instituição de onde emergiu, como uma provocação, uma fórmula feita por um analista, Daniel Tenengauzer, batizada por ele de Lulômetro, que "media" o medo que Lula causava no mercado. A direção do banco repreendeu o funcionário, mas só depois que o governo brasileiro reagiu.

Os jornais noticiaram, com furor, as análises dos bancos e as opiniões de operadores de mercado sobre as eleições brasileiras, com as devidas interpretações sobre o discurso de Lula e os documentos do PT. Em "Diretrizes para um Programa de Governo", aprovado pelas instâncias partidárias, os "players" apontavam como evidência de que o PT não iria respeitar contratos, caso vencesse a disputa para a Presidência, um trecho onde se definia o compromisso com uma "profunda alteração no perfil do gasto público envolvendo a redução da vulnerabilidade externa e a recomposição das finanças públicas". De alguma forma, Lula cumpriu a promessa. Não parece, todavia, que isso tenha sido a socialização do país, nem uma adesão ao "chavismo" que os bancos acusavam em 2002.

Os organismos multilaterais, o governo americano e os analistas de bancos impunham suas exigências de condução de políticas econômica e monetária. O subsecretário de Tesouro dos EUA, John Taylor, jogando nas costas do processo eleitoral as turbulências econômicas do país, disse que os EUA esperavam que os chamados "fundamentos" da política ortodoxa de FHC fossem mantidos, independentemente de quem fosse o eleito ("EUA dizem esperar "governo clone" de FHC", FSP, 13/6/2002).

As contas do país se deterioraram de tal forma, ao final de um período especulativo que entrou por todos os poros das fragilidades da economia brasileira, que quando o eleito Lula e os petistas que se envolveram com a formação do governo analisaram os números levantados pelo governo de transição, não restava outra alternativa senão "manter o conservadorismo fiscal e monetário", conforme recomendara, em seminário do Banco Central, o representante do FMI no Brasil, Rogério Zandamela, em junho (entre outras muitas e insistentes recomendações "de fora"). O primeiro governo Lula não teve escolha, pelo menos até tirar o pé do país da lama em que se afundara num processo eleitoral.

Esses atores são quase os mesmos da crise americana. A pressão do mercado, do governo dos EUA e dos organismos multilaterais sobre o Brasil, em 2002, foram no sentido de manter o país que era o aluno exemplar do neoliberalismo no caminho das "reformas estruturais" e da ortodoxia. O empréstimo do FMI tratou de garantir solvência ao país para resolver suas pendências com o capital especulativo que investia em títulos de sua dívida. Agora, a pressão do mercado financeiro e dos demais países sobre os EUA é para que garanta a solvência de um sistema financeiro, o que só ocorrerá se for jogado para debaixo do tapete, pelo menos provisoriamente, o receituário neoliberal.

Seria ingênuo cobrar coerência do mercado financeiro, ou imaginar que a crise brasileira de 2002 e a americana de 2008 fossem tratadas da mesma forma. Mas não existe nenhuma lei internacional que impeça que se cobre a isonomia - teoricamente, esse é um direito. O presidente Lula, em Nova Iorque, na semana passada, teve o seu dia de lavagem de alma. "Eu cobrei do G8, cobrei do FMI e do Banco Mundial que estava na hora de eles se manifestarem, porque quando é um país pequeno que tem crise, todos eles dão palpite. Quando é a maior economia do mundo que entra em colapso, a gente não vê nenhum palpite deles", reclamou. Deu-se ao direito de também orientar política econômica alheia, decretando o fim do neoliberalismo, pois a crise "demonstra que também no sistema financeiro é preciso ter seriedade, é preciso ter ética, não é apenas o cidadão comum que tem que ser ético". E, por fim, recomendou aos dois candidatos presidenciais uma "Carta ao Povo Americano" expressando compromissos para acalmar o mercado. A "Carta ao Povo Brasileiro" divulgada pelo PT em junho de 2002 foi uma exigência do mercado financeiro, que especulava que Lula romperia contratos e jogava o dólar nas alturas. Recomendar a McCain e a Obama o mesmo foi uma pequena provocação. Um pequeno prazer antes de voltar ao Brasil e esperar para ver o estrago que a crise americana vai fazer no nosso quintal.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (ESPECIAL)


DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
A Carta que blindou a democracia brasileira
Carlos Marchi




“Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.” (Ulisses Guimarães)



Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca”, disse o deputado Ulysses Guimarães, no dia 5 de outubro de 1988, no histórico discurso com que declarou promulgada a Constituição Cidadã. Vinte anos depois, a frase de Ulysses soa profética. O País atravessou os últimos 20 anos sem sofrer qualquer ameaça de fratura institucional, a despeito de ter processado um impeachment e ter sido governado por todos os quadrantes do arco ideológico. A Constituição gera controvérsias até hoje. Muita gente a critica, mas todos lhe reconhecem passagens memoráveis. Ninguém a afrontou.

Ouça os discursos de Ulysses Guimarães, Mario Covas e Lula

A Constituição mudou o perfil do eleitorado brasileiro, ao promover a inclusão eleitoral quando estendeu o direito de voto aos analfabetos, que antes não podiam ser eleitores, e, em caráter facultativo, aos jovens entre 16 e 18 anos.

Fez mais: recompôs admiravelmente os direitos e garantias individuais, criou o habeas-data, que permite ao cidadão conhecer o que o Estado sabe dele, consagrou o Código do Consumidor, uma eficaz cartilha de cidadania, foi a primeira Carta a mencionar a proteção ao meio ambiente, determinou a demarcação das terras indígenas.

