segunda-feira, 29 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Previdência volta a ameaçar o Tesouro

Folha de S. Paulo

Com envelhecimento e mudanças no trabalho, será preciso de novo consertar distorções do sistema para conter o déficit

Apenas cinco anos após a mais recente reforma da Previdência, a perspectiva é de dificuldades crescentes para o financiamento das aposentadorias e pensões, a principal despesa do Orçamento federal.

As alterações de 2019 poupariam cerca de R$ 1 trilhão em uma década e permitiriam estabilizar o gasto do INSS em torno de 8,2% do PIB em 2040 —acima dos 7,92% estimados para este ano, mas quase quatro pontos percentuais a menos do que seria gasto sem a reforma.

Ressalte-se que a estimativa para 2040 subiu a 8,45% do PIB no projeto de lei orçamentária de 2025. No entanto fatores como o envelhecimento da população e decisões do governo e do Congresso indicam que o quadro será bem mais desafiador do que o indicado por essas projeções.

Fernando Gabeira - ‘Dias perfeitos’ e o trabalho modesto

O Globo

Desde quando li sobre o filme de Wim Wenders, supus que tinha algo a ver com minha experiência pessoal

Este artigo é um pequeno contrabando. Não costumo escrever sobre filmes, embora veja sempre um antes de dormir. Na maioria, são tão inexpressivos que me esqueço deles no dia seguinte.

Pensei em escrever sobre “Zona de interesse”, destacando a maneira como trata o nazismo. O turbilhão de notícias me fez esquecer. Agora é diferente. Desde quando li sobre o filme de Wim Wenders “Dias perfeitos”, supus que tinha algo a ver com minha experiência pessoal.

O filme conta a história de um lavador de privadas em Tóquio que vive momentos felizes em seu cotidiano. Já trabalhei em limpeza na Suécia e, apesar do trabalho repetitivo e da crônica dor do exílio, também vivi bons momentos. Essas reflexões valem para países como Suécia e Japão, onde há algum reconhecimento por esse tipo de trabalho e salários dignos.

Preto Zezé - A favela na agenda global!

O Globo

Conferências que seguem até setembro de 2024 têm como objetivo central colocar a favela no mapa do G20

Cada vez mais, milhões de pessoas se deslocam para os grandes centros urbanos, fazendo das cidades uma grande arena de disputas e desafios mundiais. Sem planejamento, esses milhões de pessoas se acotovelam para conseguir viver mais perto da infraestrutura dos centros, das áreas comerciais e dos territórios economicamente mais ativos e, numa corrida desenfreada, se amontoam gerando grandes exércitos de excluídos de possibilidades de existência digna e de meios básicos de sobrevivência, já que viver com qualidade é condição apenas para quem pode pagar para permanecer nessas áreas.

Os desafios têm várias camadas que recortam essa nova configuração e, nesse sentido, a adoção pelo IBGE da nomenclatura e definição de “favelas e comunidades urbanas” ajuda a desinvisibilizar as populações e territórios sobrantes do paraíso da inclusão.

Demétrio Magnoli - Nas relações dos EUA com Israel, é o rabo que abana o cachorro

O Globo

A falsa noção de que Israel é um instrumento geopolítico das estratégias de Washington no Oriente Médio faz parte do manual de dogmas da esquerda. Joe Biden cometeu o maior erro de sua longa carreira ao acreditar nela, imaginando que exerceria influência decisiva sobre a condução da guerra em Gaza.

“Quem, porra, ele pensa que é? Quem, aqui, é a porra da superpotência?”, rosnou Bill Clinton para seus assessores em 1996, depois de suportar uma preleção de Netanyahu. Nas relações dos Estados Unidos com Israel, é o rabo que abana o cachorro.

Israel opera segundo seus próprios interesses — ou, dito de outro modo, segundo o que seus governos definem como o interesse nacional. Da expedição militar a Suez, em 1956, à expansão dos assentamentos, a partir de 1977, o Estado judeu adquiriu o hábito de contrariar seu maior aliado. Uma das raras exceções relevantes foi a concessão de Golda Meir a Henry Kissinger, poupando o sitiado 3º Exército egípcio na guerra de 1973. A primeira-ministra pagou o preço da providencial ajuda militar americana na fase crítica do conflito — e abriu caminho para os acordos de paz com o Egito.

Carlos Pereira* Menos fragmentação, mais fidelidade

O Estado de S. Paulo

Sistema partidário ficou mais funcional não apenas na arena eleitoral, mas também na arena legislativa

Não existem mais dúvidas de que os objetivos pretendidos de redução do número de partidos e da fragmentação partidária foram alcançados com as reformas no sistema eleitoral de 2017, notadamente o fim das coligações partidárias nas eleições proporcionais para deputados.

