sábado, 21 de dezembro de 2019

Opinião do dia: José de Souza Martins* - O PT de hoje é um partido desprotegido e frágil

Desde a sua formação, o capital variável, o do trabalho, encolheu em face do capital constante, o da máquina. O capital mudou de composição à custa da crescente insignificância do trabalho e da pessoa que trabalha. Esta é a sociedade do desemprego, dos que foram descartados pelo sistema produtivo. Para que esta sociedade funcione, é necessário que haja sempre desempregados. São eles que tornam o trabalho barato para o capital. Portanto, a classe operária da formação do PT já não é mais a mesma. Os filhos do proletariado dos tempos de Lula ascenderam para a classe média, mergulharam na sociedade de consumo, já não aspiram apenas ao salário, tornaram-se adeptos do capitalismo, conservadores e até reacionários. As eleições no ABC mostram isso cada vez mais.

Um outro setor decisivo na formação do PT foi o setor católico, das comunidades de base e da aguerrida base dos trabalhadores rurais sem-terra, informalmente ligados à Igreja. No entanto, esse grupo está muito modificado. O episcopado já não tem pelo PT o mesmo apreço de antes. Em 2003, Lula foi entusiasticamente acolhido na assembleia da Conferência Episcopal. Não há nenhum indício de que os bispos se dispusessem, hoje, a repetir o ato. Ao longo dos últimos anos, não só Lula descartou os militantes católicos do PT que faziam a ligação entre bases sociais do governo e a CNBB, como os bispos reduziram significativamente sua proximidade com o partido.

Antes mesmo que o PT surgisse, uma parcela dos agentes de pastoral formou o MST, libertando-se da tutela dos bispos. Foram ativíssimos no enfraquecimento do governo FHC, com as ocupações de terras reguladas pelo calendário eleitoral. Mas foram enfraquecidos pelo surgimento de mais de setenta organizações similares e dissidentes. Foram decisivos na eleição de Lula. Mas quando Lula assumiu a Presidência, tratou, em pouco tempo, de esvaziar o protagonismo dessa organização, xiiita, como ele a denominava, sobretudo com a criação da versão petista do Bolsa Família, que acabou instituindo uma tutela sobre 42 milhões de pessoas, capaz de esvaziar um campo decisivo no recrutamento de militantes do movimento.

O futuro do PT não poderá depender da reconstituição de suas bases de origem, que foram as bases do PT radical e demolidor. Elas foram minadas pelos próprios governos petistas, mais por Dilma do que por Lula. O PT se aliou a inimigos históricos dessas bases. Vai ser difícil justificar essas alianças e ganhar novamente a confiança dos que foram deixados para trás. No entanto, Lula tem um carisma próprio e resistente que poderá dar ao partido novas oportunidades, especialmente num cenário em que os outros partidos estão enfraquecidos e desgastados. Talvez uma nova geração de dirigentes possa valer-se de Lula para reconstituir o partido, promovendo internamente uma rotação de elites.

No entanto, a principal arma que o PT começou a brandir, no dia da condução coercitiva de Lula à Polícia Federal, foi a da ameaça ‘posso incendiar o país’. Pode. Várias demonstrações tópicas da ação de multidões têm se espalhados pelo Brasil, raramente com clareza suficiente para agregar simpatizante e aderentes. O PT poderá eleger não só o governo Temer como alvo desse ímpeto incendiário. Mas os partidos que historicamente foram escolhidos por sua obsessão antagônica desde a disputa entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, em 1998, já não estão desabrigados. Estão munidos e documentados de todos os problemas que o PT deixa, justamente, nos campos mais nobres de suas promessas não cumpridas ou mal comprimidas.

O PT de hoje é um partido desprotegido e frágil, ainda que possa mobilizar multidões para vingar a derrota da eficácia de seu milenarismo, cujo governo está em julgamento. A consigna de considerar que a guerra ainda é a dos éticos do PT contra os maus das oposições não resistirá à metamorfose dialética que converte os opostos no seu contrário".

*Cf. “Uma nova chave do poder”. In As esquerdas e a democracia, coletânea organizada por José A. Segatto, M. Lahuerta e Raimundo Santos. Brasília: Verbena Editora/FAP, dez. de 2018.

