sexta-feira, 30 de outubro de 2020

José de Souza Martins* – Os inomináveis

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana  

Quem adota na eleição nome de palhaço ou debochado e se comporta como tal no poder é inimigo do povo porque deprecia as altas funções sociais e políticas das instituições que o representam

Desde que uma lei federal de 1997 admitiu a possibilidade de que os candidatos alterem o próprio nome civil para adotar na urna um nome que diga ao eleitor quem são, o lado oculto de muitos políticos veio à luz. Por esse meio, fragilidades da composição do sistema político brasileiro também ficaram visíveis.

O voto é instrumento de representação política. Por meio dele, o eleitor e cidadão se faz presente na tomada de decisões sobre a ordem política. Representação quer dizer presença do ausente. Mas não quer dizer ausência do representado. Mesmo que meu candidato não seja eleito, eu estarei representado pelos eleitos. Como corpo político, são o corpo simbólico da nação, do qual faço parte.

No voto, há um pacto entre o povo e o poder. Por meio dele, delego à maioria formada na eleição minha vontade política de cidadão, e não estritamente ao candidato em que votei. Goste ou não dos eleitos.

Há uma certa resignação cívica do eleitor vencido, o que não significa abrir mão de sua militância cidadã contra as ideias e a conduta do vencedor, sobretudo se não tratar com respeito as ideias dos vencidos. É isso a civilização na política.

Fernando Gabeira* - Novas batalhas de Itararé

- O Estado de S.Paulo

No Brasil, como nos EUA, pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas

O mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.

Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.

Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.

O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.

Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.

No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.

Eliane Cantanhêde* - Zorra total

- O Estado de S.Paulo

Sem comando e sem rumo, Brasília virou lamentável circo de ‘Marias Fofocas’ e ‘Nhonhos’

O mundo está em polvorosa, os mercados estressados, os investidores arredios, as pessoas perdidas, mas Brasília vive em outro planeta, andando em círculos, movida por intrigas e tititi. Sem comando, cada um fala e age como bem entende, todos batem cabeça e tudo parou. Num presidencialismo forte como o brasileiro, significa balbúrdia e paralisia não só no Executivo, mas também no Legislativo.

Sem rumo e apoio, o ministro Paulo Guedes perdeu as estribeiras e, de uma tacada, atingiu a Febraban, o governo de São Paulo, o Congresso e o ministro do Desenvolvimento. Clara demonstração de desespero, com Bolsas e dólar sacolejando e nenhuma resposta do governo (além da intervenção do BC no câmbio, o bê-á-bá). E o desespero só aumenta, depois de o presidente Jair Bolsonaro, em campanha em Marte, ops!, em Imperatriz (MA), prestar solidariedade ao... ministro do Desenvolvimento.

Nesse enredo e na falta de eleições municipais em Brasília, Ricardo Salles é forte candidato a novo Weintraub, distribuindo bordoadas a torto e a direito, com aval de Bolsonaro. O ministro convive com a maior queimada do Pantanal na história, um pedido de afastamento do cargo na Justiça e uma derrota no STF: a ministra Rosa Weber suspendeu ontem a “boiada” do Conselho do Meio Ambiente contra restingas e manguezais. Mas ele tem costas quentes.

Já chamou o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e, com a confusão criada, pediu modestas desculpas “pelo exagero”. Ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que o acusou de “querer destruir o governo”, destinou um irônico “Nhonho” do Chaves. Depois, alegou que tinham invadido seu Twitter e, por fim, apagou a conta na rede.

Merval Pereira - A esquerda desunida

- O Globo

A propalada reunião entre o ex-presidente Lula e o líder do PDT Ciro Gomes, depois de trocas de acusações que se intensificaram a partir de 2018, quando Ciro disputou a eleição presidencial e não foi para o segundo turno, superado pelo candidato petista Fernando Haddad, poderia ser uma boa notícia para a esquerda brasileira caso não tivesse sido atropelada por ninguém menos que a presidente do PT, Gleisi Hoffman. Que não tem luz própria, e não faria isso sem o consentimento de Lula.