O cientista político Jairo Nicolau demonstra, por exemplo, que, nas eleições de 2022, houve redução significativa do número de partidos que apresentaram candidatos e dos que elegeram representantes para o Legislativo em todos os Estados da Federação. Ele destaca que as legendas que não atingiram o patamar mínimo de votos acabaram ficando de fora do Legislativo, fazendo com que a representação ficasse mais concentrada em um número menor de partidos, diminuindo, assim, a fragmentação partidária em todos os Estados.

Bruno Carazza - O Orçamento entre o Direito e a Política

Valor Econômico

Suspensão de desoneração tem fundamento técnico e jurídico, mas esbarra na Política

O noticiário nos últimos anos faz parecer que todas as divergências entre Executivo, Legislativo e Judiciário são simplesmente uma briga por poder. Na maioria das vezes, é disso mesmo que se trata. Mas nem sempre.

A desoneração da folha de pagamentos é um programa temporário criado em agosto de 2011 pela então presidente Dilma Rousseff, com duração prevista até dezembro de 2012. Desde então vem sendo continuamente prorrogado, a despeito de seu alto custo fiscal e de resultados econômicos duvidosos.

Nesse período, Joaquim Levy (ministro da Fazenda de Dilma 2), Henrique Meirelles (Michel Temer), Paulo Guedes (Bolsonaro) e Fernando Haddad (Lula 3) tentaram acabar com o benefício. Em vão.

Sergio Lamucci - Cenário externo mais adverso reduz espaço para erros fiscais

Valor Econômico

Com incertezas em relação às contas públicas, o resultado será um equilíbrio com uma Selic mais alta e crescimento mais fraco

Com um terço do ano já transcorrido, o cenário para a economia brasileira mudou bastante em relação ao que se vislumbrava no fim de 2023. Se o desempenho da atividade econômica foi marcado por surpresas positivas, levando as projeções para o crescimento do PIB para a casa de 2%, o ambiente externo piorou e as incertezas em relação às contas públicas se ampliaram.

A perspectiva de que haverá apenas um corte dos juros americanos e os golpes na credibilidade do novo arcabouço fiscal causaram uma mudança importante no câmbio e na taxa de juros de longo prazo, descontada a inflação - o dólar é negociado acima de R$ 5,10 e a taxa dos títulos do Tesouro atrelados ao IPCA se aproxima de 6,2%.

Camila Rocha - Maioria defende todos os direitos para trabalhadores por aplicativos

Folha de S. Paulo

Até o momento, porém, apenas as empresas do setor estão satisfeitas com projeto sobre o assunto

A garantia de direitos para trabalhadores por aplicativos é amplamente defendida pela população brasileira. De acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), em parceria com o Ipec, 60% das mais de 2.000 pessoas entrevistadas apontam que as plataformas devem garantir todos os direitos trabalhistas aos trabalhadores por aplicativo.

São apenas 5% aqueles que acreditam que as plataformas não possuem nenhuma responsabilidade em relação aos trabalhadores.

A lista de direitos defendida pela grande maioria da população compreende: saber os critérios utilizados pelos aplicativos para definir os serviços que cada trabalhador vai realizar (88%); seguro saúde (87%); aposentadoria (83%), liberdade para se sindicalizar (80%); autonomia para definir jornada de trabalho diária (79%); liberdade para recusar trabalho (77%); 13º salário (76%); limitação da jornada de trabalho (75%); descanso remunerado (72%); fornecimento dos equipamentos necessários para o desempenho do trabalho —carro, moto, capacete e mochila etc. (72%); férias remuneradas (71%) e carteira assinada (71%).

Lucio Rennó, Isaac Jordão Sassi* - Maior rejeição a vetos presidenciais reflete novo jogo entre Poderes

Folha de S. Paulo

Pesquisa inédita mostra que Congresso tem derrubado os vetos presidenciais com mais frequência na última década, um dos reflexos de mudanças institucionais que alteraram profundamente as relações entre os Poderes no Brasil, com maior protagonismo do Legislativo e encolhimento do Executivo

As relações entre o Executivo e o Legislativo no Brasil são hoje completamente distintas do que já foram. Um conjunto de instrumentos de poder usado pelo Executivo na gestão de sua base de apoio no Congresso foi alterado profundamente. Assim, a relação entre os Poderes acabou afetada, em prejuízo do presidente da República e benefício do Congresso Nacional.