Merval Pereira - Sem compostura

- O Globo

Presidente está acuado, pela queda da popularidade, pelas limitações que instituições democráticas lhe impõem

O presidente Jair Bolsonaro vem numa escalada de falta de compostura que beira a insanidade. O episódio de ontem, em que destratou jornalistas, demonstrando falta de educação e preconceitos, é próprio de quem se sente acuado, e de fato o presi- dente está acuado, pela queda de sua popularidade, pelas limitações que as instituições democráticas lhe impõem, pelas denúncias contra seu filho Flávio, que envolvem toda uma família ampliada que, pelas acusações do Ministério Público do Rio, vivia às custas do Erário público.

Bolsonaro anda também cercado de fantasmas, desde as alucinações de que querem vê-lo morto para tomarem-lhe a presidência, até o impeachment político. O delírio persecutório que revela assiduamente pode fazer parte de uma personalidade paranoica, agravado pelo atentado contra sua vida, bastante real.

Mas o impeachment já está colocado e, como é um instrumento sobretudo político, será acionado, ou não, quando as forças políticas no Congresso desejarem. Motivos Bolsonaro já deu de sobra, e a falta de decoro de ontem é apenas mais uma, e não será a última.

A investigação contra o senador Flávio Bolsonaro certamente está abalando a já desequilibrada personalidade do presidente, embora a punição dificilmente acontecerá em razão direta das denúncias do Ministério Público. Mas podem atingir o presi- dente no correr das investigações.

O próprio Bolsonaro, demonstrando o quanto o assunto o incomoda, já disse que surgirão diálogos que sugerirão que ele tem ligações com milicianos do Rio de Janeiro. O ex-ministro Bebianno, acusado indiretamente por Bolsonaro de desejar ser seu vice para substituí-lo em caso de morte, disse claramente que as ligações de Bolsonaro com milicianos serão demonstradas nas investigações.

Ascânio Seleme - Cartas ao Papai Noel

- O Globo

Algumas pessoas muito conhecidas do anedotário, ops, quero dizer da política nacional, enviaram cartas com seus pedidos de Natal ao Papai Noel. O bom velhinho, antiga fonte da coluna, liberou algumas delas para publicação.

Bolsonaro - Papai Noel, juro que tentei me comportar durante o meu primeiro ano de mandato. Tentei ser bonzinho, mas na verdade teve dias em que perdi a paciência. Dei uns gritos, falei umas bobagens, ofendi algumas pessoas, tá OK?. Mas a culpa não é só minha, não. Muitas vezes me tiraram do sério. Sobretudo os jornalistas. Esses caras têm a mania de me perseguir para onde eu vou e de escrever sobre todas as coisas que eu faço. Ficam na minha cola dia e noite, poxa. Só porque eu sou o presidente, caramba? Papai Noel, peço que eles me deixem em paz!!!

Paulo Guedes - O senhor é testemunha do enorme bem que fiz aos meus concidadãos. A vida deles vai melhorar. Daqui a um ano vai termais dois milhões de empregos. Daqui a dois anos serão mais dez milhões de empregos. Até o final do governo vai faltar gente para tanto emprego. E o que eles me dão em troca? Nada. Teve até uma turma que me zoou no calçadão de Ipanema outro dia. Uma hora dessas eu largo tudo e aí eles vão vero que é bom para a tosse. Apesar desses momentos de estresse, me comportei bem. Por isso, caro Papai Noel, peço que o senhor me dê uma mãozinha nas reformas que faltam, já que o chefe não colabora.

Míriam Leitão - Os fios soltos da reforma não feita

- O Globo

Ano chega ao fim com melhor expectativa de crescimento, mas sem que o governo tenha apresentado seu projeto de reforma tributária

A reforma tributária está cheia de fio solto, na opinião da economista Zeina Latif. Como apresentar um projeto é muito complexo técnica e politicamente, o governo vai soltando ideias esparsas, como a de que “vamos fazer a CPMF ou algo que o valha”. O economista Bráulio Borges concorda que o novo imposto falado pelo ministro Paulo Guedes é uma CPMF que não quer dizer seu nome. Ele acha que é preciso “trazer todos os elementos da reforma ao mesmo tempo”.

Entrevistei Zeina, da XP, e Braulio, da LCA e da FGV, para um balanço de fim deste 2019. Ela acha que este foi um ano curioso pelas mudanças de humor, ao longo dos meses:

— Começou, de uma forma geral, com uma expectativa muito grande em relação ao crescimento do PIB, consenso de mercado era de 2,5% de alta, muitas casas falavam em 3% e 3,5%, e que haveria uma agenda ambiciosa de reformas e muitas privatizações. Ainda no primeiro semestre as expectativas foram se adequando à dura realidade. Isso gerou um certo pessimismo, mas no segundo semestre a gente viu a economia ganhando tração.