Mas a Constituição que reconstruiu o País a partir dos escombros da ditadura é também a que tornou o Brasil mais difícil de governar. Tem um notável capítulo de direitos e garantias individuais, mas exigiu a reforma de quase todo um capítulo econômico para que o País pudesse funcionar. Exibe passagens grandiosas, como a qualificação do racismo como crime inafiançável e imprescritível, e propostas bizarras, como tabelar os juros em 12% ao ano. Criou deveres rigorosos para o Estado, mas não lhe deu meios para cumpri-los. Inspirou a cidadania, mas ignorou a reforma política.

O ex-presidente José Sarney, um de seus mais ácidos críticos, repete hoje o discurso de 1989: “Ela tornou o Brasil ingovernável.” O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso critica: “Ficou ambígua, não é presidencialista nem parlamentarista.” Mas foi sob ela que o Brasil atingiu o mais longo período de democracia de sua História, uma singular vantagem comparativa ante seus concorrentes diretos no mundo - os outros países do grupo Bric, Rússia, Índia e China.

Vinte anos mudam as pessoas: eleito constituinte pelo PDS, Delfim Netto, ministro do regime militar e signatário do AI-5, diz agora que o capítulo dos direitos individuais da Constituição “beira o estado da arte”. E José Genoino, eleito em 1986 como expoente do Partido Revolucionário Comunista dentro do PT, conta que chegou à Constituinte com um discurso revolucionário radical e saiu de lá como entusiasmado adepto da democracia.

Com seu discurso na cerimônia retumbante de 5 de outubro de 1988, Ulysses marcou o encerramento de 20 meses do mais intenso e prolongado embate político-ideológico já ocorrido no País em períodos democráticos. Convocada em junho de 1985 por mensagem presidencial, a Assembléia Nacional Constituinte (ANC) foi eleita em novembro de 1986, no auge do sucesso do Plano Cruzado de Sarney e do seu partido, o PMDB, que fez 22 dos 23 governadores do País e obteve esmagadora maioria parlamentar. O PMDB elegeu 302 parlamentares (54% do plenário); seu aliado preferencial, o PFL, hoje DEM, fez 133; reunidos, os dois sócios da Aliança Democrática dominavam 80% da ANC. Os partidos de esquerda juntos tinham 9,5%.

A ANC tinha 559 membros - 72 senadores (inclusive 23 biônicos remanescentes) e 487 deputados -, filiados a 12 partidos. Nela operaram 24 subcomissões, 8 comissões e uma Comissão de Sistematização de 93 membros, a arena da grande luta sustentada entre progressistas e conservadores.

Foi a única vez na História que uma Constituição brasileira começou a ser feita coletivamente a partir do zero - todas as outras nasceram de propostas construídas por juristas notáveis. No começo dos trabalhos, em fevereiro de 1987, a esquerda - que tinha muitos aliados encastelados no PMDB - conseguiu impor seus interesses graças à eleição do deputado Mário Covas como líder da bancada do partido e à indicação do senador Fernando Henrique para redigir o regimento da Carta. Covas nomeou gente de esquerda para dirigir as comissões e subcomissões; Fernando Henrique elaborou um regimento que neutralizava a vantagem numérica da centro-direita.

A Constituinte viveu um conflito permanente. Tendências contrárias tiveram de aprender a dialogar - nada, ali, foi aprovado sem minuciosa negociação. Foram recebidas 61 mil emendas de parlamentares e 122 emendas populares; houve 125 audiências públicas. Na fase final de aprovação do texto, foram 1.021 votações nominais, em dois turnos. Ao fim, nasceu a Constituição Cidadã, com 315 artigos, 946 incisos, 596 parágrafos, 203 alíneas, segundo conta feita pelo jurista Saulo Ramos.

Medir qualidades na Carta que nasceu desse processo exige um bom exercício de memória. Vinte anos depois, por exemplo, os que acusam o delicado setor da saúde de ser caótico certamente não se lembram que antes de 1988 doentes sem carteira assinada eram rejeitados nos hospitais conveniados e filantrópicos.

Mas os críticos têm razão, por exemplo, quando dizem que a Carta manietou a economia. Na década de 1990, uma faxina mudou o capítulo da ordem econômica para que o País começasse a funcionar. Todo o artigo 192 caiu. A Desvinculação das Receitas da União (DRU) foi criada para viabilizar a adoção do Plano Real; outras mudanças depuraram o espírito xenófobo para facilitar as privatizações.

Outra crítica certeira diz respeito ao passivo jurídico da Constituinte. Na Carta, grande parte dos comandos não tinha eficácia própria e exigia a edição de 285 leis ordinárias e 41 leis complementares. Muitas nunca foram feitas. Desde 1989, foram aprovadas 62 emendas constitucionais. Hoje, mais de 1.500 emendas ainda tramitam no Congresso.

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (2)

O lento caminho entre o dever no papel e o direito na prática
Carlos Marchi


O taxista Wilson Roberto dos Santos acreditou que o Sistema Único de Saúde (SUS) funcionava bem. Há três anos, parou de pagar o plano de saúde que manteve por 22 anos. Há seis semanas, sentiu-se mal quando dirigia. Estacionou num hospital da Penha, zona leste de São Paulo, e foi ao pronto-socorro. Gostou do atendimento. Depois de dez horas no hospital, saiu com a pressão em ordem e a recomendação para consultar um cardiologista do SUS.

Foi marcar consulta na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de casa, em Cangaíba, zona leste, e descobriu que antes tinha de tirar uma carteira. Tirou. Esperou quatro horas até o computador voltar a funcionar para agendar a consulta com o cardiologista para 30 dias depois, no Hospital São Paulo, zona sul. No dia, chegou pontual, às 7h30; foi atendido às 9. O médico pediu um cateterismo. Teve de retornar à UBS em Cangaíba para marcar o exame. Recebeu um papelzinho com a anotação: volte à UBS em dezembro para saber a data. “Até lá, eu morro”, desola-se Wilson.