Gleisi disse que qualquer acordo depende de um pedido público de desculpas de Ciro a Lula, e ao partido que dirige. O que parecia um encaminhamento de acerto com vistas a uma candidatura de esquerda que pudesse fazer frente ao presidente Bolsonaro, acabou sendo mais do mesmo, com o PT querendo se impor como protagonista da esquerda, o que impediu uma união em 2018.

Naquela ocasião, o ex-presidente Lula insistiu na sua candidatura, mesmo estando impedido pela Lei da Ficha Limpa por ter sido condenado em segunda instância, e se recusou a fazer um acordo com Ciro, que era o candidato da esquerda mais bem posicionado. A suposta traição política do ex-presidente Lula a Ciro Gomes na campanha presidencial de 2018, que o pedetista sempre denunciou, transformou-se recentemente em uma disputa de narrativas que não chegou a lugar nenhum. 

Ciro Gomes jantou com Haddad, a convite deste, na casa de Gabriel Chalita, que havia sido secretário de educação na gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo. Nesse encontro, como já relatado aqui anteriormente, Ciro conta que partiu de Haddad a proposta para que fizessem uma chapa comum. Esclarecendo que não estava falando em nome do Lula, mas de modo próprio, Haddad perguntou a Ciro o que achava de uma chapa em que o PT indicasse o vice.

Bernardo Mello Franco - Os generais devem uma autocrítica

- O Globo

O general Rêgo Barros era um alegre propagandista do presidente Jair Bolsonaro. Agora se juntou à tropa dos desiludidos com o capitão.

Em artigo no “Correio Braziliense”, ele criticou um certo líder seduzido por “comentários babosos” e “demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. “Sua audição seletiva acolhe apenas as palmas. A soberba lhe cai como veste”, escreveu. O general não precisou citar nomes. Seu alvo era Bolsonaro, de quem foi porta-voz.

Rêgo Barros fracassou na tentativa de estabelecer alguma civilidade no trato do governo com a imprensa. Foi sabotado pelo próprio chefe, que o desautorizava diariamente na portaria do Alvorada. Demitido em agosto, ele reforçou o clube dos militares amargurados. O patrono da turma é o ex-ministro Santos Cruz, derrubado pela artilharia dos filhos do presidente.

Varrido do Exército por indisciplina, Bolsonaro parece ter prazer em humilhar oficiais superiores. Na semana passada, ele expôs o general Eduardo Pazuello a uma desmoralização pública. Depois permitiu que um ministro civil chamasse o general Luiz Eduardo Ramos de “Maria Fofoca” e “Banana de Pijama”.

Ricardo Noblat - Bolsonaro usa guaraná cor-de-rosa para ofender gays e maranhenses

- Blog do Noblat | Veja

Homofobia na veia

Guaraná Jesus está para os maranhenses assim como pizza está para os paulistas, Biscoito Globo para os cariocas quando dá praia, bolo de rolo para os pernambucanos, acarajé para os baianos todo santo dia e churrasco para os gaúchos nos fins de semana.

Mas como Bolsonaro tem por hábito atacar seus desafetos, valeu-se do guaraná nas poucas horas que passou, ontem, em território “inimigo” para ofender ao mesmo tempo os maranhenses, os homossexuais e o governador Flávio Dino (PC do B).

Foi sua primeira visita oficial ao Maranhão e ele fez questão de torná-la inesquecível. Desembarcou em São Luís sem máscara e indiferente às medidas de prevenção ao novo coronavírus. Inaugurou um trecho da rodovia BR-135.