O Legislativo é hoje mais poderoso do que era e tem mais controle sobre sua própria agenda do que já teve em qualquer outro momento do atual período democrático, pós-Constituição de 1988. No passado, era possível falar em um Poder Executivo que "tratorava" o Congresso, tangenciando o Legislativo.

A preponderância legislativa do Executivo se dava pela força excepcional das medidas provisórias, pela extensa discricionariedade no contingenciamento orçamentário e pela alocação de ministérios. Como reduziram-se os poderes do presidente, resultado de mudanças feitas pelo Congresso, tudo mudou.

Não há proposição legislativa de origem do Executivo, incluindo medidas provisórias, que saia do Congresso incólume. Enquanto as proposições de autoria do Legislativo transformadas em lei crescem enormemente, as originadas no Executivo encolhem.

O emendamento das proposições legislativas por parlamentares é extenso. Apenas temas de interesse dos congressistas, com baixo controle do Executivo, são aprovados. O conteúdo final das propostas já não está mais no controle do Executivo. Sabe-se como entram na pauta do Congresso, mas não como saem.

Nesse contexto, o Executivo atua muito mais como um "gatekeeper", alguém que evita que certos temas sejam tratados, do que um "agenda setter", alguém que propõem os temas. A imprevisibilidade do processo decisório na Câmara aumentou significativamente, como decorrência do encolhimento do poder do presidente.

Marcus André Melo - O Supremo e as relações Executivo-Legislativo

Folha de S. Paulo

'Se o presidente é fraco, o Congresso toma o freio nos dentes?'

Lula acusou Bolsonaro de ser um "bobo da corte que não manda em ninguém e nem controla o Orçamento". Agora a acusação atinge ele próprio. E não só vem de inimigos. Isto é paradoxal à luz da experiência histórica. O Poder Executivo entre nós já foi rotulado por Ernest Hambloch, de "His Majesty, the president of Brazil" (1936), em livro que leva este título. Que ainda rematou que o Congresso brasileiro é "destituído de poderes vis-à-vis o Executivo" e o Supremo é "invariavelmente flácido, dependendo demasiado do Executivo que o nomeia".

Após a adoção da representação proporcional, Hermes Lima (1954) chamou a atenção que o Executivo só se torna hegemônico se controlar a base congressual: "Se o presidente é dotado de forte personalidade e seu partido conta com maioria no Congresso, o Executivo, já poderoso pelo seu caráter unipessoal, impõe de forma avassaladora sua vontade. Se o presidente é fraco, o Congresso toma o freio nos dentes".

João Gabriel de Lima - Museu interativo relembra cotidiano opressivo do salazarismo

Folha de S. Paulo

Inaugurado neste sábado (27), local ressignifica prédio que foi a maior prisão política do regime antes da Revolução dos Cravos

O fado "Abandono", interpretado por Amália Rodrigues, a maior cantora do gênero, começa com os seguintes versos: "Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/ Tão longe que meu lamento/ Não te consegue alcançar". E termina: "Levaram-te a meio da noite/ A treva tudo cobria/ Foi de noite, foi de noite/ E nunca mais se fez dia."

Letra e música ecoaram na voz da cantora Sofia Lisboa durante a inauguração, neste sábado (27), do Museu Nacional Resistência e Liberdade, em Peniche, cidade litorânea portuguesa. O museu funciona no lugar onde se situava a maior prisão política da ditadura salazarista. Hoje abriga uma coleção de memórias da resistência ao autoritarismo. Composto em 1960, "Abandono" se tornou hino dessa resistência —recebendo o apelido de "Fado do Peniche".

Nos festejos dos 50 anos da Revolução dos Cravos, os portugueses não se limitam a celebrar a democracia. Livros, peças e museus se dedicam também a lembrar como era difícil viver sob uma ditadura. A ideia é preservar a memória não apenas de atos de heroísmo, mas também do cotidiano opressivo enfrentado pelos cidadãos no dia a dia.

Poesia | O Constante Diálogo, de Carlos Drummond de Andrade

 

Música | Marisa Monte - Rosa (Pixinguinha e Otávio de Souza)

 

domingo, 28 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Portugal dá lições sobre democracia

Correio Braziliense

As ruas de todas as cidades do país foram tomadas por cidadãos para celebrar o 25 de Abril, quando a Revolução dos Cravos derrubou a mais longeva ditadura da Europa

Na última quinta-feira, os portugueses deram uma grande demonstração do quanto estão dispostos a manter a democracia que reconquistaram há 50 anos. As ruas de todas as cidades do país foram tomadas por cidadãos para celebrar o 25 de Abril, quando a Revolução dos Cravos derrubou a mais longeva ditadura da Europa. Foram 48 anos de um regime que perseguia, prendia e matava seus opositores, mantinha a maior parcela da sociedade na pobreza quase absoluta e protegia uns poucos privilegiados. Esses tempos cruéis continuam vivos na memória de muita gente, mas, nem por isso, Portugal está livre de retrocessos.