O caso de Wilson é um um retrato trágico da falta de atendimento de saúde para moradores das periferias das metrópoles. Mas os números da saúde antes e depois do SUS apontam na direção contrária. Antes de 1988, quem não tinha carteira assinada não era atendido nos hospitais conveniados e filantrópicos, lembra Carlos Mosconi (PMDB-MG), relator da Subcomissão de Saúde da Constituinte.

No âmbito do atendimento universal previsto pelo SUS, a mortalidade infantil caiu pela metade entre 1990 e 2005. No Nordeste, em 1990, morriam 87,3 crianças em cada mil nascidas vivas até os 5 anos; em 2005, eram 38,9. No País, morriam 53,7 e agora morrem 28,7 - 46% a menos.

Várias razões contribuíram para isso, mas a principal, aponta a socióloga Elizabeth Barros, consultora do Ipea, foi a disseminação, pelo SUS, dos serviços de atendimento pré-natal e atenção básica para a infância.

No Nordeste, onde a rede de saúde tem uma presença privada reduzida, o SUS teve de expandir mais a sua capacidade, diz Elizabeth. Uma solução simples - a disseminação da fórmula do soro caseiro - reduziu drasticamente as mortes de crianças por diarréia.

Mas o fator mais importante, assegura a consultora, foi o espírito de ampliação de serviços estimulado pelo conceito do “dever do Estado”, incluído na Carta. “A saúde entrou na agenda do Estado”, diz. Estudiosa do setor há quase 30 anos, ela garante: “O SUS fez diferença - e muita.” Ajudou, por exemplo, a melhorar a expectativa de vida do brasileiro, de 66,9 anos, em 1991, para 72,1, em 2005, melhoria mais expressiva no Nordeste, onde, em média, a população vivia até 62,8 anos em 1991 e em 2005 passou a viver até os 69.

Nesse processo, diz Elizabeth, mudou o perfil da atenção da saúde. Desde os primeiros anos após a Constituição, seguindo outra norma inaugurada por ela - a descentralização -, municípios e Estados passaram a assumir papel preponderante, substituindo o governo federal. Em 1990, a União participava com 72,7% do financiamento da saúde, os Estados, com 15,4%, e os municípios, com 11,8%. Em 2005, a União respondia por 49,9%; os Estados, por 23,1%; e os municípios, por 27%. De 1992 a 2005, surgiram no Brasil 27.388 estabelecimentos de saúde; 23.887 deles eram municipais.

As transferências do Ministério da Saúde para Estados e municípios crescem sem parar desde 1996. Naquele ano, os repasses foram de R$ 400 milhões para Estados e R$ 2,9 bilhões para municípios, diz o Ipea; em 2005, os Estados receberam R$ 9 bilhões e os municípios, R$ 14,8 bilhões.

A idéia de um atendimento de saúde “universalista, gratuito, equânime e descentralizado”, almejado na Constituinte pelos setores de esquerda, ainda enfrenta muitos obstáculos, mas está no caminho certo, mostram os números. O principal problema ainda é o financiamento do sistema, insuficiente para consertar deficiências seculares.

A primeira saída para garantir recursos para o setor foi a criação da CPMF, extinta este ano. Agora, as esperanças de um financiamento sólido estão centradas na Emenda Constitucional 29, de 2002, que destina ao SUS, anualmente, a verba federal do exercício anterior mais o porcentual de variação do Produto Interno Bruto (PIB); Estados ficam obrigados a aplicar 12% da receita tributária e municípios, 15%. Mas a regulamentação da Emenda 29 se arrasta lentamente no Congresso.

DIREITO DE SABER

Outro dever que o Estado brasileiro luta para cumprir, também sem completo êxito até aqui, é o de banir o analfabetismo. No início dos anos 1990, 80% da população entre 7 e 14 anos freqüentava o ensino fundamental; hoje, 97% dela está matriculada nas escolas. Como corolário dessa melhoria, lembra Paulo Corbucci, pesquisador do Ipea, houve forte expansão do ensino médio - no início dos anos 1990, 18% dos meninos de 15 a 17 anos estavam matriculados; hoje, são quase 50%. Mas existem gargalos: 82% dos jovens de 15 a 17 anos freqüentam a escola, mas 34% deles ainda estão retidos no ensino fundamental.

O dever imposto pela Constituição encaixou-se no compromisso das Metas do Milênio, resultado de um grande acordo global costurado pela Organização das Nações Unidas, que cobra a conclusão do ensino fundamental por todos os alunos. O Brasil peca nisso. Conseguiu chegar à quase universalidade de matrícula, mas com um percalço insanável: pouco mais que 50% concluem o curso. “É pouco factível que um país com condições sociais precárias queira ter uma educação de Primeiro Mundo. As coisas não são assim”, diz Corbucci. Para melhorar seus números na educação o Brasil precisa romper o círculo vicioso da miséria, afirma.

Há outros pecados. Duas décadas depois da Constituição Cidadã, estão fora da escola 17% dos jovens entre 15 e 17 anos, 66% dos entre 18 e 24 anos e 83% dos homens entre 25 e 29 anos. Nas duas últimas faixas, esclarecem estudos do Ipea, há uma clara opção dos jovens por desistir da escola, premidos pela necessidade de buscar trabalho.

“Gradualmente, a Constituição conduz a sociedade a cumprir os deveres”, resigna-se o constituinte Delfim Netto, que não se alinhava exatamente entre os defensores dos direitos sociais, mas hoje reconhece que eles melhoraram a sociedade. “Não se definiu um sistema de financiamento para os deveres porque os economistas da Constituinte tinham horror a vinculações orçamentárias”, replica Mosconi. “A Constituição criou os deveres, mas não definiu como eles seriam cumpridos”, diz Jarbas Passarinho, constituinte pelo PDS. “O excesso de liberalidades sociais atrapalhou o crescimento do País”, complementa Marcondes Gadelha (PFL-PB).

