sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Opinião do dia - Giuseppe Vacca*

Não há dúvida de que as “ideologias” têm para Gramsci peso maior do que para qualquer outro pensador marxista, mas afirmar que “tornam-se o momento primário da história” equivale a inserir seu pensamento nos quadros conceituais da “filosofia do espírito” de Benedetto Croce. É verdade que Bobbio aplica ao pensamento gramsciano um paradigma dicotômico (estrutura/superestrutura) que não se lhe adapta. A “distinção entre sociedade política e sociedade civil” – escreve Gramsci – é uma “distinção metodológica”, não “orgânica”. “Sociedade civil e Estado se identificam na realidade dos fatos”. É um dos trechos mais conhecidos do Caderno 13, no qual Gramsci polemiza com o liberalismo porque, considerando “orgânica” o que deveria ser uma distinção “metodológica”, contrapõe o mercado ao Estado, ignorando que “também o liberismo é uma ‘regulamentação’ de caráter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva”[1]. Além disso, para Gramsci, a distinção entre estrutura e superestrutura é de caráter “metodológico”, tanto que a “metáfora arquitetônica”, em certo momento, cede o passo a outras conceituações.

*Giuseppe Vacca, Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci, Brasília/ Rio de Janeiro: FAP/ Contraponto, 2016, p. 267



[1] A. Gramsci, Quaderni del carcere, cit., p. 1592.

Merval Pereira - O paradoxo do auxílio emergencial

- O Globo

A alta da popularidade do presidente Bolsonaro, confirmada pela pesquisa Ibope/CNI divulgada ontem, traz um paradoxo para o governo. Ao mesmo tempo que revigora sua força política, obriga-o a obter a aprovação para o novo programa social que entraria em vigor no início do ano que vem, quando termina a vigência do auxílio emergencial da pandemia.  

A pesquisa deixa claro que foi esse auxílio que alavancou a popularidade de Bolsonaro. Uma das maiores altas na popularidade do presidente foi registrada entre os  com renda familiar de até um salário mínimo, com a avaliação do governo como ótimo ou bom, passando de 19% para 35%.  Outros 31% nessa faixa de renda ainda acham o governo ruim ou péssimo.  

Por regiões, Bolsonaro ainda não é “o pai de todos” no Nordeste, mas já conseguiu empatar com a desaprovação, embora ainda seja esta a região onde ele é menos apoiado. Um ponto de alerta para ser observado é que a pesquisa do Ibope foi realizada antes da primeira parcela reduzida do auxílio emergencial, que cairá de R$ 600 para R$ 300 a partir do mês que vem.  

A proposta inicial do ministro Paulo Guedes, da Economia, era de um auxílio de R$ 200, que o Congresso elevou para R$ 500. O presidente Bolsonaro, para não perder a hegemonia do processo, aumentou então o auxílio emergencial para R$ 600, sem mesmo consultar Guedes.

Esse aumento que triplicou o auxílio emergencial trouxe dividendos eleitorais ao presidente, mas agora lhe impõe a necessidade de manter pelo menos os R$ 300, sem que haja nem mesmo a possibilidade de saber o impacto da queda pela metade do auxílio.  

Bernardo Mello Franco – O bispo, o tribunal e a urna

- O Globo

Marcelo Crivella se candidatou a prefeito, mas governa o Rio como bispo. Desde que tomou posse, ele serve aos interesses da Igreja Universal, fundada por seu tio. A cidade que se julgava cosmopolita virou laboratório de um projeto que mistura política e religião.

Neste modelo de governo, as crenças do pastor falam mais alto que as obrigações do gestor. Crivella boicota o carnaval, festa mais importante da cidade, porque sua igreja associa a folia ao pecado. A atitude prejudica o turismo e a indústria do samba, que gera milhares de empregos durante todo o ano.

Em 2019, o prefeito mandou apreender um gibi por causa de um beijo entre dois homens. A censura foi derrubada pela Justiça, mas tumultuou a Bienal do Livro. Há quatro meses, ele mandou instalar um tomógrafo no estacionamento do templo da Universal na Rocinha. O aparelho deveria ter sido montado na UPA, onde os moradores são atendidos sem discriminação religiosa.