E antes de voar para Imperatriz, a segunda maior cidade do Estado, tomou um copo do Guaraná Jesus e debochou da sua cor. Enquanto sua equipe fazia uma transmissão ao vivo nas redes sociais, comentou com o dono de um bar que o recepcionava:

– Agora eu virei boiola. Igual maranhense, é isso? Guaraná cor-de-rosa do Maranhão aí, quem toma esse guaraná aqui vira maranhense. Guaraná cor-de-rosa. Fod…, fod…

Boiola, segundo os dicionários, é homem homossexual, indivíduo fraco ou medroso. Homofobia é uma série de atitudes e sentimentos negativos em relação a pessoas homossexuais. O comentário reforça a acusação de que Bolsonaro é homofóbico.

Não foi a primeira vez que ele se revelou assim. Em 2011, quando perguntado se receberia de bom grado o voto de um eleitor homossexual, respondeu:

– O voto é muito bem-vindo, e tão votando num macho, eles não querem votar em boiola, é que boiola não atende os sonhos deles, tão votando num macho.

Sobre a orientação sexual dos filhos foi taxativo:

Dora Kramer - Peteca no ar

- Revista Veja

O cardápio de inutilidades discutida pelas autoridades é interpretado como tentativa de desviar a atenção de questões espinhosas

Quando a gente vê autoridades brigando por vacina que não existe, pregando convocação de Constituinte ou falando em privatização do Sistema Único de Saúde, dá vontade de mandar suas excelências lavar uma louça.

Ou seja, que parem de tergiversar na contemplação de inúteis paisagens e tratem do que, no concreto, interessa a um Brasil cheio de problemas a ser enfrentados: uma pandemia que não acabou, economia em rumo incerto, educação de péssima qualidade, infraestrutura sofrível, desigualdade profunda, meio ambiente sob risco, sistema político-­partidário obsoleto, e por aí vai o país de futuro duvidoso.

O cardápio de inutilidades é interpretado como tentativa de desviar a atenção de questões espinhosas de modo a substituir no noticiário, por exemplo, denúncias de mau uso do poder e levar imprensa e redes a se ocupar de discussões sobre o nada. Enquanto se fala do acessório, o principal fica na prateleira.

Essa explicação até faz sentido, mas não passa da página dois, porque os enroscos reais não desaparecem e os temas de fantasia tendem a morrer na praia estorricados sob o sol da realidade.

O debate da vacina (obrigatoriedade, compra dessa ou daquela, origem e intenções conspiratórias) vai acabar no dia em que ela realmente existir, quando a questão principal será se haverá imunizante para todo mundo. Estudo da revista Nature mostra que mais de 85% dos brasileiros pretendem receber vacinação. Note-­se, é um universo de cerca de 170 milhões de pessoas. A privatização dos postos de saúde do SUS não passaria pelo crivo do Congresso, muito menos pela opinião do público, que na pandemia pôde constatar a dimensão da importância desse serviço, um dever obvia e constitucionalmente a ser assegurado pelo Estado.

Alon Feuerwerker - Salada indigesta

- Revista Veja

Fora a Covid-19, Bolsonaro já tem bons desafios para abrir 2021

Qualquer um que erre pouco e, portanto, colha sucessos em série corre o risco crescente de alguma hora cometer um erro muito grave. Costuma ser um subproduto da autossuficiência. Será o caso de Jair Bolsonaro se continuar colocando dificuldades no caminho da produção e distribuição em massa por aqui de alguma vacina eficaz contra o SARS-CoV-2.

Imagine o leitor ou leitora uma situação em que a vacinação já tenha começado em diversos lugares do planeta, mas esteja parada aqui devido a questiúnculas políticas.

Um que errava pouco e quando errou decidiu caprichar foi Donald Trump. Só olhar as pesquisas de março para cá. Se Joe Biden ganhar na terça 3, a maior parte da conta irá para o comportamento errático e politicamente primário do incumbente. Que deixou de bandeja para o adversário a defesa da saúde e do bem-estar coletivos.

Trump, a exemplo de Bolsonaro, apostou no ponto futuro. Alguma hora as pessoas passariam a ter mais medo da ruína do que do vírus. Não deixa de fazer sentido. Onde estava o risco maior para Trump? No meio do caminho tinha uma eleição, e era prudente saber como estaria a pandemia na hora de os eleitores saírem para a urna.