A distribuição do bolo tributário na Constituição transferiu recursos para Estados e municípios, mas não distribuiu obrigações na mesma proporção, adverte o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Isso custou a criação de contribuições para compensar a perda”, afirma, explicando a criação da CPMF. Delfim conta ter proposto, à época, que a questão tributária fosse tratada pela legislação comum: “O vínculo federalista no Brasil é histórico. Nossas revoluções sempre tiveram origem num problema fiscal.”

Tantos deveres para o Estado nasceram da utopia socialista que permeava a Constituinte. Bernardo Cabral (PMDB-AM), relator-geral do texto, acha que, de alguma forma, o desenvolvimento brasileiro foi comprometido, mas relativiza: “Não se pode esquecer o momento histórico. Nela estavam cassados, banidos, guerrilheiros, revanchistas, os quais contribuíram para o detalhismo exagerado nas relações de trabalho e no papel do Estado na economia.”

A esquerda patrocinou os deveres, mas não designou fontes de recursos. Ainda hoje, muitos sustentam que a utopia dos deveres é factível: “Os deveres do Estado não são incompatíveis com a realidade brasileira. Podem ser, isso sim, incompatíveis com os administradores brasileiros”, diz o deputado Roberto Freire (PCB-PE).

“Para a esquerda, o bom era o Estado. Sempre sugeria coisas inexeqüíveis. O Centrão propunha no outro extremo”, lembra Fernando Henrique. “Realmente acreditávamos que a sociedade caminhava para o socialismo”, diz Freire. “Eles se achavam portadores do futuro”, ironiza Delfim.

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (3)

O desafio de garantir os direitos individuais
Felipe Recondo e Laura Diniz


É válido que os cidadãos abram mão de sua privacidade para contribuir com a prevenção e o combate ao crime? Qual o maior valor, a liberdade individual ou a segurança coletiva? Estas perguntas estão na raiz do que se pode chamar de pauta de vanguarda do Supremo Tribunal Federal (STF) - ou seja, expressam o conteúdo das futuras polêmicas que a Corte terá de resolver.

Essas discussões virão à tona quando chegar a hora de o STF definir, por exemplo, os limites para o uso de tecnologias modernas em investigações policiais. Mas há outras. O que vale mais, a liberdade de imprensa ou o direito à imagem e à honra? A liberdade de um cidadão fumar em locais públicos ou o dever do Estado de zelar pela saúde da coletividade e vetar o cigarro?

Nesses choques, Estado e cidadãos buscam argumentar com princípios que estão na Constituição, seja nos capítulos que relacionam os direitos e garantias fundamentais, seja nos demais 249 artigos da Carta. Mas isso não é suficiente para confiar razão a algum dos lados. São numerosos os casos, por exemplo, em que o poder público se vale de princípios constitucionais isolados, bem pontuais, para extrapolar os limites de sua atuação.

“O Estado é o principal desrespeitador das garantias individuais e o desafio para os próximos 20 anos é fazer com que os direitos previstos na Constituição sejam efetivamente resguardados”, afirmou o advogado constitucionalista Ives Gandra Martins.

A opinião é reverberada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, vítima de uma suposta escuta telefônica ilegal atribuída a espiões da órbita da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Crítico recorrente de operações policiais que classificava de midiáticas e da proliferação dos grampos, Mendes repete desde o ano passado o discurso contra o que classifica de “ditadura do grampo” e “Estado policial”. “O que se quer, uma superpolícia? Uma superagência de informação?”

Mas mesmo entre juristas e procuradores não há consenso sobre o que deve preponderar nesse debate. “A nossa tradição, não do povão, é de pensar que a liberdade individual passa acima do bem-estar social e, para vencer esse vício, é preciso não apenas instituições jurídicas, mas educação cidadã”, argumenta o jurista Fábio Konder Comparato.

“O cidadão tem o direito de que ninguém saiba onde ele está e o que faz”, afirma o procurador da República Pedro Taques. Ele diz, no entanto, que a quebra de sigilos pode ser fundamental para a investigação de alguns tipos de crimes. “A investigação de alguns delitos, como os crimes contra o sistema financeiro, não se resolve só com prova testemunhal. É diferente da investigação de roubos e homicídios.”

Com o elenco numeroso de direitos individuais listado na Constituição e com o sistemático descumprimento de garantias fundamentais por parte de muitos agentes, inclusive o Estado, o STF passou a ser destino de uma leva de demandas da sociedade. Não é à toa que em 20 anos o número de processos que desemboca no Supremo tenha aumentado em quase 640%.

Tem cabido ao Judiciário, no dia-a-dia, estabelecer o equilíbrio complexo que a Constituição, ao longo de suas páginas, recomendou. O texto constitucional lista uma série expressiva de direitos e garantias fundamentais, e, ao mesmo tempo, fixa muitas restrições a eles.

“É livre a manifestação do pensamento”, diz a Carta, acrescentando: “sendo vedado o anonimato”. Mais: “Casa é asilo inviolável do indivíduo”, “salvo em caso de flagrante delito” ou “por determinação judicial.” Ou, ainda, o inciso XII do artigo 5º: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”. Logo a seguir, o texto faz a ressalva: “Salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.


20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (4)

Os presidentes e a Constituição: Luis Inácio Lula da Silva

Como é governar o País sob as normas da Carta de 1988? É essa a pergunta que o Estado fez a cinco presidentes da República

A Carta Magna de uma nação é a síntese dos anseios de seu povo, moldada pelas circunstâncias da época em que foi constituída. Não foi diferente com a Constituição Brasileira promulgada em 1988. Analisando com o distanciamento destes 20 anos, percebemos que aquele momento histórico produziu uma Constituição extremamente avançada.