Nas eleições realizadas em março último, 1,1 milhão de portugueses votaram no partido de extrema-direita Chega, garantindo 50 assentos à legenda na Assembleia da República. Esse grupo de parlamentares, muito barulhento nas redes sociais, dissemina discursos de ódio, incentiva o racismo e a xenofobia e propaga a imagem de um país que não existiu sob a ditadura de António Salazar. Não se acanha em dizer, publicamente, que se orgulha do período colonialista e da escravidão. Ao longo de quase quatro séculos, Portugal traficou mais de 6 milhões de africanos. O domínio sobre países da África, como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, só foi rompido nos anos de 1970, quando a ditadura salazarista foi derrubada.

Luiz Sérgio Henriques* - Portugal em abril

O Estado de S. Paulo

Cárceres que pareciam eternos, como o Aljube, a depender de engenho e arte, podem se tornar ocasião de catarse e, também, de esperança

Edifício maciço que ladeia a milenar Sé Patriarcal de Lisboa, o Aljube é um destes lugares que desafiaram os séculos, mantendo-se absurdamente fiel à soturna vocação de abrigar tortura e morte. Uma modesta placa na fachada adverte que do silêncio das suas gavetas ou curros, celas obscenamente exíguas, bem como dos corpos desfigurados pela polícia política iria florir abril há exatos 50 anos. Cravos vermelhos e versos admiráveis pelas paredes redimem o ambiente, que agora, como museu e lugar de memória, evoca não só o ilimitado sofrimento humano, mas também o anseio de liberdade que brota de cada chaga e cada grito de dor.

A revolução quase sem sangue de 25 de abril não iria mudar só Portugal. Na conhecida visão de Samuel Huntington, ali teve início uma nova onda forte de democratização – uma onda que se espalharia na direção do Brasil e da América Latina, bem como dos países do Leste Europeu, antes do atual refluxo “desde-mocratizador”. O caso português, naturalmente, teve características específicas. Tratava-se, antes de mais nada, de estancar a sangria provocada pela guerra colonial tardia de um regime contemporâneo dos fascismos clássicos – e ele mesmo fascista à sua maneira.

Merval Pereira - Jogo combinado

O Globo

Ainda há tempo de evitar nova crise institucional, para que a atitude do governo não se confirme como uma afronta política ao Parlamento

O voto monocrático do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Cristiano Zanin, bloqueando a decisão do Congresso de desonerar a folha de pagamentos de empresas de 17 setores da economia, revela uma tabelinha entre Executivo e Judiciário que há muito vinha sendo cultivada pelo presidente Lula. O Legislativo aprovou a prorrogação com apoio da ampla maioria dos parlamentares, inclusive de boa parte da base aliada, mas o Executivo vetou. Veto que foi derrubado sem qualquer dificuldade, mas, mesmo assim, o Executivo voltou à carga, editando, em pleno recesso, uma medida provisória para reonerar a folha, insistindo em afrontar a vontade dos legisladores.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, um dos apoiadores mais consistentes do governo, anotou que a medida provisória foi editada após a aprovação de temas importantes da agenda econômica proposta pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. Alguns aspectos, fundamentais, só entrariam em vigor meses depois, o que parecia indicar a vontade de ganhar tempo para negociar com o Congresso.

Luiz Carlos Azedo - Com o Congresso, tudo; sem o Congresso, nada

Correio Braziliense

Um passeio pela história serve para reflexão sobre Lula e a maioria conservadora do Legislativo. É um equívoco imaginar uma aliança entre o Executivo e STF para domar o Congresso

Na década de 1960, as reformas de base eram um conjunto de mudanças de caráter liberal-social, faziam sentido diante das necessidades de modernização do país. Consistiam nas reformas agrária (distribuição de títulos de terras, desapropriação de terras improdutivas e produção para o mercado interno), administrativa (sistema de compras, meritocracia e regras orgânicas), eleitoral (voto para militares de baixa patente e analfabetos), bancária (controle da inflação por órgão central), tributária (sistema de arrecadação e combate a fraudes e evasão fiscal) e constitucional (necessária para viabilizar as demais).

Bruno Boghossian - Uma arma nada secreta

Folha de S. Paulo

Lula tem direito de recorrer ao tribunal, o que é bem diferente de fazer uma tabelinha permanente

O pedido de Lula para acionar o STF no caso da desoneração dormia desde dezembro na gaveta do advogado-geral da União. O governo adiou por quatro meses a deflagração de mais uma briga na praça dos Três Poderes. Sem sucesso nas negociações políticas, o presidente deu as mãos ao tribunal para derrubar uma decisão do Congresso.