Flávia Oliveira - A fobia é ao axé, presidente

- O Globo

Em lugar algum da Constituição está escrito que uma só fé define a nação

Em religiões de matriz africana, Tempo é divindade. Pois só intervenção divina, não coincidência, explica que mais de um século de sequestro de peças sagradas de religiões de matriz africana tenha chegado ao fim na véspera do discurso em que o presidente da República exortaria o mundo a combater a cristofobia e apresentaria o Brasil à ONU como país cristão e conservador. Foi na segunda, 21 de setembro, que o caminhão com 72 caixas retiradas do antigo prédio do Dops — órgão de repressão tanto do Estado Novo quanto da ditadura militar — estacionou no Museu da República, novo endereço da Coleção Magia Negra, já rebatizada de Acervo Sagrado Afro-Brasileiro. O sentido pejorativo da denominação por autoridades policiais é evidência da perseguição histórica sofrida por terreiros de umbanda e candomblé. A fobia é ao axé.

Jair Bolsonaro acenou a grupos religiosos que formam sua base de apoio político-eleitoral e deu as costas à Carta que jurou respeitar. No parágrafo VI do Artigo 5º, a Constituição Federal estabelece que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. O Brasil fez uma escolha conservadora nas urnas em 2018. É um país com muitos cristãos — católicos, protestantes e neopentecostais são maioria —, mas em lugar algum está escrito que uma só fé define a nação.

Luiz Carlos Azedo - Derrota do racismo estrutural

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

 A decisão de Lewandowski é histórica porque sinaliza para a população negra, principalmente os mais jovens, que a política pode deixar de ser um instrumento de discriminação racial 

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, em memorável decisão, definiu, ontem, por medida liminar, os critérios para destinação de recursos do fundo eleitoral aos candidatos negros nas eleições municipais deste ano, com validade imediata, cabendo ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) definir outros critérios, se assim entender. Como o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, tem feito críticas duras ao racismo estrutural e questionado a sub-representação da população negra nos partidos e casas legislativas, muito dificilmente a decisão será revertida na sua essência, ainda que os partidos aleguem falta de tempo para se ajustar aos novos critérios.

A liminar de Lewandowski é coerente com decisões anteriores sobre o mesmo tema, bem como a jurisprudência que vem sendo firmada tanto no Supremo Tribunal Federal (STF) quanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a adoção de ações afirmativas com critério racial. No histórico julgamento da ADPF 186, que questionava o programa de cotas com critério racial na Universidade de Brasília, em 2011, o Supremo considerou improcedente o recurso apresentado pelo DEM e considerou as cotas raciais constitucionais. Relator do processo, Lewandowski sustentou que as cotas da UnB não eram desproporcionais ou irrazoáveis, mantendo a reserva de 20% das vagas para candidatos negros e indígenas. Os demais ministros acompanharam seu voto por unanimidade.

Na ocasião, Lewandowski ponderou que o Estado, com o fito de alcançar a igualdade material, deve desenvolver tanto políticas universais quanto afirmativas. Na mesma linha, o ministro Marco Aurélio Mello, interpretando a Constituição de 1988, que promoveu uma verdadeira revisão sobre a questão racial no Brasil, desenhou: “Pode-se dizer, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos “construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança de óptica, ao denotar “ação”. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar — e a Carta da República oferece base para fazê-lo — as mesmas oportunidades. Há de ter-se como página virada o sistema simplesmente principio lógico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa.”

A decisão de ontem é histórica porque sinaliza para a população negra, principalmente os mais jovens, que a política pode deixar de ser um instrumento do racismo estrutural no Brasil para ser uma via de ascensão ao poder e uma alavanca para grandes mudanças na condição social dos negros brasileiros. Como na questão das cotas, tem esse papel simbólico, além de ser uma política de reconhecimento, de compensação pela discriminação e de promoção de novas lideranças negras. No fundo, é quase uma decorrência da política de cotas nas universidades e, inevitavelmente, acabará chegando formalmente, também, à contratação de trabalhadores e à composição da direção das empresas.

Ricardo Noblat - Governo ignora o que lhe cabe e se mete onde não deve

- Blog do Noblat | Veja

E segue o baile

Talvez o presidente Jair Bolsonaro não chegue ao ponto de ter vontade de sacar do revólver quando ouve falar em Cultura. Numa peça antinazista de Hanns Jost, encenada em Berlim em 1933, ano em que Hitler assumiu o poder, um personagem dizia: “Quando ouço alguém falar em Cultura, saco o meu revólver”.

Mas Cultura não é lá do agrado do ex-capitão, que já confessou que nunca leu um livro. “Tem muita letra”, queixou-se. “Precisa ter mais figuras”. Por extensão, Educação também não é. Em pouco mais de um ano e meio de governo, dois tristes nomes passaram pelo Ministério da Educação. E o terceiro começou mal.

O pastor presbiteriano Milton Ribeiro revelou-se um homofóbico logo em sua primeira entrevista desde que assumiu o cargo. Disse que a homossexualidade é uma “opção”, que ele atribui ao que chamou de “famílias desajustadas”. “Normalizar isso e achar que está tudo certo é uma questão de opinião”, declarou. Não é.