Bolsonaro leva algumas vantagens sobre o colega. Duas são as principais. Não enfrenta uma oposição unificada e o mandato dele só estará em jogo daqui a dois anos. Por enquanto, o preço que paga pela imagem de certo desdém diante da vida humana não compromete decisivamente sua musculatura político-eleitoral.

Míriam Leitão - Não é a economia, Donald Trump

- O Globo

O presidente Trump surfou ontem no número do PIB do terceiro trimestre. Já se esperava. A alta de 7,4%, ou 33% anualizados, na métrica confusa que eles usam, não recuperou a queda do ano. O segundo trimestre afundou 31,7%, ou 9% na comparação com o primeiro, que já havia caído 1,26%. Trump não tem programa econômico para o segundo mandato e passou a campanha distorcendo os dados do desempenho do seu governo. O balanço dos números mostra que ele pegou o país crescendo e manteve, mas disse que criou a prosperidade que herdou. Estimulou o curto prazo e aumentou os riscos de longo prazo. Prometeu reviver a indústria e não conseguiu, apesar do protecionismo.

A “Economist” publicou uma análise sobre o que chamou de “afirmações econômicas extraterrestres” de Trump. Segundo a revista, Casey Mulligan, que foi economista-chefe do Conselho Econômico de Trump, contou que o presidente exagera de propósito quando diz coisas como ter tido o melhor desempenho da história econômica do mundo. A estratégia é: ele mente, a imprensa vai corrigi-lo e, ao fazer isso, acaba disseminando a mentira que ele disse, segundo o economista que trabalhou com ele.

A verdade é que mesmo com a recuperação forte anunciada ontem para o terceiro trimestre o FMI prevê uma recessão de 4,2% para o país, um déficit primário de 18% e uma dívida que vai subir de 108% para 131% do PIB.

Claudia Safatle - Tempos de aflição

- Valor Econômico

“Rombo” fiscal se arrasta desde os anos 1980, com breve período de exceção

O país vive um momento em que decisões na economia vão ter grande impacto nos próximos anos, de forma mais ou menos análoga ao que os ex-presidentes Geisel e Figueiredo viveram quando dos choques de preços do petróleo em que optou-se por pisar no acelerador ao invés de ajustar a economia àquela condição de grave restrição. Foram os 20 anos seguintes de elevadíssimas taxas de inflação, só domada após o Plano Real, em meados de 1994. Ao ouvir as alternativas que tinha à mão na ocasião, Geisel teria dito: “Mas logo na minha vez vocês querem brecar a economia?”.

O momento, agora, é o retrato de um desequilíbrio que está na cobertura da imprensa desde a crise da dívida externa nos anos de 1980, quando os jornalistas de economia começaram a escrever sobre o “rombo” nas finanças públicas. Para alguns, iniciava-se alí um aprendizado da importância da política fiscal para a estabilidade da economia.

Foi a partir de um acordo de socorro financeiro com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que preconizava austeridade nas contas do setor público como medida de controle da inflação, que tomou-se conhecimento das metodologias de cálculo do déficit e o assunto passou a ser parte da pauta de cobertura da imprensa de 1983 para cá.

O fato é que os governos não foram capazes de resolver, até hoje, as restrições fiscais que se arrastam, freiam o crescimento da economia e atrasam a vida de milhões de brasileiros. Houve períodos de enfrentamento, quando no segundo mandato o governo de Fernando Henrique Cardoso começou, em 1999, a política do tripé macroeconômico calcado no regime de metas para a inflação, câmbio flutuante e superávit primário nas contas públicas.

As primeiras iniciativas de abandono das metas fiscais começaram no segundo mandato de Lula, mas foi Dilma Rousseff que deu um basta nos superávits e inaugurou o tempo dos déficits públicos. Ficou famosa a definição da presidente de que “gasto [público] é vida.”