A aliança entre Lula e o Supremo é a arma menos secreta de Brasília. Ainda na transição, o petista deu indicações públicas de que buscaria uma aproximação com o tribunal. O acordo foi estimulado por uma convergência de propósitos que teve como base uma espécie de consenso pós-bolsonarista e uma desconfiança em relação ao Congresso.

Bernardo Mello Franco – A receita de Graciliano

O Globo

Em tempos de reforma tributária, relatórios do escritor ensinam a eliminar privilégios e proteger os mais pobres

Em janeiro de 1929, Graciliano Ramos escreveu um relatório para o governador de Alagoas. Queria prestar contas dos primeiros atos como prefeito de Palmeira dos Índios. “Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos”, avisou, logo na abertura do documento.

O desafio inicial foi estabelecer “alguma ordem” no município. “Havia em Palmeira inúmeros prefeitos”, anotou, numa crítica à bagunça deixada pelos antecessores. De coronéis a “inspetores de quarteirão”, todos mandavam e ninguém se entendia na cidade. “Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam três meses para levar um tiro”, anotou, com a concisão e a ironia que se tornariam marcas de seus romances.

Míriam Leitão - O caminho da Reforma

O Globo

Projeto de regulamentação avançou em diversos pontos, como o cashback, mas mantém privilégios e isenções inexplicáveis

Reforma Tributária, se bem implantada, pode reduzir um velho problema brasileiro, a sonegação. Pelo mecanismo da não cumulatividade, cada etapa da cadeia produtiva só terá crédito se seus fornecedores tiverem recolhido imposto. Isso está sendo criticado como sendo uma forma de transferência da responsabilidade de fiscalização ao contribuinte. É, na verdade, um dos seus méritos. O país precisa de uma nova atitude de empresas e pessoas em relação ao dinheiro coletivo. Não basta apenas pagar impostos, é preciso que o consumidor exija nota fiscal e as empresas usem seu poder para que seus fornecedores e clientes também paguem. Isso é cidadania fiscal.

Celso Rocha de Barros - Reforma tributária e desenvolvimento

Folha de S. Paulo

Mudança pode resolver problemas do desenvolvimento brasileiro

O governo Lula apresentou ao Congresso sua proposta de regulamentação da reforma tributária. Se você pensou em parar de ler a coluna porque o assunto parece chato, não faça isso: hoje em dia, não se pode desperdiçar a chance de conversar sobre coisas que existem, ao contrário da ideologia de gênero ou da ditadura de Alexandre de Moraes.

O problema tributário brasileiro, indiscutivelmente, existe.

Segundo os especialistas, o sistema brasileiro atual é altamente cumulativo. A fábrica de roupas compra tecido e vende camisas. Recolhe imposto na venda de camisas, mas também paga, embutido no preço do tecido, parte do imposto que a tecelagem pagou. Esses restos de impostos que vão se acumulando pela cadeia produtiva são chamados de resíduos tributários.

Um dos principais objetivos da reforma proposta pelo governo é eliminar o resíduo tributário. Se a reforma for aprovada, a fábrica de roupas do exemplo acima receberá um crédito igual ao imposto já pago pelo plantador de algodão. Ele só pagará imposto sobre o valor que ele adicionou. Daí o nome: Imposto sobre Valor Adicionado (IVA).

Vinicius Torres Freire - O preço de carne e os impostos de Lula 3

Folha de S. Paulo

Para o governo, Congresso é ruim quando veta imposto e bom quando deixa aumentar gasto

Quanto se vai cobrar de imposto sobre venda de carros? De carne e outras comidas? O que vai ser de planos de saúde? Cada empresa ou ramo de negócios tenta puxar a brasa para sua sardinha enquanto o Congresso discute a lei que vai definir os detalhes que darão sentido prático à reforma dos tributos sobre o consumo, que por enquanto é uma mudança mais genérica inscrita na Constituição.

Essa disputa já está clara. Deve ficar mais complicada porque se expande a guerra dos impostos e sobre outros dinheiros públicos. São dezenas de setores empresariais, com apoio do Congresso, versus Lula 3; é STF versus Congresso; são estados e municípios versus governo federal. Etc.

Quanto menor a alíquota do imposto sobre o consumo de um produto ou serviço, maior será a de outros. O conflito em parte é normal. Em parte, é resultado de velhos vícios, a tentativa de cavar favores estatais para beneficiar o próprio negócio, o que ajudou a criar o monstro tributário brasileiro.