Pediu para receber uma dura resposta de qualquer dos seus antagonistas, e a recebeu do youtuber Felipe Neto (33 milhões de seguidores nas redes sociais), recém-incluído na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2020, segundo a insuspeita revista americana “Time”. Neto perguntou ao ministro:

“Se família desajustada gera homossexuais… Que tipo de família gera envolvimento com milicianos e desvio de verba de gabinete para compra de imóveis, além de lavagem de dinheiro?”

Ribeiro pensa o que disse, mas fez questão de dizer para reconciliar-se com Bolsonaro, irritado desde que ele recebeu em audiência um grupo de deputados federais da oposição – entre os quais, Tabata Amaral (PDT-SP). Foi na quarta-feira da semana passada, segundo contou Igor Gadelha, repórter da CNN Brasil.

Bolsonaro orientou Ribeiro a filtrar mais quem recebe no ministério. E, se tiver que receber opositores do governo por obrigação, que não saia divulgando positivamente esses encontros. Que não fosse ingênuo e não se auto sabote. Ribeiro explicou que os deputados integravam uma comissão da Câmara. E daí?

Além de preconceituoso, Ribeiro revelou-se ignorante ao sugerir na entrevista que seu ministério não está interessado em aperfeiçoar a tecnologia nas escolas. Para ele, por exemplo, a dificuldade do ensino a distância durante a pandemia do coronavírus é problema dos outros, dele não:

– A sociedade brasileira é desigual, e não é agora que a gente vai conseguir deixar todos iguais. Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil.

Dora Kramer - Patriota do avesso

- Revista Veja

A pretexto de defender, Bolsonaro só propicia agressões ao Brasil

A menor das preocupações de Jair Bolsonaro é com o humor do mundo. Pouco se lhe dá que o discurso feito na abertura da Assembleia-Geral da ONU tenha sido desconstruído ponto a ponto e, por obra da versão fantasiosa, angariado críticas e descrédito. O presidente está se lixando para a avaliação mundial sobre o governo dele, assim como não liga a mínima para a opinião do público interno que compreende a extensão dos prejuízos causados pela devastação dos nossos recursos naturais e a degradação da imagem do Brasil no exterior.

A maior preocupação de Jair Bolsonaro é com o estado de espírito do brasileiro médio que vota e explicita suas demandas prioritárias em pesquisas como a do Ibope publicada no jornal Estado de S. Paulo no último dia 21. Ali foram listados dezoito itens para que os eleitores paulistanos apontassem suas premências: o meio ambiente ficou com o penúltimo lugar, com índice de 1%, apenas atrás do lazer e cultura, que registraram 0% na escala de interesses dos consultados.

É nesse tipo de cenário (provavelmente replicado país afora) de prioridades relacionadas a saúde, transporte, segurança, emprego, educação e outras carências que o presidente da República concentra suas atenções, convicto de que, assim, fala para o enorme contingente em cuja pauta de urgências não consta a preservação do meio ambiente. Um dado de lamentável realidade ao qual se atém o presidente em detrimento do dever e da necessidade de incutir na população a educação ambiental como fator essencial de sobrevivência.

“O populismo regressivo em vigor deseduca e só nos leva à desordem e ao retrocesso”

Eliane Cantanhêde* - Não é com ele

- O Estado de S.Paulo

Ibope confirma: realidade e racionalidade não definem popularidade

O que o presidente Jair Bolsonaro, o ex-presidente Lula e o presidente americano, Donald Trump, têm em comum? Chova ou faça sol, seus seguidores se mantêm firmes e fortes e, quanto mais eles erram, mais bobagens falam, mais consolidam e ampliam sua popularidade. É um fenômeno político que resvala para a seara religiosa, de crença, de dogmas.

Quando a paciência do então ministro Sérgio Moro se esgotou, a deputada bolsonarista Carla Zambelli, sua afilhada de casamento, ficou apavorada: “Bolsonaro vai cair se o senhor sair”. Pois é. Bolsonaro não caiu e, muito pelo contrário, não para de crescer nas pesquisas. Se nem a queda de Moro o afetou, o que poderia afetar?

Pelo CNI/Ibope, a aprovação de Bolsonaro deu um salto de 29% para 40% e a desaprovação caiu de 38% para 29%, entre dezembro de 2019 e agora. E o que marcou esse período? A pandemia, que já matou perto de 140 mil brasileiros e milhões de empregos, e as queimadas, que devoram a Amazônia, o Pantanal e a confiança do mundo no Brasil. Os fatos, que seriam contra qualquer governante, não atingiram Bolsonaro e ele até saiu lucrando. Seria simplista atribuir isso só aos R$ 600.