Maria Cristina Fernandes - Como os milicianos tomaram a República

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Depois de "A República das Milícias", de Bruno Paes Manso, fica difícil acreditar que será possível mudar o Brasil em 2022 sem desalojar os justiceiros de seu berço político a partir das urnas de 15 de novembro

Bruno Paes Manso já estava na reta final de “A Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil” (Todavia, 2018), livro que escreveu com Camila Nunes Dias, quando a vereadora carioca Marielle Franco foi morta, em março de 2018.

O livro, construído partir de entrevistas com autoridades penitenciárias e policiais, além de lideranças do PCC e de associações comunitárias, pretendia ser um alerta para os pressupostos da política de segurança pública que, na previsão dos autores, daria as cartas em Brasília com a estreia do ex-governador Geraldo Alckmin no Palácio do Planalto.

O livro se tornaria uma referência incontornável nos estudos sobre o crime organizado no Brasil. Mostrou como a política de encarceramento em massa de São Paulo, aliada aos arranjos que preservavam a capacidade de gerência da cúpula da organização criminosa, embasavam a prolongada trégua nos índices paulistas de homicídio.

Um mês depois de seu lançamento, porém, Bruno Paes Manso sentiu-se atropelado pela história. Vítima de um atentado em Juiz de Fora, o candidato do PSL, Jair Bolsonaro, acabaria catapultado à Presidência da República. Com a eleição de Bolsonaro, o autor concluíra que precisava começar a pensar em outro livro. Desta vez, para contar como a cultura da violência miliciana, travestida em apelo da lei e da ordem, havia se transformado na expectativa majoritária de redenção do eleitorado nacional.

O resultado, “A República das Milícias: dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” (Todavia, 2020), repete a fórmula de “A Guerra”, com entrevistas em profundidade com chefes da milícia e do tráfico, autoridades policiais, lideranças comunitárias, estudiosos de segurança pública e uma sensibilidade aguçada para distinguir a evolução que moldara as comunidades do Rio em contraposição àquelas da periferia de São Paulo, que percorre há mais de duas décadas como jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

César Felício - O tempo no Amazonas começa a fechar

- Valor Econômico

Política e pandemia estão entrelaçadas de modo absoluto

No Amazonas, a estação das chuvas está próxima. É bom se preparar para a tormenta. No café de um hotel em São Paulo, o governador amazonense Wilson Lima (PSC) puxa do celular e abre em sua tela diversos vídeos de WhatsApp que recebeu. Mostram cenas da campanha eleitoral deste ano tanto em Manaus quanto em cidades do interior.

Muita gente, muita música. Abraços, beijos, festa popular. Em pelo menos um dos vídeos não é possível distinguir uma pessoa sequer de máscara. No Amazonas, explica Lima, a política funciona assim: com contato físico e, obviamente, intensa troca de partículas microscópicas por aerossol.

Na capital, o decano das eleições amazonenses, Amazonino Maia (Podemos), com 80 anos, tenta voltar à prefeitura. Faz campanha sem circular, com reuniões remotas, presença digital. Seu jingle remete a isso: “O pai tá on”. Ele perde terreno nas pesquisas. Seus rivais mais próximos, Davi Almeida (Avante) e Ricardo Nicolau (PSD) fazem campanha de rua e se aproximam. Seguem a lógica do Estado.

A campanha eleitoral, adiada, engata com a virada da estação, em que síndromes de quadro respiratório proliferam. No Amazonas, comícios foram proibidos em apenas dois dos 62 municípios. No Amapá, a covid parou a campanha na capital.