Muniz Sodré - Brasil! Selva!

Folha de S. Paulo

Por mais disparatado que seja, o golpismo precisa de algum discurso

Pelo que se vê na mídia, toda a expertise e o dinheiro de Elon Musk não lhe valem uma fala com algum sentido. Ele padece da mesma afecção linguística da ultradireita brasileira, cujo vocabulário político ativo, fora as narrativas mentirosas, resume-se a "liberdade". Isolada, a palavra não significa nada.

O mesmo drama transparece nas investigações do ataque do 8 de janeiro: nos relatos quase etnográficos sobre o famigerado acampamento dos insurretos salta à vista a escassez de palavras de ordem coerentes.

Reconfortaram-se um dia ao saberem que a esposa de um general, ícone do golpismo, em visita ao local, faria um discurso. E ela fez: "Brasil! Selva!". Curto, não grosso, sem narinas dilatadas nem olhar de ódio.

Elio Gaspari - Netanyahu no golpe do ‘cachorro doido’

O Globo

'Governo de Israel atravessa um inédito processo de isolamento fora do mundo islâmico'

Em 2007, quando estava na oposição, Benjamin Netanyahu ensinou:

“Você não pode ter um primeiro ministro num país como Israel se ele não tem algum tipo de habilidade para conceber um conceito de diplomacia e segurança.”

Desde outubro, quando os terroristas do Hamas atacaram Israel, sabia-se que seus serviços de inteligência haviam fracassado. Só agora o general que os comandava deixou o cargo. Seis meses depois, enquanto o governo de Netanyahu atravessa um inédito processo de isolamento fora do mundo islâmico.

As manifestações de estudantes americanos acampando em universidades são um aviso de que algo está acontecendo. Eles não são contra Israel. Condenam o tipo de guerra que Netanyahu faz na Faixa de Gaza.

O primeiro-ministro de Israel entrou na tenebrosa galeria dos governantes que fazem o jogo do “cachorro doido”. Acreditam que prevalecerão indicando aos outros que são capazes de fazer o impensável.

Dorrit Harazim - Sumidouro

O Globo

Quanto mais longa, mais nos entorpecemos com o noticiário repetitivo. Só quando a desgraceira acusa algum pico de desumanidade, voltamos a prestar atenção ao horror

É sabido que somente cada um de nós pode construir a ponte em que atravessará o rio da vida. Nessa trajetória, somos únicos e estamos sozinhos. O caminho de fuga mais fácil para essa travessia, esse navegar pela vasta e complexa realidade que escapa a nosso controle e compreensão, é acumular certezas. Só que certezas de porteira fechada, além de daninhas para nós mesmos, em nada ajudam o convívio em sociedade. Como escreveu o espirituoso ensaísta americano George Saunders, neste mundo cheio de pessoas que confundem certeza com poder, é um alívio encontrar alguém que não teme a própria insegurança. Não raro são mentes privilegiadas, perpetuamente curiosas, que sabem como a realidade é plural, não singular, planície para vários pontos de vista, não ponto de observação com foco único.

Eliane Cantanhêde – O refresco durou pouco

O Estado de S. Paulo

A ciranda continua: governo, Congresso e Supremo correndo um contra o outro

Tudo muito bem, tudo muito bom, mas... A articulação política e as relações entre os Poderes pareciam ter avançado ao longo da semana, mas sofreram um freio brusco que embola todos os problemas e desacertos: o pedido do governo e o julgamento do Supremo contra a desoneração da folha de pagamento de empresas e municípios. O Congresso prorrogou a desoneração, o presidente Lula vetou, o Congresso derrubou o veto de Lula e o Supremo agora entra para arbitrar o jogo.

Rolf Kuntz - A desigualdade, a pauta e o crescimento

O Estado de S. Paulo

Apesar dos obstáculos à expansão duradoura da atividade econômica, a inclusão da igualdade no topo da agenda do governo já é um dado especialmente positivo

Ruim em qualquer país, a desigualdade econômica é trágica no Brasil, porque envolve baixa educação, subemprego ou desemprego, dificuldade de acesso a alimentos e até fome. Havia insegurança alimentar em 21,6 milhões de domicílios, 27,6% do total, no quarto trimestre do ano passado. A insegurança era grave em 4,1%, ou 3,2 milhões de domicílios. Assustador em outros países, um quadro como esse é especialmente preocupante no caso do Brasil, grande produtor de alimentos e uma das dez maiores economias do mundo, de acordo com o Fundo Monetário Internacional.