Daí a comparação com Lula, que passou incólume pelo mensalão, esquema engendrado e operado no Planalto, e pelo petrolão, que resultou até em prisão, e levou Fernando Haddad ao segundo turno em 2018. Daí, também, a comparação com Trump, que mente, tripudia, se lixa para direitos humanos, afugenta todos os principais assessores, inclusive os militares mais graduados, mas dividiu a potência em torno dele. Em 3 de novembro, os americanos não estarão votando entre Trump e Joe Biden, mas a favor ou contra Trump.

É o que ocorre neste momento no Brasil, com o mundo e boa parte da opinião pública nacional aterrorizados com a ojeriza ou descaso de Bolsonaro com educação, saúde, meio ambiente, cultura, política externa, direitos humanos. A ponto de os opostos – agronegócio e ambientalistas, bancos e cientistas, ex-ministros tucanos e petistas – se unirem para defender a Amazônia. De quem? De Bolsonaro. Mas, apesar disso tudo, ele não só mantém como amplia apoios.

Reinaldo Azevedo - O povo e as elites contra a democracia

- Folha de S. Paulo

Sistema, que vai além da escolha de governantes, está em perigo porque a paixão das facções chega às decisões de Estado

Pesquisa CNI-Ibope aponta recorde de popularidade do governo Bolsonaro. Acham seu governo ótimo ou bom 40% dos entrevistados. Apenas 29% dizem ser ruim ou péssimo. Estou com a minoria dos 29%. "Que é, Reinaldo, vai discordar da maioria do povo?" Já fiz isso muitas vezes.

Em 2006, no auge de embates com esquerdistas, escrevi um texto que me rendeu uma tempestade de insultos. Lá se lia: "Fico aqui queimando as pestanas, tentando achar um jeito de eliminar o povo da democracia. Ainda não consegui. Quando encontrar, darei sumiço no dito-cujo em silêncio. Ninguém nem vai perceber...".

Um amigo me censura pelo emprego, que considera excessivo, da ironia. Talvez tenha razão. Não costumo explicá-la. Com nota de rodapé, ela vira capim. Esquerdistas me mandaram para o "paredón" moral por aquele artigo. Direitistas aplaudiram. Corria o ano da graça de 2006, e Lula seria reeleito três meses depois, um ano após o mensalão.

Eu fazia uma citação coberta do Artigo 10, de "O Federalista", de Madison, que trata da necessidade de preservar a "Assembleia" das paixões do que ele chama "facções" —sejam majoritárias ou minoritárias. E daí se pode supor que o que ele entende por "República", que nós chamamos "democracia", é mais do que a vontade da maioria.

O governo era então de esquerda. Hoje, somos governados pela extrema direita, com um estoque de agressões à ordem constitucional e legal que supera, em um ano e nove meses, os 13 e poucos de gestões petistas. E eis-me aqui de novo a negar capim a ruminantes.

Ruy Castro* - Os rolos da família Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Sim, no passado movimentava-se mais dinheiro. É que o baixo clero voa abaixo do radar

Sempre achei que o objeto da advocacia fosse o estudo das leis e de seus adendos, emendas, petições, parágrafos e ab-rogações. Estava enganado. Nenhum advogado hoje irá longe sem um pós-doc na investigação de contratos, saques, depósitos, transferências e transações financeiras em geral, especialmente as ilícitas. Um ramo dessa disciplina é o que tenta entender por que os praticantes de tais operações tanto se casam e descasam entre si e não param de fazer negócios uns com os outros.

Depois do intenso trabalho de desmonte dos trânsitos milionários do PT e de outros partidos com empresas e governos, é a vez de um mergulho em águas igualmente turvas: os rolos da família Bolsonaro. Os Bolsonaros legítimos não passam de meia-dúzia, compreendendo o titular, seus filhos e suas atuais mulheres, mas, em 30 anos de ação nos gabinetes oficiais, arrolaram um histórico de práticas e de associados que está levando a Justiça à loucura.

É uma infernal ciranda de dinheiro originário da compra e venda de imóveis, depósitos fora do expediente, lojas de chocolate e salários de assessores que triplicavam ou se reduziam à metade, protagonizados por funcionários invisíveis que se revezavam passando dois ou três meses em cada cargo e um turbilhão de mulheres, ex-mulheres, filhas, noras, ex-noras e até vendedoras de açaí, todos aparentemente comandados por um homem que só pode ser um gênio da administração: Fabrício Queiroz.