Luiz Carlos Azedo - O jabutizeiro do SUS

- Nas entrelinhas – Correio Braziliense

Quando a pandemia do novo coronavírus passar, a medicina nunca mais será a mesma. As consultas por teleconferência, introduzidas em massa durante a pandemia, vieram para ficar

A Prefeitura de Vitória (ES) tem uma das melhores redes de atendimento básico à saúde do país, resultado de sucessivas administrações, mas, sobretudo, do avanço tecnológico promovido pelo atual prefeito, Luciano Rezende (Cidadania), que encerra o seu segundo mandato. Com as inovações, foi possível ampliar o atendimento em 30%, sem contratação de médicos ou construção de novos postos de saúde. Qualquer cidadão atendido na rede, inclusive nos dois pronto atendimentos (PAs) da cidade, recebe um torpedo no celular para dar uma nota de 0 a 10 de avaliação do atendimento. A nota média, em setembro, mesmo na pandemia da covid-19, foi 9,11. O ovo de Colombo surgiu depois de uma viagem de avião, quando o prefeito recebeu uma mensagem pedindo uma nota de avaliação do serviço da companhia aérea.

A revolução tecnológica começou pelo Pronto Atendimento de São Pedro, antiga região de palafitas, erradicadas nas administrações de Vitor Buaiz (PT) e Paulo Hartung (MDB). Na administração do tucano Luiz Paulo Velozzo Lucas, da qual Rezende foi secretário de Saúde e de Educação, esses serviços foram ampliados. Mas, foi preciso muita inovação tecnológica para que a gestão da saúde fosse focada 100% na ponta do atendimento ao público. Quando os torpedos começaram a ser disparados, houve muitos questionamentos, porque tudo influencia a avaliação, e não apenas o atendimento médico propriamente dito. O PA de São Pedro, por exemplo, foi o mais mal avaliado. Esse resultado levou a que os diretores dos dois melhores postos de saúde da cidade fossem transferidos para lá, onde a população mais pobre da cidade é atendida na emergência, 24 horas, todos os dias, inclusive domingos e feriados. A média da avaliação dos usuários, em setembro passado, foi de 8,66. Mesmo com a pandemia, a menor nota de avaliação do PA de São Pedro foi 7,29, em março.

Vinicius Torres Freire - Molecagem e mais desvario no governo

- Folha de S. Paulo

Parte da economia volta ao azul, mas está ameaçada por fofoca e inépcia gerencial

Há um Brasil que se recupera da calamidade econômica, no comércio e na construção civil, movido a auxílios emergenciais e juros baixos. Há estados em que o nível de emprego formal já é maior ou pelo menos igual ao do final do ano passado, caso de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins, Maranhão, Paraná e Santa Catarina tocados também pelos bons resultados do agronegócio.

Mas essa recuperação relevante está longe de segura. Um dos motivos é que há um outro país, aquele que se dedica à molecagem em redes sociais, caso de ministros de Jair Bolsonaro ocupados de criar crises com fofoca juvenil idiótica. O capitão, por sua vez, trabalha para sabotar até uma hipótese de melhoria nacional, a existência de uma vacina contra a Covid.

Um ministro principal, Paulo Guedes, entre outras incapacidades gerenciais, não consegue dizer se vai propor uma nova CPMF ou se o imposto está morto, isso durante uma algaravia em que chegou ao ponto desvairado de acusar bancos de financiar inimigos do teto de gastos, provocando nova crise intestina no governo. Sim, os bancos seriam inimigos do arrocho fiscal.

Ministros e os novos amigos de Bolsonaro, as cabeças do centrão, se ocupam de artimanhas para sentar nas cadeiras vazias ou novas da reforma ministerial que virá, se especula. Misturada nesse rolo está a disputa pelo comando da Câmara no ano que vem.

Ruy Castro* - O futuro sem Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Mas e se o bolsonarismo já não precisar dele para existir?

Um dos pesadelos dos americanos é que, mesmo que Donald Trump seja derrotado na eleição de terça-feira e varrido de volta para a Idade Média, o trumpismo continue a existir nos EUA. Era uma inflamação que só esperava um furúnculo para estourar, e esse furúnculo foi Trump. Já o nosso pesadelo é que o mesmo possa acontecer aqui, quando Jair Bolsonaro for levado a responder por seus crimes contra as instituições, a democracia e a vida —que o bolsonarismo não dependa mais da existência do seu Führer.