De balanço bom do ano, segundo Zeina Latif, tem as surpresas positivas com a inflação, o efeito no mercado de crédito do longo ciclo de redução dos juros iniciado por Ilan Goldfajn:

— O que a gente percebeu foi que aos poucos esse ciclo foi avançando, as empresas foram melhorando seus indicadores e o crédito está fluindo. Está havendo uma recuperação da demanda e do consumo das famílias, e o investimento está voltando aos poucos.

Bráulio destaca que a sensação de bem-estar da sociedade é muito fraca ainda. Ele chama de “pífia” a recuperação:

Ricardo Noblat - Bolsonaro detona Bebbiano com medo de que ele conte o que sabe

- Blog do Noblat | Veja

Teoria da conspiração
Sem apresentar prova, sem citar diretamente o nome dele, mas dando todas as indicações que a ele se referia, Jair Bolsonaro disse em entrevista à VEJA que Gustavo Bebbiano, seu ex-ministro da Secretaria-Geral da presidência da República, é suspeito de ter participado do atentado à faca que por pouco não o matou.

“O meu sentimento é que esse atentado teve a mão de 70% da esquerda, 20% de quem estava do meu lado e 10% de outros interesses”, afirmou Bolsonaro refastelado numa poltrona do Palácio da Alvorada, de bermuda, chinelos, e com a camisa de um desconhecido time de futebol de Minas Gerais.

“Tinha uma pessoa do meu lado que queria ser vice”, prosseguiu. “O cara detonava todas as pessoas com quem eu conversava. Liguei para convidar o Mourão às 5 da manhã do dia em que terminava o prazo de inscrição da chapa. Se ele não tivesse atendido, o vice seria essa pessoa. Eu passei a valer alguns milhões deitado.”

Antes de falar com Mourão, Bolsonaro falara várias vezes com Bebbiano na noite do dia anterior. E quando Bebbiano soube que o vice seria Mourão, tentou convencer Bolsonaro a procurar outro vice. Uma chapa pura de militares não seria uma boa. Foi o próprio Bebbiano que o disse em mais de uma entrevista.

Monica de Bolle* - Freiheit!

- Revista Época

Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça

No dia 25 de dezembro de 1989, há quase 30 anos, Berlim recebeu Schiller, Beethoven e Leonard Bernstein. O “Concerto pela Liberdade” marcou não apenas a queda do Muro de Berlim, mas a inauguração de uma nova era. Para a Alemanha, tinha início a união, com a demolição do muro que dividira o país após a Segunda Guerra Mundial. Para o mundo, a sinfonia sublime de Beethoven seria o hino da União Europeia. O novo tempo tinha início, assim, com Beethoven, o compositor que soube como ninguém revelar a beleza que a humanidade é capaz de produzir, e a contribuição do magnífico Bernstein ao introduzir no poema de Schiller uma singela e brilhante mudança: a substituição da palavra “alegria” pela palavra “liberdade”. Já neste fim de década, “liberdade” é palavra perigosa, tempos de intolerância, de conservadorismo extremado, de nacionalismo escancarado, de injustiça.

Em 1989 Bernstein ofereceu a liberdade ao mundo no poema de Schiller, unindo todos os povos com a celebração de sua inescapável humanidade. Quem não quer liberdade? Liberdade para criar, para se expressar, mas, sobretudo, para garantir a justiça. Não há liberdade onde uma parte da população é oprimida ou impedida de ter as mesmas oportunidades, os mesmos direitos e o mesmo respeito que têm os demais. Não há liberdade onde há injustiça.

Sociedades muito desiguais não são justas, portanto, não são livres. O Brasil é profundamente desigual e inequivocamente iliberal — e isso só é novidade para quem nunca pôs o país diante do espelho, olhou e fez as perguntas difíceis. Como defender um fiscalismo qualquer em nome do “liberalismo” sem tratar das consequências que essas medidas podem ter no aprofundamento da desigualdade? Como ter a ousadia de falar em “volta da confiança com as reformas para retomar o crescimento” quando há dezenas de milhões de desempregados e subempregados no país? Sem contar, é claro, que só fizemos uma reforma nestes quase 12 meses de governo.