Para cientista, o país está sob o domínio da política do ‘eu quero o meu’

Para o professor Alberto Aggio, da Universidade Estadual de São Paulo, o governo e o PT são parte desse sistema

Por Hugo Marques / Revista Veja

Diante de um orçamento apertado, o Congresso está em vias de aprovar a PEC do Quinquênio, que vai engrossar aumentar as despesas em estimados 42 bilhões de reais em vantagens que serão pagas a juízes e outras categorias do serviço público. Reportagem de VEJA desta semana mostra este descompasso com o mundo real. No município baiano de Dias D’Ávila, por exemplo, os professores foram “agraciados” com um reajuste salarial de inacreditáveis 46 centavos.  Para o cientista político Alberto Aggio, da Universidade Estadual Paulista, os setores mais organizados têm prevalecido cada vez mais na definição do Orçamento, inclusive porque atores políticos importantes do passado perderam força. Para ele, o próprio PT não tem mais a capacidade de articular com segmentos da sociedade para tentar democratizar o Orçamento. Essa é a realidade. E o governo Lula é parte dela.

Entrevista | Haddad: Congresso tem de respeitar Responsabilidade Fiscal

 

Responsabilidade fiscal não é aderir ao Executivo, diz Pacheco

Douglas Gravas / Folha de S. Paulo

Presidente do Senado rebate críticas do ministro ao Congresso feitas em entrevista à Folha

O presidente do SenadoRodrigo Pacheco (PSD-MG), rebateu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que, em entrevista à Folha, disse que o Congresso também precisa ter responsabilidade fiscal.

"Uma coisa é ter responsabilidade fiscal, outra bem diferente é exigir do Parlamento adesão integral ao que pensa o Executivo sobre o desenvolvimento do Brasil", disse o senador, por meio de nota enviada à imprensa neste sábado (27).

Segundo Pacheco, "o progresso se assenta na geração de riquezas, tecnologia, crédito, oportunidades e empregos, não na oneração do empresariado, da produção e da mão de obra".

Poesia | Soneto do amor total - Vinicius de Moraes

 

Música | Morena dos olhos da água - Chico Buarque

 

sábado, 27 de abril de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Abandono de obras da Copa é sinal de governança frágil

O Globo

Não faltou dinheiro para mobilidade urbana. Faltaram planejamento, fiscalização e cobrança de resultados

Passados dez anos da Copa do Mundo no Brasil, 38% dos projetos de mobilidade urbana pensados para o torneio foram abandonados ou concluídos apenas parcialmente. Por ser um retrato do que costuma acontecer no país, o dado é uma oportunidade para uma reflexão que vá além do debate sobre o legado de eventos esportivos. Identificar as causas do baixo índice de execução de obras é primordial para que o Brasil deixe de ter uma infraestrutura sofrível, mesmo na comparação com países no mesmo estágio de desenvolvimento.

No período anterior à Copa, prefeitos e governadores puseram projetos de mobilidade urbana na lista de metas. Nem todos eram essenciais para receber os torcedores, mas a demanda tornou evidente a deficiência nas capitais que hospedariam os jogos. De acordo com estudo do economista Cláudio Frischtak, para equiparar o transporte público das 15 principais regiões metropolitanas brasileiras ao de Santiago, no Chile, ou da Cidade do México, seria necessário investir R$ 295,5 bilhões.

Marco Aurélio Nogueira - Parados no tempo

O Estado de S. Paulo

Não avançaremos se a lógica política continuar a ser vivida exclusivamente como contraposição mal qualificada entre esquerda e direita

O Brasil estacionou. Tudo transcorre como se as cartas já tivessem sido lançadas e o antagonismo se reduzisse ou a ruídos congressuais ou a embates retóricos entre a esquerda oficial, devidamente entronizada no Palácio, e a direita extremada, agarrada a seus fantasmas e à fustigação moralizante contra tudo o que possa exalar direitos e democracia.

No meio disso tudo, a economia fica como a joia da Coroa. Se avança e é alcançada pelas reformas pontuais do ministro Haddad, os ares melhoram. Se trava, é um Deus nos acuda.

Cristovam Buarque* - O padrão a ser buscado

Revista Veja

É preciso ampliar e replicar o sucesso das escolas públicas federais 

Entre o Merenda Escolar (1955) e o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (2023), o Brasil lançou vinte programas federais com promessas de salto na educação. A necessidade desse último, sete décadas depois do primeiro, mostra o fracasso dos anteriores: os bisnetos ainda estão precisando de pacto federativo para realizar, aos 8 anos, o que deveria ter beneficiado seus bisavós, aos 5. Fracassamos porque, no lugar de projetos executivos nacionais ambiciosos, optamos por intenções modestas com execução municipal, pobre e desigual. Sem uma política nacional ambiciosa e com instrumentos federais efetivos, em 2041 apenas 50% dos 2,5 milhões de brasileiros que nasceram em 2023 terminarão o ensino médio; no máximo a metade deles preparada para as exigências do mundo contemporâneo.