Se pensarmos bem, ele já existia antes da candidatura de Bolsonaro à Presidência, da facada em Juiz de Fora e de sua vitória nas urnas. Claro que Lula foi decisivo para essa vitória, ao sabotar outras candidaturas para que Bolsonaro —“fácil de derrotar”— chegasse à final contra o PT. Lula subestimou a aversão ao lulismo, alimentada durante 13 anos pelos desmandos de seu partido. A prova dessa aversão é que, com toda a demência e bestialidade do governo Bolsonaro, o PT está à beira da extinção.

Bruno Boghossian - Ciro e o escorpião

- Folha de S. Paulo

Apesar de armistício, petistas e pedetistas dizem que diferenças políticas permanecem

Um ano após a eleição presidencial, Ciro Gomes (PDT) deu uma entrevista em que chamou o comando do PT de “um bando de ladrão e mentiroso”. Meses depois, ele disse que Lula era o líder das “falcatruas” do partido. “Perdi o respeito por ele, completamente”, declarou.

Os dois se estranharam em público por um bom tempo, até que aceitaram se encontrar para uma longa conversa reservada, no início do mês passado. Ciro e Lula selaram um armistício, discutiram os movimentos da oposição ao governo Jair Bolsonaro e iniciaram uma reaproximação, como contou o jornal O Globo.

Os ataques cessaram desde então, mas os dois lados ainda estão céticos em relação à possibilidade de uma composição entre o ex-governador cearense e o ex-presidente. Segundo aliados de ambos, o encontro pode ter amenizado alguns desentendimentos, mas as diferenças políticas permanecem.

Um cacique do PT diz duvidar que as desavenças sejam zeradas a tempo de permitir uma aliança para a eleição de 2022. O próprio petista afirma que, ainda que o partido sinalize uma união, Ciro “não acredita” que a sigla vá apoiá-lo. Como o ex-governador também não tem motivos para abrir mão da disputa, é mais provável que os dois fiquem separados.

Reinaldo Azevedo - 'Memento mori', Guedes! Chamem Dedé

- Folha de S. Paulo

Decreto que punha UBSs no programa de privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó

Oba! Paulo Guedes viveu nesta quinta-feira (29) mais um “patético momento”, com o perdão de Cecília Meireles, em audiência pública no Congresso. Falou a verdade ou só promoveu guerrilha interna ao afirmar que o governo abriga um ministro financiado pela Febraban, a federação de bancos? É claro que se referia a Rogério Marinho.

Sendo verdade, é grave, e o lobista tem de ser demitido. Sendo mentira, demita-se o acusador. O chilique é apanágio de incompetentes. Temos um governo de destrambelhados. A desorientação da gestão de Jair Bolsonaro deixou o terreno do debate administrativo e virou pastelão.

O decreto que punha as Unidades Básicas de Saúde no escopo do programa de concessões e privatizações parece ter sido redigido por Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo, em parceria com o Mussum de porre. Esqueceram de chamar Dedé e Zacarias. Teriam alguma reserva de bom senso: “Melhor não!”.

O texto era assinado por Bolsonaro e pelo próprio Guedes. O chefe não tem noção do que fala e faz. A única coisa que lhe interessa é a rinha política. Para tanto, é preciso manter a adesão de duas frentes: nas redes, a da súcia de sempre; no Congresso, a dos clientes de Luiz Eduardo Ramos, pagador de emendas.

Vai dar errado, antevê o general Rêgo Barros, ex-porta-voz, que adverte Bolsonaro: “Memento mori”. A tradução que circula por aí não é boa: “Lembre-se de que é mortal”, o que seria um convite à humildade. “Memento” é um imperativo no tempo futuro, que não sobreviveu nas línguas neolatinas. “Mori” é verbo no infinitivo.