Guilherme Amado - O ano de Rodrigo Maia

- Revista Época

“O Brasil havia eleito um presidente que abdicara de ao menos tentar ter relação com o Congresso. Foi aí que nasceu o Maia parlamentarista”

Boa parte das investidas com tintas autoritárias de Jair Bolsonaro em seu primeiro ano foi esvaziada pelo sistema de freios e contrapesos que o Brasil construiu em seus 34 anos de democracia. Ora com mais, ora com menos sucesso, o Judiciário, a imprensa, a sociedade civil, o Ministério Público e até o Tribunal de Contas atuaram como saudáveis amortecedores para quem, em muitos momentos, atuou “no limite” — palavras do próprio Bolsonaro ao publicar a primeira leva de decretos pró-armas. Mas este foi um ano em que o Congresso, sobretudo, teve papel medular para amenizar o desmonte institucional que Bolsonaro tentou levar a cabo. Embora o presidente do Senado seja constitucionalmente o chefe do Legislativo, na prática esse papel foi desempenhado por Rodrigo Maia. O presidente da Câmara voou em 2019. 

Foi quase sempre o primeiro a se pronunciar — quando não o único — diante de despautérios da base bolsonarista, como os flertes golpistas de um filho e um par de ministros. Conduziu a aprovação da necessária reforma da Previdência. Articulou a derrubada de atropelos legais de Bolsonaro e teve de fazer até a vez de chanceler. Com a roupa de primeiro-ministro, porém, também vieram as responsabilidades. E não houve só acertos no ano Maia.

Desde janeiro, foi ganhando forma o que seria o governo do capitão, com sua notável inabilidade para a articulação com o parlamento, o que gerou um vácuo sem precedentes na história recente da República.

Ele tomou para si a articulação das reformas e boa parte da agenda econômica de Paulo Guedes, lidando com o temperamento difícil do ministro da Economia e muitas vezes se dirigindo diretamente a outros integrantes da equipe econômica. Garantiu a aprovação do pacote anticrime, ainda que no fim do ano, e buscou preencher buracos deixados pelo Executivo, como a falta de uma agenda de políticas públicas num país assolado também por uma crise social.

Enquanto Jair Bolsonaro dispara contra outros países e mira até a ONU, Maia tem tentado limpar a barra. Em tom oposto ao beligerante capitão, visitou da Suíça ao Azerbaijão, passando por Estados Unidos, Líbano e Inglaterra, entre outros. Uma ação desastrosa do presidente levava a uma reação diplomática de Maia. Bolsonaro criticou o presidente argentino e ameaçou ignorar sua posse? Maia foi até Fernández para sentar e conversar. Bolsonaro fez pouco caso das queimadas na Amazônia e acusou os países europeus de interesses escusos? Maia foi à Europa para remendar o estrago. Bolsonaro atacou a ONU? Maia voou à Suíça para tratar com os organismos da entidade, inclusive de direitos humanos.

Demétrio Magnoli* - A esquerda que elege a direita

- Folha de S. Paulo

Não por acaso, Trump acalenta o mesmo sonho dos ativistas americanos de esquerda

Boris Johnson obteve maioria absoluta no Parlamento britânico, mas a votação dos conservadores aumentou em apenas 1,2 ponto percentual. Na raiz do triunfo, encontra-se o colapso da oposição trabalhista, que perdeu 7,8 pontos percentuais. A abstenção saltou de 22%, em 2017, para 33%, agora. Os eleitores descontentes ficaram em casa, para não votar em Jeremy Corbyn. A esquerda elegeu a direita.

Há pouco, participei de uma conferência internacional no Marrocos. Num dos painéis, dedicado à crise das democracias, uma jovem expositora, líder de uma ONG indiana, foi indagada sobre as iniciativas do governo de Narendra Modi. Ela circundou a pergunta, optando por um discurso ensaiado. Mencionou estatísticas acerca das carências da população jovem do mundo e, quase aos gritos, proferiu sucessivas exigências iniciadas sempre pela frase “Nós temos o direito” —a isso, aquilo e aquilo outro.

O “nós” da expositora significava “nós, jovens do mundo todo”. Ninguém a elegeu como representante, mas ela pratica o discurso identitário, esporte da moda. A reivindicação de direitos pertence à tradição democrática moderna, responsável pela progressiva ampliação dos direitos políticos e sociais.