Hélio Schwartsman - Tragédia brasileira

Folha de S. Paulo

Expectativa é que Congresso piore a proposta de regulamentação da reforma tributária

Fazer política é negociar, isto é, tentar entender o ponto de vista de outros atores, o que ajuda a formular respostas inovadoras para os problemas, e encontrar soluções de compromisso, que permitam às partes ceder e ainda sair com vitórias parciais. Grupos altamente ideológicos ou religiosos tendem a ser autoritários porque veem o mundo em termos de valores absolutos, que não comportam nenhum tipo de negociação.

Alvaro Costa e Silva - Um libertário em causa própria

Folha de S. Paulo

Mais do que nas ruas e redes, bolsonarismo é forte no Congresso

O ato com público decepcionante em Copacabana não pode servir de parâmetro, não significa que a fé cega em Bolsonaro —professada tanto por quem mora longe como perto da praia— esteja perdendo o gás. Recente pesquisa mostra que o prefeito Eduardo Paes, candidato à reeleição, tem 42% das intenções de voto, enquanto Alexandre Ramagem, do PL, já aparece com 31%.

Carlos Alberto Sardenberg - É o contrário

O Globo

Lula só conseguiria o que quer, juros menores e mais crescimento, se fizesse (e falasse) o contrário do que faz e prega

O presidente Lula quer, ao mesmo tempo, acelerar os gastos do governo e obter uma redução significativa na taxa de juros. São objetivos incompatíveis. O aumento da despesa acima da receita produz déficit, coberto com dinheiro tomado emprestado pelo governo. O crescimento da dívida, já contratado para este e os próximos anos, aumenta o gasto do governo com juros. Isso eleva a taxa de juros da economia. E o governo fica procurando quebra-galhos para reduzir os juros de alguns setores.

Nesta semana, Lula anunciou um programa para conceder crédito a microempreendedores, micro, pequenas e médias empresas, a juros favorecidos — alguma taxa abaixo do que os beneficiados obteriam em condições normais de mercado. Deve haver, portanto, algum subsídio. E um apoio no sentido mais amplo: abrir o crédito para setores que não o obteriam no mercado.

Pablo Ortellado - A ciência e o populismo

O Globo

Uma das consequências nefastas do antibolsonarismo é que ele distorceu o entendimento do público sobre a ciência

O populismo antissistêmico que a direita abraçou é um bicho com que é difícil lidar. É anti-institucional, anti-intelectual, agressivo e selvagem — em resumo, não sabe usar os talheres. Quando chegou ao poder com Bolsonaro e passou a comandar a burocracia do Estado, recebeu acertadamente oposição. Mas, em geral, essa oposição tomou a forma de uma negação automática: se Bolsonaro recomenda de maneira imprudente, a atitude responsável passou a ser afirmar enfaticamente o contrário.

Em nenhum momento o controle do Estado pelo populismo foi mais crítico que durante a pandemia. Bolsonaro coordenava o SUS, controlava o Ministério da Saúde, a Anvisa e a Fiocruz, um pesadelo. Na ânsia de se contrapor às teses selvagens e absurdas dele sobre o coronavírus e a pandemia, deixamos de analisar ideias próximas às dele ou que poderiam ser identificadas com ele. Isso nos levou a muitos erros na condução da pandemia —erros sobre os quais ainda não nos debruçamos.

Eduardo Affonso - Movimento Brasileiro de Analfabetização

O Globo

Nada é tão ruim que não possa evoluir para péssimo. À direita, uma prefeita joga livros no lixo; à esquerda, uma senadora tenta encarecê-los

Quando ainda nem sonhava vir a ser cancelado por gente com menos de uma migalha de seu talento, Monteiro Lobato escreveu que “um país se faz com homens e livros”. Hoje, o aforismo teria de ser reescrito: “Uma nação se faz com criaturas humanas e seus saberes”. Tanto o macho da espécie como metonímia para a Humanidade quanto as folhas de papel, cortadas e encadernadas, já tiveram melhores dias.

O último ocupante da Presidência da República, desde FH, a demonstrar ter tido contato imediato e proveitoso com livros foi Michel Temer.

Jair Bolsonaro lia, no máximo, passagens bíblicas e minutas de golpe — eclético, chegou a indicar a seguidores as obras de Churchill, Brilhante Ustra e Olavo de Carvalho.