Bruno Boghossian – Palanque do obscurantismo

- Folha de S. Paulo

Governo Bolsonaro usa educação como palanque para sua cruzada obscurantista

Jair Bolsonaro só não fechou o Ministério da Educação até agora porque precisa dele em sua cruzada obscurantista. Por quase dois anos, o governo ignorou o ensino público, tentou sabotar o financiamento do setor e explorou a pasta como palanque para seus retrocessos.

O terceiro chefe da área se esforça para superar Ricardo Vélez e Abraham Weintraub em improdutividade e intolerância. De uma só vez, Milton Ribeiro conseguiu fazer propaganda de visões preconceituosas e fingir que não têm nada a ver com disfunções da educação brasileira.

O doutor sugeriu ao jornal O Estado de S. Paulo que o ministério não tem interesse em melhorar a tecnologia nas escolas. Para ele, a dificuldade do ensino a distância durante a pandemia é problema dos outros.

“A sociedade brasileira é desigual, e não é agora que a gente vai conseguir deixar todos iguais”, afirmou. “Esse não é um problema do MEC, é um problema do Brasil.”

Talvez Ribeiro estivesse mais interessado em conseguir um cargo no governo da Noruega, mas acabou ficando por aqui. Se estivesse insatisfeito, ele poderia procurar países onde ressoam alguns de seus valores, como o Iêmen ou a Mauritânia.

Vinicius Torres Freire - Faca amolada no imposto e nó cego

- Folha de S. Paulo

Depois de semanas de reviravoltas, não há dinheiro para Bolsa Família gordo

A última de Paulo Guedes é aumentar o imposto das empresas que pagam tributos pelo Simples, noticia esta Folha. É o último ou o mais recente plano infalível do ministro para bancar um Bolsa Família encorpado. É bobagem ou é prenúncio de gambiarra fiscal que vai acabar na Justiça ou em coisa pior.

Não importa qual seja o aumento de imposto, seja lá como for feito ou que nome tenha, tal como “reoneração”, a arrecadação extra não pode ser gasta em despesa nova que ultrapasse o teto de gastos.

Mas, francamente, a esta altura da birutice, discutir essas coisas talvez seja perda de tempo ingênua. Ainda assim, a maluquice tem um custo, difícil de perceber no dia a dia.

Para começar, a doideira transforma a discussão da reforma tributária em uma mixórdia. Guedes quer criar uma CPMF ou um pacote de “tributos alternativos” que inclua um imposto sobre transações. Quer agora cobrar mais das empresas do Simples. Em tese, não haveria aumento de carga tributária total porque haveria compensações, como a redução dos impostos sobre folha de pagamento das empresas e, um dinheiro bem menor, das contribuições para o Sistema S.

Mas tudo isso é especulativo, pois não há projeto e menos ainda números na ponta do lápis. Nem para o projeto de criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) o governo apresentou números que justificassem a alíquota que propôs (a CBS substituiria o PIS/Cofins).

Ou seja, o governo põe mais lenha em uma discussão que vai pegar fogo, se houver discussão de fato sobre reforma tributária, se não for tudo para o vinagre, dada a baderna criada pelo governo.

César Felício - Os padrões eleitorais de São Paulo e Rio

- Valor Econômico

Covas tem vantagem e Paes precisa de Crivella

A eleição municipal nas capitais, sobretudo em São Paulo, é um sinalizador para a sucessão presidencial e seus resultados influenciam a equação política para o pleito nacional, ainda que de forma tênue. Sua dinâmica, entretanto, é local. Para traçar prognósticos e poder errar um pouco menos, é importante perceber que o eleitor paulistano e carioca tem um padrão de voto, pouco influenciável pelo cenário nacional, ainda que o afete.

Em São Paulo há um cenário de polarização ideológica estabelecido e consistente. Tanto esquerda quanto direita são fortes. No Rio isso é menos nítido, com a esquerda sempre encapsulada na intelectualidade das áreas mais ricas e em alguns nichos de movimentos sociais nas periferias. Os cariocas não elegem um prefeito esquerdista desde 1992. Pode parecer estranho hoje, mas em 1988, quando eleito, Marcello Alencar, futuro governador tucano, ainda era do PDT e alinhado ao brizolismo. Depois, nunca mais: Cesar Maia e seus pupilos que dele dissentiram, Luiz Paulo Conde e Eduardo Paes, ganharam todas até 2016, quando veio Crivella.

Em São Paulo a direita ganhou as eleições de 1985, com Jânio, 1992 e 1996, com Maluf e Pitta. O colapso do malufismo deslocou paulatinamente seu eleitor para o PSDB ou para o DEM, no episódio Kassab em 2008 e com os tucanos em 2004 e 2016. Uma franja, expressiva na baixa renda em bairros que fazem a transição entre as regiões ricas e a periferia resistiu na maioria das eleições aos tucanos.