Hélio Schwartsman - Irmãos na desgraça

- Folha de S. Paulo

Há comunalidades a ligar os extremos do espectro político

É verdade que vivemos tempos de polarização, mas a natureza humana ainda irmana direitistas, esquerdistas e centristas. Sempre que são apanhados num escândalo, reagem da mesma forma, minimizando as acusações que pesam contra si, mesmo que para isso seja preciso sacrificar os fatos.

O Ministério Público do Rio de Janeiro apresentou um caso forte contra Flávio Bolsonaro, que lança dúvidas sobre várias pessoas de seu entorno, incluindo o próprio presidente. Jair Bolsonaro, que se faz chamar de "mito" e vendia a ideia de que acabaria com todos os vícios da política nacional, apressou-se em qualificar as suspeitas como "pequenos problemas" e disse que nada tem a ver com eles.

Não é uma trajetória muito diferente da do PT, que se intitulava "um partido diferente", insinuando, nas entrelinhas, que era incorruptível, mas, quando flagrado no mensalão, passou a defender-se dizendo que não havia feito nada que outras agremiações também não fizessem.

Julianna Sofia - Nova CPMF reloaded

- Folha de S. Paulo

Obsessão de Guedes por desoneração da folha ressuscita imposto sobre transações

O governo Jair Bolsonaro testa uma nova estratégia para fazer avançar a reforma tributária e abriu mão de enviar uma proposta de emenda constitucional ao Congresso. O ministro Paulo Guedes (Economia) afirma que não quer tumultuar o ambiente encaminhando um texto, pois já tramitam no Legislativo duas outras PECs. O Executivo vai se limitar a remeter contribuições sobre o assunto.

O ministro, porém, tem aptidão para o tumulto. Foi na mesma fala apaziguadora que Guedes enxertou uma nova CPMF reloaded. Depois de defenestrar o secretário Marcos Cintra (Receita Federal) por causa da tentativa mal ajambrada de criar uma variante turbinada do extinto imposto sobre movimentações financeiras, o Posto Ipiranga agora tenta emplacar a versão da versão. Doura a pílula restringindo a cobrança às transações em meios digitais.

Roberto Simon* - A América Latina em 2020

- Folha de S. Paulo

Quatro perguntas sobre os (des)caminhos da região no próximo ano

Em janeiro de 2019, a América Latina parecia outro planeta.

Mauricio Macri prometia zerar o déficit primário e retomar o crescimento argentino, com donos do dinheiro a apostar na sua reeleição. Veio Alberto Fernández.

Juan Guaidó virou “presidente interino” da Venezuela e proclamou que “o tempo de Maduro (estava) se esgotando”. Hoje, nem a oposição venezuelana acredita que a queda do ditador é iminente.

O FMI projetava um crescimento de 2,5% do Brasil, e Paulo Guedes falava em “3,5% no curto prazo”. Com reforma da Previdência e tudo, deu menos da metade da projeção do fundo.

A lista continua: Equador em convulsão, Evo Morales em fuga, Chile nas ruas rumo a uma nova Constituição, protestos na Colômbia. As bolas de cristal dos analistas —as quais, diga-se, nunca funcionaram muito bem— trincaram de vez.

Melhor, então, olhar adiante de outra forma. Em vez de projeções ambiciosas (e provavelmente erradas), podemos pensar em quatro perguntas para guiar interessados na nossa região.

1) Como a “segunda década perdida” continuará a se traduzir em instabilidade política?

À raiz da turbulência regional, está o fracasso econômico. Segundo a Cepal, o período 2014-2020 será o de menor crescimento da América Latina em 70 anos. O PIB per capita latino-americano caiu 4% em seis anos. Do México à Patagônia, a ideia de que inevitavelmente nos tornaríamos sociedades de classe média perdeu força.

Hoje, prevalece a percepção oposta —um nada-realmente-mudou-e-nunca-mudará—, com consequências políticas extremas: ondas de protesto, colapso do establishment político, ascensão de outsiders.

Esse ciclo não terminou e continuará a definir a evolução política na região em 2020.

José Márcio Camargo* - Fábrica de desempregados

- O Estado de S.Paulo

Juíza mostrou ignorância sobre o papel que empresas de aplicativo desempenham no mercado de trabalho

As informações sobre a qualidade do posto de trabalho e a do trabalhador são, a priori, privativas do empregador e do trabalhador, respectivamente. O empregador conhece melhor do que qualquer outro agente a qualidade do posto de trabalho que está oferecendo, enquanto o trabalhador conhece sua produtividade como ninguém. É o que os economistas chamam de assimetria de informações.