Ela pode ser considerada muito detalhista nos seus dispositivos e complicada na relação entre os Poderes, mas não há dúvida de que, na essência, estabeleceu compromissos profundos e radicais com a democracia e os direitos individuas de todos os cidadãos. Compromissos constituídos na luta contra a ditadura e o autoritarismo.

Essa conquista extraordinária da sociedade foi obtida graças à participação popular. Uma participação como jamais houve na História deste País, sobretudo da sociedade organizada. Penso que aquele extravasamento das angústias acumuladas anteriormente na sociedade foi extremamente importante para o País, porque abriu e pavimentou o caminho do maior período de efetiva democracia contínua da nossa História.

Uma democracia ampla e abrangente, que assegurou o voto dos analfabetos e permitiu o voto facultativo dos adolescentes. Lembro que não foi fácil vencer os preconceitos de quem achava que só adultos letrados poderiam escolher bem seus governantes. Foi essa Constituição, corretamente definida como cidadã pelo presidente da Assembléia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, que estabeleceu as bases para uma verdadeira democracia de massa no Brasil. E mexeu nas estruturas políticas, abrindo caminho para que um operário metalúrgico viesse a governar o País.

É verdade que a Constituição não resolveu todos os problemas que nós, constituintes, gostaríamos que fossem resolvidos. Certamente estamos avançando. Tanto na economia quanto nos direitos sociais. Avançamos na instituição do Sistema Único de Saúde. Nas garantias proporcionadas pelos Estatutos da Criança e do Adolescente e da Pessoa Idosa. No Código de Defesa do Consumidor. Nos benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social, que evoluíram para a criação do Sistema Único de Assistência Social. E estamos tentando avançar na política de recuperação do poder aquisitivo do salário mínimo. Só para ficar nesses poucos exemplos.

Temos que avançar mais e poderemos fazer isso na medida em que a economia do País for crescendo. Porque muitas vezes os avanços não dependem apenas de um decreto ou de uma lei. Entre assegurar um direito na legislação e atendê-lo concretamente temos um caminho que passa pelas condições econômicas do País e as circunstâncias políticas de cada governo em um determinado período.

Na minha opinião, esse caminho poderia ser menos acidentado se tivéssemos uma melhor organização política no País. Essa é a grande deficiência que vejo na nossa Constituição hoje. As pessoas não percebem que o Brasil irá consolidar muito mais a sua democracia quando os partidos forem fortes, tivermos fidelidade partidária e financiamento público das campanhas eleitorais.

Acredito que a discussão da reforma política seja um processo irreversível. Quase tudo o que parece ser uma crise, sobretudo quando envolve o Congresso Nacional, é conseqüência da fragilidade das organizações políticas. Por isso, tivemos a iniciativa de mandar, como sugestão, uma proposta de reforma política para os presidentes da Câmara e do Senado, os presidentes dos partidos e os líderes partidários analisarem.

Temos consciência de que não será uma tarefa fácil aprová-la. Mas as dificuldades que enfrentamos são próprias de um processo de construção democrática. Pois só aprendemos a fazer democracia vivenciando-a todo santo dia. Enfrentando obstáculos. Vencendo algumas disputas e perdendo outras. Mas sempre perseguindo aqueles ideais e princípios que moldaram nossa Constituição Cidadã.

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (5)

Os presidentes e a Constituição: Fernando Henrique Cardoso

Ainda antes da promulgação da Constituição de 1988, as dúvidas sobre suas conseqüências para a governabilidade do País começaram a crepitar. Diziam os críticos que o capítulo dos deveres excedia de muito o das obrigações; que a repartição tributária em benefício dos municípios e dos Estados transformaria a União em pedinte; que dispositivos progressistas, como tornar a saúde dever do Estado e direito do cidadão, resultariam em impossibilidades práticas; que a introdução de mecanismos inovadores, como o mandado de injunção, e a ampliação da titularidade para ingressar com ações diretas de inconstitucionalidade poriam em risco o sistema jurídico a toda hora. E assim por diante.

Também pelo lado da esquerda se duvidava das conseqüências positivas de uma “Constituição burguesa”. O PT tergiversou muito antes de assinar o texto, temendo pôr em dúvida as credenciais, que naquele tempo tinha, de partido mais inclinado à “Revolução”, pouco disposto a endossar idéias reformistas...

Apesar das críticas, celebramos 20 anos de uma Constituição que, a despeito de imperfeições, permitiu um período de tranqüilidade democrática como poucas vezes, se é que alguma, houve em nossa História, principalmente depois que o Brasil, na segunda metade do século 20, se tornou cada vez mais populoso, urbano, reivindicativo e interconectado. Mais ainda, se é certo que a Constituição foi pródiga em determinar obrigações ao Estado, não menos verdade é que, ao ser exigente nesse sentido, permitiu desenharmos o horizonte de um Brasil mais decente, menos desigual e mais afinado com as social-democracias contemporâneas, dêem-se a elas ou não esse epíteto.

Com isso, não quero dizer que tenha sido fácil governar sob a nova Constituição. A queda do Muro de Berlim e a globalização mostraram quanto de obsoleto havia nas limitações impostas pela preservação de monopólios onde eles já não tinham mais cabimento, a despeito da utilidade que haviam tido na construção das bases do Brasil industrializado. Pagamos o preço de demoradas e difíceis reformas constitucionais para dar dinamismo à economia. Reformas tão necessárias que o governo, do partido que mais se opôs a elas, não só aproveita de suas boas conseqüências, como ensaia lhes dar continuidade, caso da concessão de rodovias e da recém-anunciada decisão de privatizar parte da estrutura aeroviária.