Já a esquerda triunfou em 1988, 2000 e 2012 e sempre esteve concentrada geograficamente nos bairros periféricos e politicamente no PT. Este traço está esmaecido e o petismo vive um processo de decadência na cidade, análogo ao que o malufismo sofreu. A eleição de 2020 pode arbitrar quem herda o espólio petista.

Claudia Safatle - Sem saída

- Valor Econômico

 Se Bolsonaro não aceitar os “remédios amargos”, não haverá um novo programa de renda mínima mais amplo

Face às restrições impostas pelo presidente Jair Bolsonaro, o Orçamento da União para 2021, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Pacto Federativo e a criação do programa de renda mínima, o Renda Brasil, entraram em um beco sem saída. Uma situação que alimenta soluções extravagantes como a de estender o decreto de calamidade pública, cuja vigência é até dezembro, por mais um ano.

Essa é uma ideia que está na cabeça de algumas autoridades, fomentada pela segunda onda da pandemia da covid-19 na Europa e pela dificuldade de a doença entrar em uma curva descendente aqui. Mas ela não consta do radar do ministro da Economia, Paulo Guedes.

A equipe técnica da área econômica e lideranças políticas, particularmente o relator do Orçamento e da PEC 188, senador Marcio Bittar (MDB-AC), estão enredados em meio aos vetos de Bolsonaro. O presidente afirmou que não vai “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”, quando foi apresentado à proposta de fusão de vários programas sociais para financiar o Renda Brasil; e que pretende dar “cartão vermelho” a quem sugerir desindexar parte do Orçamento - o que significa não garantir reajustes automáticos às despesas hoje corrigidas por índices de preços ou pela variação do salário mínimo.

A proposta dos economistas oficiais era de desindexar os benefícios previdenciários, deixando-os sem reajustes, congelados, por dois anos.

Uma semana depois da histriônica reação do presidente, não há soluções alternativas muito diferentes das que foram apresentadas. Todas são remédios “amargos” de difícil digestão política, mas necessários dado o quadro de deterioração das contas públicas neste ano, com a pandemia.

Ou Bolsonaro recua do veto imposto aos três D da PEC 188 - desindexação, desvinculação e desobrigação - ou não haverá um novo programa de renda mínima, mais amplo e de maior valor do que o Bolsa Família, para contemplar, também, parte dos “invisíveis” que surgiram na busca pelo auxílio emergencial, salientam técnicos. Dados da Caixa Econômica Federal indicam que 66,2 milhões de brasileiros estão recebendo o auxílio emergencial, que se encerra em dezembro.

José de Souza Martins* - Religião e a “teoria da boiada”

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

As eleições de 2018 deram respaldo a uma concepção de poder fundada em técnicas de transgressão de brechas que existem na ordem política e no pacto implícito na Constituição de 1988

Não passa um único dia sem que atos do governo e do governante exponham indícios significativos das deformações constitutivas do Estado brasileiro. Até religiões têm tido aí uma função.

É esse quadro de referência que dá sentido à decisão do presidente da República de vetar parcialmente o perdão das dívidas tributárias das igrejas, projeto apresentado ao Legislativo por deputado que é filho de conhecido pastor de igreja neopentecostal.

Ao mesmo tempo, numa rede social, mandou Jair Messias aos membros do Congresso o recado de que, se fosse deputado ou senador, votaria pela derrubada do veto. Vetou para não incorrer em crime de responsabilidade e no risco de perda do mandato. Cumpre a lei e a descumpre ao mesmo tempo porque o sistema tem uma brecha como essa, que o permite.

O Estado entende que as igrejas têm lucro. O que sugere, para quem crê, que, se tem lucro, não são igrejas e devem ser tributadas. Se são igrejas, não podem ter lucro, e o tributo não cabe. O presidente não vetou, porém, o descabido perdão das dívidas previdenciárias das igrejas. Dívida para com a previdência social é sagrada, pois o credor não é o governo, é quem trabalhou a vida inteira, contribuiu e dela depende ou vai depender.

Neste país, se o assunto envolve religião, é, supostamente, assunto de Deus. Nesse caso, vale tudo. A verdade é que temos uma questão religiosa, que se atualiza desde que houve o caso do “Cristo no júri”, em 1891.