A existência de assimetria de informações, ao dificultar o “casamento” entre a oferta e a demanda por trabalho, tem um efeito perverso sobre o funcionamento do mercado: gera desemprego. Como o trabalhador conhece sua própria produtividade melhor que o empregador, seu incentivo é convencer este último de que tem uma produtividade maior do que efetivamente tem. Como o empregador sabe que o trabalhador vai se comportar dessa forma, tenderá a “descontar” essa afirmação, subvalorizando a produtividade do trabalhador. O resultado é que o empregador vai oferecer um salário menor do que o trabalhador acredita que merece e o trabalhador irá demandar um salário maior do que o empregador acredita que ele vale. Algo similar ocorre em relação ao posto de trabalho. No limite, o resultado é desemprego.

Sérgio Augusto – Envergonhismo

- O Estado de S.Paulo

Em trevas passadas, Otto Lara Resende ameaçou ‘trancar sua matrícula de brasileiro’

Se já é difícil escolher um, apenas um, assunto entre os de maior relevância ou preferência pessoal em 2019, imagine ampliar o período até o início da década, a segunda do novo século, a segunda do milênio. Decênio que, aliás, não teve início em 2010, mas dois anos antes.

Se o século passado não começou, concretamente, em 1900 ou em 1901 e sim em 1914, a década que ora finda começou com a crise financeira de 2008 e seu séquito de catástrofes econômicas, sociais e políticas. A desmistificação do capitalismo predatório, dominado pelas finanças, foi, sem dúvida, um dos destaques dos Anos 10, assim como o recrudescimento do fascismo, do fundamentalismo religioso (com Maomé e Jesus), do populismo nacionalista e pestilências correlatas ou decorrentes, como as eleições de Trump e Bolsonaro e a malaise global (de Hong Kong a Santiago do Chile).

A questão ambiental fechou a década como a mais urgente e candente de quantas, a seu modo, contribuíram para desmistificar a crença de que fomos criados à imagem e semelhança de Deus todo poderoso, criador – não destruidor – do Céu e da Terra. Não há teodiceia que me explique e justifique a devastação da Amazônia, a lenta destruição do planeta, nem a escolha de Ricardo Salles para ministro do Meio Ambiente.

É muito infortúnio acumulado para nos punir até de pecados de que me sinto totalmente isento, assim como os leitores que não votaram no dendrófobo Bolsonaro nem facilitaram sua eleição.

Claro que, como sempre, inclusive em 1350, tido como o ano mais terrível de todos os tempos, coisas legais aconteceram. A expansão da Netflix, das lutas igualitárias e das mídias sociais, por exemplo. Mas antes que vocês tenham de recorrer ao Google para saber o que de tão terrível ocorreu em 1350, informo: naquele ano a peste negra fez suas primeiras vítimas na Europa.

Marcus Pestana - Candidaturas avulsas: solução ou equívoco?

Não é novidade que, no Brasil e no mundo, a democracia representativa, os sistemas políticos e suas ferramentas, os partidos políticos, vivem uma crise de representação. É crescente a incapacidade dos partidos políticos de vocalizarem os múltiplos e diversos interesses presentes na sociedade contemporânea, fragmentada e cada vez mais complexa. Como resultado, tivemos a emergência de movimentos e lideranças populistas que apontam para a implosão das instituições clássicas das democracias liberais.

Há abundante literatura a respeito. Cito apenas três sugestões de leitura: “Ruptura: a crise da democracia liberal” (Manoel Castels), “O ódio à democracia” (Jacques Rancière) e “Como as democracias morrem” (Steven Levitsky e Daniel Ziblatt).

Apesar de toda a reconhecida crise, não inventamos outra forma de exercitar a democracia a não ser através de partidos, eleições, formação de maiorias e minorias, construção de consensos progressivos a partir da pluralidade e do debate das divergências. Redes sociais e a ação difusa e inorgânica das ruas tem um inegável impacto nas transformações de nosso tempo. Mas não são capazes de organizar projetos de poder e alternativas de governo.