No esforço de adaptar a Constituição a um mundo cambiante, muito resta por fazer. A escolha, à última hora, do presidencialismo como forma de governo, sem revisão completa do texto, deixou-nos um tanto capengas. As medidas provisórias, copiadas da Constituição parlamentarista italiana, sobraram num texto de inspiração parlamentarista, no qual o presidencialismo foi justaposto. O Congresso manteve atribuições que deveria ter passado ao Executivo, depois de rejeitado o parlamentarismo. Resultado: o presidente, no início, valeu-se de medidas provisórias para aprovar matérias que poderiam ser objeto de meros decretos. Com o tempo, inverteu-se a situação: o que deveria ser lei sob controle do Congresso passou a ser medida provisória da lavra do presidente e de valia imediata. Vemos hoje uma macrocefalia executiva e uma atrofia congressual.

Ao mesmo tempo, a salutar independência do Ministério Público deu lugar a abusos, até recentemente incontidos, e o acesso amplo ao Judiciário levou à judicialização da política, a tal ponto que este último Poder, dado o esvaziamento do Legislativo pela exacerbação do Executivo, se vê na contingência de atuar no limite entre o julgamento e a deliberação. Para não mencionar a precipitação com a qual nós constituintes revitalizamos um sistema de voto quase tão exclusivo a nossos costumes como as jabuticabas ao nosso solo: o do voto proporcional e uninominal, terreno infértil para o fortalecimento dos partidos.

Isso para não falar das contorções feitas para evitar o desequilíbrio fiscal da União. Defendendo-se da repartição dos impostos, ela extrapolou na criação de contribuições, a mais retumbante das quais foi a CPMF, sem a qual não seria possível implantar o SUS e dar conseqüência prática ao que a Constituição determina, a gratuidade e universalidade do acesso à saúde, tampouco para pagar a conta crescente da Previdência. Das contorções por necessidade ao hábito por vício, o passo é pequeno. Agora é hora de deter o impulso de impor mais e mais tributos para sufragar maiores gastos fiscais. Para tanto, o mínimo é não desfazer o que já foi feito, como o fator previdenciário.

Em suma, dá para governar com a Constituição, mas suas virtudes democráticas, garantias dos inalienáveis direitos, e a consecução de seus ideais de justiça social requerem capacidade administrativa, bom senso e, sobretudo, coragem para, sem deixar de gabar o que há de bom no texto constitucional, continuar a modificá-lo para melhorá-lo: preço que pagamos por termos escolhido fazer uma Constituição tão detalhista quanto principista.

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (6)

Os presidentes e a Constituição: Itamar Franco

Fui constituinte participando de um processo polêmico desde o início, em face do pré-questionamento quanto à legitimidade da Assembléia, com poderes originários, sem quebra formal do ordenamento jurídico. O fato de não ser um corpo exclusivo, com a função constituinte sendo exercida por parlamentares eleitos para o Congresso, exigiu a edição de regras específicas para o funcionamento das duas Casas enquanto durasse a Constituinte.

Talvez em conseqüência dessa simbiose, anotamos que, durante o processo, entendimentos eram fechados entre grupos de maneira muito cabível na vida legislativa, mas absolutamente inaceitável para a redação do texto constitucional. Vimos, por exemplo, acordos entre quem buscava ampliar direitos sociais e trabalhistas com outros que em nada se preocupavam com essas questões, mas desejavam incluir regras na ordem econômica que não interessavam aos primeiros. O resultado previsível foi confirmado com um texto não auto-aplicável em questões fundamentais, remetidas à legislação complementar e até à ordinária. Esse é o ponto nevrálgico de nossa Carta, pois doutrinariamente a Constituição deve ser substantiva, fixando somente as regras básicas.

No processo de revisão as emendas se ocuparam, excluído o Fundo Social de Emergência e a fixação do mandato presidencial, de questões pouco fundamentais, tanto é que, após a edição delas, foram promulgadas mais de 50 outras em 20 anos, o que, para um texto constitucional, é demasiado.

A conseqüência está na prática, ainda hoje utilizada, da edição de medidas provisórias, pela qual o Executivo supre suas necessidades imediatas, em face da ausência de normas permanentes (constitucionais e infraconstitucionais) e pela morosidade do processo legislativo ordinário. Louve-se o mérito do avanço da democracia, pelo menos no aspecto formal. A Constituição no campo econômico foi discutível, particularmente nas modificações posteriores.

Apesar das limitações constitucionais que nos eram impostas, uma competente equipe econômica, após sanear nossa economia, formulou as bases do Plano Real, que tive a felicidade de editar em julho de 1994, e, ainda hoje, aperfeiçoado, sustenta nossa estabilidade econômica (inflação de 1% ao dia, à época).

A transferência de recursos a Estados e municípios foi significativa, atendendo aos reclamos de uma política municipalista. Às vezes, sem poder de cobrir gastos, o governo federal lança mão de impostos indiretos e contribuições, elevando a carga tributária. Vale lembrar que, após o Real, uma completa reforma tributária, fiscal e política deveria ter sido feita.

Surgiu a reeleição, a qual quebrou a nossa tradição jurídica e cultural, nefasta sob todos os aspectos. Por isso não a aprovamos quando das Emendas de Revisão, conforme entendimento com nosso líder Pedro Simon.

Hoje, quando se fala em construir 50 usinas nucleares (?!), nunca é demais lembrar o parágrafo 6º do art. 225, no Capítulo do Meio Ambiente: “As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.”

Vale também examinar o art. 14 no Capítulo dos Direitos Políticos. Pela Constituição, tomei posse como presidente conseguindo, com nossa equipe, combater a inflação e manter o Estado de Direito, elegendo, como há muito não acontecia, o sucessor.