Fernando Abrucio* - Qual modelo de Estado emerge da reforma? (2)

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A estabilidade serve para garantir a profissionalização do serviço público e não para tornar inimputáveis os ocupantes dos cargos

O Executivo federal apresentou um conjunto de propostas de reforma administrativa, algumas já presentes numa PEC enviada ao Congresso, outras que ficarão para legislação posterior. Em linhas gerais, um diagnóstico sintético desse conjunto de medidas revela uma mistura de várias coisas: ações norteadas pela experiência internacional de reformas, proteções a corporações fortes do funcionalismo, medidas concentradoras de poder nas mãos da Presidência da República e várias lacunas ou confusões de diagnóstico, em particular uma enorme incompreensão em relação ao funcionamento dos serviços públicos num país como o Brasil. Mais do que isso, falta visão sobre o que deve ser o Estado brasileiro.

Há avanços no projeto vinculados, primeiramente, aos benefícios pagos aos funcionários públicos, que se expandiram ao longo do tempo e se tornaram, no mais das vezes, desvinculados do desempenho efetivo da burocracia. O ministro Bresser Pereira já tinha começado a limpar esse terreno, mas ainda há grandes problemas neste quesito. Também deve se atacar o uso completamente equivocado da ideia de isonomia que se alastrou pela gestão de pessoas do setor público. Um exemplo nesta linha foi a multiplicação de carreiras e o crescimento do salário inicial no plano federal.

O Executivo federal pretende mudar esse padrão, embora suas propostas, na forma em que foram apresentadas, ainda precisem ser mais bem lapidadas. A ideia de vínculo de experiência é um exemplo de proposição mal formulada. Óbvio que é preciso modificar o estágio probatório, que no mundo todo serve para formar e avaliar o funcionário público e sua continuidade no Estado, enquanto no Brasil nenhuma dessas duas coisas é feita. Porém, o que foi apresentado não deixa claro nem a formação nem a avaliação que seriam feitas.

A leitura do projeto global de reformas dá a impressão de uma proposta “pela metade”, de um reformismo incompleto. Por exemplo, o Executivo federal evitou tocar nos direitos dos atuais servidores públicos, bem como deixou em aberto os efeitos da reforma para os outros Poderes e para os demais entes federativos. Alguns podem dizer que é uma estratégia política para poder aprovar outras medidas importantes, embora mais do que uma forma de garantir o apoio dos parlamentares, a razão desse cálculo seja principalmente evitar danos eleitorais ao presidente Bolsonaro ou o aumento de seus problemas com a Justiça.

A opção reformista precisa alcançar todos os entes federativos e Poderes, e evitar que a limitação das mudanças aos futuros burocratas não crie dois mundos dentro do funcionalismo, gerando um sentimento de privilégio que poderá atrapalhar o bom desempenho governamental, além de gerar uma visão negativa junto à opinião pública. Aqui, a lição da reforma da Previdência não foi aprendida: nem todos os Estados mudaram suas regras e se os que se omitiram quebrarem, a União terá de salvá-los para manter os serviços públicos aos cidadãos que mais necessitam deles. Efeitos semelhantes poderão acontecer na reforma administrativa se não for criada uma maior simetria entre instituições e entre membros do funcionalismo.

Raul Jungmann* - A morte da política

 

- Capital Político

O surgimento dos neopopulismos nos anos 2000 levou a emergência de uma linha editorial focada nos riscos e enfraquecimento da democracia. Em linhas gerais, todos os autores destacam, dentre as razões do sucesso dos regimes iliberais, o papel das redes sociais e da internet.

Estas, utilizadas para manipular eleitorados com base na utilização dos dados das grandes plataformas da internet – Facebook, Twitter, Google, Instagram -, tendo por ferramentas a Inteligência Artificial e o Big Data, colocam em risco a expressão da vontade popular em pleitos democráticos, a formação da vontade das maiorias e a própria verdade, isto é, os conceitos, valores e princípios partilhados por uma dada sociedade.

Da Empoli, no seu livro “Os Engenheiros do Caos”, radicaliza os riscos, ao concluir que a política mesma, tal qual a conhecemos, está com os dias contados. Segundo ele, não mais os políticos usam as ferramentas da tecnologia e os algoritmos para alcançar suas vitórias.  São os algoritmos que, tendo por base a poderosa máquina das redes sociais, escolhem os políticos que melhor se adequam às possibilidades de obtenção de likes e engajamento – o fim último das plataformas da internet.

A exemplo do movimento Cinco Estrelas, hoje o maior da Itália, que escolheu o comediante Beppe Grillo para ser a face humana a popularizar o partido-algoritmo e vociferar contra o parlamento e as instituições democráticas. O conteúdo, a ideologia, o programa, ser de direita ou de esquerda, libertário ou fascista, racista ou antissemita, verdade ou fake news, nada importa.