Câmara do Chile muda de posição e aprova cotas na Constituinte

Mobilização de deputadas reverte derrota e leva à aprovação de paridade de gênero e assentos para índios em convenção

- O Globo

SANTIAGO - Após serem reprovados na Câmara dos Deputados e no Senado do Chile, os projetos de reforma constitucional que estabelecem paridade de gênero, cotas para povos indígenas e que facilitam a participação de candidatos independentes no processo de formulação de uma nova Constituição foram aprovados em nova votação na Câmara na noite de quinta-feira, no rastro de uma acalorada sessão de mais de quatro horas.

Uma das principais reivindicações das ruas, as leis tinham sido rejeitadas pela Câmara na quarta-feira, após não alcançarem o alto quórum de três quintos necessário. Também anteontem, foi a vez da rejeição do Senado. Uma alta mobilização de deputadas de diversas siglas reverteu o resultado na Câmara e aprovou, por mecanismo de reforma constitucional, as três demandas, que agora seguem para o Senado.

Os votos favoráveis aos mecanismos de deputados de partidos de centro-direita deflagraram uma crise na coalizão do governo, provocada pela linha-dura direitista.

CRISE NO GOVERNISMO
A primeira proposta, sobre paridade de gênero e participação de independentes na Constituinte, foi aprovada por 144 votos a favor e só um contra, do deputado Leonidas Romero, da Renovação Nacional, partido do presidente Sebastián Piñera.

Também foi aprovado outro projeto que estabelece que as listas eleitorais devem ser “encabeçadas por uma candidata e ser sucessivamente ordenadas alternadamente com as indicações de homens”, além de um mecanismo de correção pós-eleitoral, que fará com que, nos distritos que elegerem um número par de candidatos, o número de homens e mulheres seja idêntico. Onde o número de candidatos for ímpar, a diferença entre os gêneros não poderá ser maior do que um.

O que a mídia pensa – Editoriais

Falta de decoro – Editorial | O Estado de S. Paulo

O presidente Jair Bolsonaro faltou com o decoro necessário para o exercício do cargo ao reagir raivosamente ao noticiário sobre as suspeitas envolvendo seu filho Flávio.

Na saída do Palácio da Alvorada, Bolsonaro, sob aplausos dos simpatizantes que ali estavam, ofendeu jornalistas que o questionaram, acusou sem provas o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, de manipular o caso para prejudicá-lo e insinuou que o juiz do processo tem interesse em fazer as vontades do governador, já que uma filha do magistrado é funcionária do Estado.

A reação truculenta do presidente surpreendeu mesmo aqueles que acompanharam sua trajetória política até aqui e testemunharam seu destempero em diversas ocasiões.

É fato que Bolsonaro transformou sua retórica inflamada e muitas vezes ofensiva em uma marca pessoal, vista por seus apoiadores como sinal de sua “autenticidade” como político, destacando-se dos demais por ter a coragem de dizer em voz alta, em público, o que os demais não sussurram nem quando estão sozinhos. Foi dessa maneira que Bolsonaro construiu a imagem de um outsider político, a despeito do fato de estar na política há três décadas.

Música | Inti Illimani - El pueblo unido (Clhile, 13/12/2019)

Poesia | Ferreira Gullar - Evocação de silêncios

O silêncio habitava
o corredor de entrada
de uma meia morada
na rua das Hortas

o silêncio era frio
no chão de ladrilhos
e branco de cal
nas paredes altas

enquanto lá fora
o sol escaldava

Para além da porta
na sala nos quartos
o silêncio cheirava
àquela família

e na cristaleira
(onde a luz
se excedia)
cintilava extremo:

quase se partia

Mas era macio
nas folhas caladas
do quintal
vazio

e
negro
no poço
negro

que tudo sugava:
vozes luzes
tatalar de asa

o que
circulava
no quintal da casa

O mesmo silêncio
voava em zoada
nas copas
nas palmas
por sobre telhados
até uma caldeira
que enferrujava
na areia da praia
do Jenipapeiro

e ali se deitava:
uma nesga dágua

um susto no chão

fragmento talvez
de água primeira

água brasileira

Era também açúcar
o silêncio
dentro do depósito
(na quitanda
de tarde)

o cheiro
queimando sob a tampa
no escuro

energia solar
que vendíamos
aos quilos

Que rumor era
esse ? barulho
que de tão oculto
só o olfato
o escuta ?

que silêncio
era esse
tão gritado
de vozes
(todas elas)
queimadas
em fogo alto ?

(na usina)

alarido
das tardes
das manhãs

agora em tumulto
dentro do açúcar

um estampido
(um clarão)
se se abre a tampa.