Das atuais Constituições impressas, não consta um texto que Ulysses Guimarães agregou ao original: “A Constituição Coragem. O homem é o problema da sociedade brasileira: sem salário, analfabeto, sem saúde, sem casa, portanto sem cidadania. A Constituição luta contra os bolsões de miséria que envergonham o País. Diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem. Graficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança. É a Constituição Cidadã. Cidadão é o que ganha, come, sabe, mora, pode se curar. A Constituição nasce do parto de profunda crise que abala as instituições e convulsiona a sociedade. Por isso mobiliza, entre outras, novas forças para o exercício do governo e a administração dos impasses. O governo será praticado pelo Executivo e o Legislativo.

Eis a inovação da Constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades, contra a ingovernabilidade de muitos. É a Constituição Coragem. Andou, imaginou, inovou, ousou, ouviu, viu, destroçou tabus, tomou partido dos que só se salvam pela lei.

A Constituição durará com a democracia e só com a democracia sobrevivem para o povo a dignidade, a liberdade e a justiça. Brasília, 5 de outubro de 1988. Ulysses Guimarães.”

Sem comentários. Este texto foi retirado por imposição de alguns parlamentares.

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (7)

Os presidentes e a Constituição: Fernando Collor de Melo

As Constituições fundam-se na razão de Estado, qualquer que seja ela, pois seu fim fundamental é a preservação dele, ainda que, como bem assinala Giovanni Sartori, “encontrem-se nelas deslumbrantes profissões de fé por um lado e um excesso de detalhes supérfluos por outro”.

Vivemos 105 anos sob a égide de apenas duas Constituições: a imperial de 1824 e a republicana de 1891. Durante sua vigência, cada qual foi emendada apenas uma vez. Com a Revolução de 1930 e a Carta de 1934, o Brasil assumiu um novo paradigma fundado pela Constituição alemã de Weimar (1918), em que passamos do conceito de normas de conduta para normas de organização. Iniciou-se também o ciclo da instabilidade dos governos e da curta duração de nossas Cartas, sistematicamente alteradas e progressivamente encorpadas.

De 1934 a 1988, em 54 anos, portanto, ganhamos mais seis Constituições. A atual, com 20 anos de vigência, já sofreu 62 emendas, o que denota um evidente excesso de disposições que deveriam ser de natureza infraconstitucional. Afora isso, em 1989 foram identificados pelo Ministério da Justiça 269 dispositivos que exigiam regulamentação. Infelizmente, a falta dessa regulamentação torna muitos dos direitos e garantias individuais, coletivos e sociais meras declarações de intenções.

Mas, de fato, a Constituição de 1988 atingiu o ápice do novo paradigma de organização institucional. Apesar de ser a mais ampla que o Brasil já teve e uma das maiores do mundo, há de se destacar os relevantes avanços sociais inseridos na Declaração de Direitos e Garantias, que lhe renderam o nome de Constituição Cidadã. Sua promulgação foi o momento em que a sociedade brasileira se reencontrou com sua verdadeira Lei Magna, principalmente por não ter sido imposta e sim elaborada por consentimento da população aos constituintes eleitos diretamente para aquele fim.

Ao assumir a Presidência da República em 1990, a Constituição já estava consolidada e plenamente absorvida pela sociedade e suas instituições. Enfrentamos dificuldades de cunho administrativo, no primeiro ano, com o orçamento anual aprovado pelo governo anterior. Foi preciso remodelá-lo aos moldes do programa de nosso governo que ora implantávamos. Sentimos também dificuldades com o novo mandamento constitucional no tocante ao engessamento orçamentário, ou seja, a pouca flexibilidade de que o governo dispõe para executar o orçamento em face dos porcentuais prefixados destinados às diversas áreas, como saúde e educação.

Mas, sem dúvida, a maior dificuldade se deu pela manutenção do sistema presidencialista de governo e o hibridismo de nossa Carta ao adotar o instituto da medida provisória previsto na Constituição parlamentarista de 1948 da Itália. Apesar de meu governo ter sido, proporcionalmente, o que menos fez uso desse instrumento, tornou-se difícil conciliá-lo à prática de um governo presidencialista, principalmente pelos conflitos que o acúmulo de sua edição cria entre Executivo e Legislativo.

Além disso, o regime presidencialista, aliado ao modelo de nosso sistema eleitoral e partidário, gera o chamado “presidencialismo de coalizão” que, desde a redemocratização de 1946, carrega o estigma do fisiologismo político. Meu governo, por não aderir a tal prática, conviveu com todas as dificuldades e desvantagens advindas desse modelo. Se o parlamentarismo tivesse prevalecido como preconizava o anteprojeto da Constituição, sem dúvida viveríamos hoje sob um novo paradigma de governabilidade.

20 ANOS DE CONSTITUIÇÃO (8)

142 dispositivos à espera de regulamentação
Lourival Sant’Anna e Eugênia Lopes

Dos 250 artigos da Constituição, 133 (53%) foram aprovados com a ressalva de que estavam sujeitos a regulamentação por leis a serem aprovadas no futuro pelo Congresso. Muitos artigos abrigavam mais de uma menção à necessidade de regulamentação. Nos 20 anos desde a promulgação da Carta, 209 dispositivos foram regulamentados, ficando 142 (39%) pendentes. A maior parte dos que restaram provavelmente nunca será regulamentada.

“Questões controversas exigem tempo para reflexão e negociação política, mas 20 anos é um prazo extremamente longo e isso acaba devolvendo ao Judiciário uma força arbitral”, afirma o ministro Celso de Mello, o mais antigo do Supremo Tribunal Federal (STF). “É incompreensível a inércia do Congresso na regulação de preceitos constitucionais necessários ao exercício de direitos básicos.”

Um exemplo da ação do Supremo diante do que Mello chama de “omissão” do Congresso ocorreu no caso do direito de greve dos servidores públicos civis. Coube ao STF definir as regras, usando por analogia a legislação aplicada na iniciativa privada. “A omissão do Congresso culmina por frustrar o exercício geral do direito de greve do servidor.”