O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais

Um governo irrelevante – Opinião | O Estado de S. Paulo

O MEC continuará irrelevante, quando é mais necessário. Nada surpreendente. Tudo à imagem e semelhança do chefe

O ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse, em espantosa entrevista ao Estado, que temas como a volta às aulas em meio à pandemia de covid-19 e a dificuldade de muitos alunos pobres de acompanhar aulas a distância por limitações técnicas não dizem respeito ao MEC.

“A lei é clara. Quem tem jurisdição sobre escolas são o Estado e o município. Não temos esse tipo de interferência. Se eu começo a falar demais, (governadores e prefeitos) dizem que estou querendo interferir; se eu fico calado, dizem que se sentem abandonados”, declarou o ministro.

De fato, a lei é clara: no artigo 211 da Constituição está escrito que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em regime de colaboração seus sistemas de ensino”. Ou seja, a interpretação dada pelo ministro Milton Ribeiro ignorou a obrigatoriedade da colaboração entre os entes da Federação, resguardados os princípios federativos. O MEC não pode simplesmente lavar as mãos como sugeriu o ministro. Deve, ao contrário, como parte do governo federal, coordenar-se com os entes federados para superar tão graves desafios, que prejudicam a educação brasileira há muitos anos. Se isso não é tema para o MEC, é difícil saber qual seria a serventia desse Ministério.

Mas a atitude do ministro Milton Ribeiro não surpreende, num governo cujo próprio presidente da República frequentemente rejeita as responsabilidades inerentes a seu cargo. O presidente Jair Bolsonaro vive a dizer, por exemplo, que nada pode fazer em relação aos esforços para conter a pandemia de covid-19 nos Estados e municípios porque foi impedido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o que é uma grossa mentira – mas muito conveniente.

Dentro da estratégia demagógica bolsonarista, o presidente tratou a pandemia como coisa sem importância, e as medidas de isolamento social adotadas pelos Estados como parte de uma conspiração para prejudicar seu governo. Na verdade, Bolsonaro queria poder total para ordenar o relaxamento das medidas, em nome de alegados imperativos econômicos. Quando o STF lhe negou esse poder, por ser inconstitucional, passou a posar de defensor dos pobres que precisavam trabalhar e, segundo dizia, estavam sendo impedidos por governadores inescrupulosos e por juízes inconsequentes.

Agora é a vez dos estudantes: “Não tínhamos por que fechar as escolas, mas as medidas restritivas não estavam mais nas mãos da Presidência da República. Por decisão judicial, elas competiam exclusivamente aos governadores e prefeitos”, declarou recentemente Bolsonaro.

Em vez de assumir seu papel como chefe do Poder Executivo federal, responsável pela articulação dos entes subnacionais e pela negociação com o Congresso especialmente em tempos de crise, o presidente Bolsonaro preferiu o caminho fácil do populismo e da irresponsabilidade – que lhe parece natural, dado seu histórico na política. Age assim tanto em relação à pandemia como em relação a todo o resto: sem ter qualquer ideia do que é governar e do que pretende para o País, ausenta-se do debate das grandes questões nacionais e espera viver do lucro eleitoreiro de ações demagógicas e, no mais das vezes, desimportantes. 

É com esse espírito que trabalha seu ministro da Educação. Na entrevista, Milton Ribeiro disse que “são o Estado e o município que têm de cuidar disso aí” e “não foi um problema criado por nós”, referindo-se à desigualdade educacional que afeta estudantes sem acesso à internet. Ao mesmo tempo, pareceu muito mais preocupado com a orientação sexual dos alunos, tema que mobiliza a militância bolsonarista nas redes sociais, do que com seu bem-estar e seu aprendizado em meio à pandemia.

Assim, o MEC – que já está em seu terceiro ministro – continuará irrelevante, justamente no momento em que é mais necessário. Nada surpreendente, num governo em que o Ministério da Saúde se ausenta em plena pandemia e em que o Ministério do Meio Ambiente se omite em meio a queimadas e ao avanço do desmatamento, entre outras barbaridades. Tudo à imagem e semelhança de seu chefe.

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Música | Diogo Nogueira - Lama nas ruas

 

Poesia | Pablo Neruda - O teu riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
com os olhos cansados
às vezes por ver
que a terra não muda,
mas ao entrar teu riso
sobe ao céu a procurar-me
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, nos momentos
mais escuros solta
o teu riso e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso
será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

À beira do mar, no outono,
teu riso deve erguer
sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero teu riso como
a flor que esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
tortas da ilha,
ri-te deste grosseiro
rapaz que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando meus passos vão,
quando voltam meus passos,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas nunca o teu riso,
porque então morreria.