Flávia Oliveira - Saúde é a prioridade da população antes e depois da pandemia

- O Globo

Combater a Covid-19 e defender o SUS são iniciativas dos que têm empatia

Saúde é prioridade dos brasileiros. Era antes da pandemia da Covid-19, continua sendo. Não foi por acaso que o natimorto Decreto 10.530/2020, em que o presidente da República autorizava o Ministério da Economia a elaborar estudos e montar projetos-pilotos para construção, modernização e operação pelo setor privado de Unidades Básicas de Saúde, foi recordista em repercussão negativa desde janeiro de 2019. A consultoria Arquimedes identificou uma avalanche virtual em defesa do Sistema Único de Saúde, o SUS, materializada em 98,5% de menções desfavoráveis ao ato de Jair Bolsonaro — praticamente o mesmo percentual de mulheres negras (98%) que, em 2016, votaram na democrata Hillary Clinton contra o republicano Donald Trump. Rejeição maiúscula à canetada.

A tragédia do novo coronavírus, que já tirou a vida de mais de 159 mil brasileiros e mudou para sempre a história do planeta, escancarou realidade há muito denunciada pela população e ignorada pelas autoridades. Pesquisas de 2006, 2010, 2014 e 2018, sem exceção, apontaram a área como primeira na lista de problemas apontados pelos eleitores brasileiros. Seis anos atrás, encabeçou o rol de mazelas em todas as regiões do país e também na faixa etária de 60 anos ou mais, hoje principal grupo de risco da Covid-19. No pleito que tornou Bolsonaro presidente, há um par de anos, saúde empatou com segurança pública no topo do ranking.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Os padrões do comportamento civilizado – Opinião | O Estado de S. Paulo

Sucesso eleitoral de Bolsonaro inspirou outros oportunistas a apostar na imoralidade como estratégia

Numa democracia saudável, a luta pelo poder, por mais acirrada que seja, não pode servir de pretexto para que se violentem os padrões básicos de comportamento civilizado. Em outras palavras, todos, candidatos e eleitores, devem respeitar esses limites ditados pela decência – que, ao fim e ao cabo, é requisito fundamental para o reconhecimento mútuo da legitimidade dos que disputam o poder.

Há algum tempo, contudo, a democracia brasileira vem sendo rebaixada por alguns a uma briga de rua, em que vence aquele que desafia os paradigmas morais que, sempre se acreditou, viabilizam a vida em sociedade. A briga de rua premia os que tratam o oponente de forma desumana, sem qualquer freio ditado pelos princípios éticos; já os que nutrem respeito pelo adversário, no mínimo por honradez, são tratados como fracos.

Quando Celso Russomanno, candidato à Prefeitura de São Paulo, sugere que seu principal adversário na disputa, o prefeito Bruno Covas, pode não terminar o mandato caso seja reeleito, revela por inteiro a ausência de limites morais que tão mal tem feito à democracia no País.

Como se sabe, o prefeito Bruno Covas sofreu de câncer. Segundo seus médicos, o tratamento a que o prefeito vem sendo submetido controlou a doença e lhe deu condições não apenas de continuar à frente do cargo, como também de concorrer à reeleição. É absolutamente repugnante que um candidato explore a doença grave de um adversário para tentar lhe tomar votos.

Ao contrário do que pensam os bolsonaristas como o sr. Russomanno, há uma linha de dignidade que não pode ser cruzada em nenhuma hipótese, pois eleição não é uma disputa terminal, de vida ou morte, que, ao menos para os amorais, justificaria toda sorte de barbaridades.

Música | MPB4 - Cantiga de Beira d'Água

 

Poesia | Vinicius de Moraes - Ternura

Eu te peço perdão por te amar de repente

Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos

Das horas que passei à sombra dos teus gestos

Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos

Das noites que vivi acalentado

Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo

Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.

E posso te dizer que o grande afeto que te deixo

Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas

Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...

É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias

E só te pede que te repouses quieta, muito quieta

E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar

                                                                     [extático da aurora.