Para entender por que tanta lei foi empurrada para o futuro é preciso voltar a 1988. “A Constituição foi feita num momento em que não havia um grupo hegemônico, no meio de uma transição negociada cujo protagonista (o presidente eleito Tancredo Neves) tinha morrido”, recorda Floriano Peixoto de Azevedo Marques, especialista em Direito Público. O presidente José Sarney, o deputado Ulysses Guimarães, os diversos grupos e lobbies tinham uma fatia de poder, mas não o suficiente para conduzir acordos a um desfecho que lhes fosse favorável.

Constituições, como leis, são acordos. Elas costumam tratar apenas de princípios, já que é impossível chegar a acordos de uma vez sobre tudo. Além de impossível, é indesejável, porque questões específicas mudam com o passar do tempo e Constituições devem ser feitas para durar. Com a falta de confiança que havia no futuro da democracia brasileira e no próprio Congresso, recém-saído do ciclo de governos militares, os constituintes - e a miríade de grupos sociais que participaram ativamente da elaboração da Carta - decidiram que era preciso colocar tudo na Constituição.

Como nas outras Constituições brasileiras, uma “comissão de notáveis” entregou um texto básico, do qual os constituintes poderiam partir, mas isso foi rejeitado como “ingerência”, recorda o tributarista Antonio Carlos Rodrigues do Amaral. Ao fim, chegou-se a um “monstrengo”, diz o estudioso, de mais de mil artigos, que entraria para o Guinness como a maior Constituição da história da Humanidade. Para evitar o ridículo, muitos artigos foram escondidos dentro de outros artigos, e é por isso que cada um tem tantos parágrafos, incisos, etc.

Essa “solução” não resolveu o problema político de alcançar acordos para tantos temas. A saída encontrada foi postergar essas decisões. Da fase do “tudo precisa estar na Constituição”, passou-se para o “tudo precisa ser regulamentado”, descreve Azevedo Marques. É por isso que a Constituição está repleta de expressões como “na forma da lei” ou “na forma que a lei estabelecer”. O especialista acredita que, em termos qualitativos, 80% do texto esteja regulamentado. O resto simplesmente ficará sem regulamentar - ou porque não devia ter entrado na Carta, ou porque é impossível de pôr em prática, ou porque não interessa a nenhum governo.

Na avaliação de quatro especialistas ouvidos pelo Estado, nenhum direito importante garantido pela Constituição tem sido violado pela falta de regulamentação do um terço que resta. O vácuo é aproveitado por alguns advogados, principalmente do governo, para deixar de assegurar direitos maximalistas ali incluídos, como as garantias de educação e saúde universais. Demandado na Justiça para cumprir essas obrigações, o Estado alega que falta regulamentação. O ônus político é então jogado sobre o Congresso, responsabilidade difusa que não atrapalha a carreira política de ninguém - ao contrário do que aconteceria se a culpa fosse do Executivo. “O Congresso é um vilão útil”, conclui Azevedo Marques.

Dentre os dispositivos nunca regulamentados estava, por exemplo, o que previa que a taxa de juros anual nunca poderia exceder 12% - um evidente absurdo. “Grande parte dessas leis não havia por que fazer”, avalia Carlos Ari Sundfeld, especialista em Direito Público. “Isso só criou oportunidades para pessoas que têm interesses ficarem invocando essas normas para gerar conflitos.” Sundfeld acrescenta: “Não estamos sofrendo por falta de leis, mas por excesso.”

Celso de Mello admite que há dispositivos supérfluos à espera de regulamentação. Cita o artigo 244, que prevê a elaboração de lei para a “adaptação dos logradouros, dos edifícios de uso público e dos veículos de transporte coletivo atualmente existentes a fim de garantir acesso adequado” a portadores de deficiência física. “Há regras na Constituição que não precisavam estar previstas nela”, diz. “Essa é uma delas: bastava fazer uma lei.”

“Nossa cultura nos leva a transferir os problemas da Constituição para a regulamentação”, afirma Rodrigo Muzzi, especialista em Direito Comercial. “Mas a Constituição será melhor compatibilizada se o Judiciário assumir seu papel de intérprete, como vem fazendo.”

Há casos em que o Congresso decide não decidindo. Emenda constitucional introduziu em 1996 a necessidade de lei para regulamentar a criação de municípios. A lei nunca foi votada. Foi um artifício para estancar, sem proibir explicitamente, a criação desenfreada de municípios, que cria despesas sem receitas correspondentes para atender a interesses políticos locais. Não funcionou. “Não é problema de falta de lei”, diz Sundfeld. “Ao não fazer a lei complementar, o Congresso proibiu a criação de municípios e eles continuam sendo criados por desobediência.” Em outubro de 2007, o Supremo deu prazo até abril para a Câmara regulamentar o dispositivo, sob pena de os municípios criados voltarem a ser distritos.

Alguns dos 142 dispositivos da Constituição de 1988 que estão à espera de regulamentação até hoje

Lei que regula a eleição indireta para presidente da República e vice-presidente, caso ambos os cargos fiquem vagos nos dois últimos anos de mandato (artigo 81)

Direito de greve para servidor público (artigo 37)

Lei que limite a compra de terras por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras (artigo 190)

Licença-paternidade (artigo 7)

Criação de municípios (artigo 18)

Autonomia universitária (artigo 207)

Imposto sobre grandes fortunas (artigo 153)

Critérios de avaliação para demissão de servidores públicos (artigo 41)

Criação de fundos para a previdência do servidor público e dos trabalhadores da iniciativa privada (artigos 249 e 250)

Critérios para inelegibilidade de candidatos com ficha suja (artigo 14)

Regulamentação do adicional de remuneração para atividades penosas, insalubres ou perigosas (artigo 7)

O que pensa a mídia

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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