domingo, 16 de julho de 2023

Luiz Sérgio Henriques* - Praga e Brasília – de um século a outro

O Estado de S. Paulo

As coisas humanas são, todas elas, relativas, mas não há lugar para sofisma sobre a vida em democracia

Em tempos de invasão e guerra, cabe recuar brevemente ao emblemático ano de 1968, quando, para manter intacto o “campo socialista”, a então URSS e o seu Pacto de Varsóvia puseram fim à experiência do “socialismo de rosto humano” na Checoslováquia de Alexander Dubcek, um antecessor distante de Mikhail Gorbachev. As repercussões na esquerda global foram enormes, estimularam heresias e consolidaram conformismos, sacudiram certezas e, naturalmente, desembarcaram no Brasil.

Era também um tempo de manifestos, a exemplo do que reuniu intelectuais ligados ao antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) – como Ênio Silveira e Moacyr Félix, responsáveis pela histórica revista Civilização Brasileira, que estampou o documento em número especial – e muitos outros que não o eram, como, entre os vivos, Affonso Romano de Sant’Anna e Bolívar Lamounier, com impecáveis credenciais. O que os unia era a defesa da “Primavera de Praga” e da autodeterminação dos povos contra a brutalidade dos invasores.

Luiz Carlos Azedo - O iliberalismo não morreu com a inelegibilidade de Bolsonaro

Correio Braziliense

No Brasil, o iliberalismo emergiu com a crise de nossa democracia representativa, cujo descolamento da sociedade ficou evidente nos protestos de 2013. Chegou ao poder no tsunami eleitoral de 2018

A agenda social-liberal está órfã no Brasil. Foi substituída por um projeto iliberal no mandato de Jair Bolsonaro e ainda não foi plenamente assumida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja política tem viés nacional-desenvolvimentista, evidente na política externa e na política industrial. Para neutralizar o iliberalismo, a gestão de Lula precisaria consolidar outro viés, a de um governo de ampla coalizão democrática, com uma política de integração competitiva à economia mundial e agenda social universalista, mas com foco nos mais pobres.

Uma terceira alternativa, com esse caráter social-liberal, não é possível na atual conjuntura, mesmo que alguns desejem, por falta lhe uma liderança de projeção nacional e base social articulada. Essa disputa está se dando dentro do governo Lula e não fora dele.

O que existe de alternativa de poder fora do governo são lideranças que surgiram na aba do chapéu do ex-presidente Jair Bolsonaro, principal representante do iliberalismo na política brasileira, porque sua base eleitoral continua influente, articulada e identificada com uma agenda autoritária. Com a inelegibilidade do ex-presidente da República, sentenciada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), muitos acreditam que a ameaça à democracia deixou de existir. É um equívoco.

Merval Pereira - Sistema disfuncional

O Globo

Impeachment se transformou em ato político para chantagear o presidente de ocasião

Quando se diz que as instituições estão funcionando na nossa democracia, usa-se uma complacência característica de nossa cultura, sem se exigir rigor nessa definição. Na verdade, nossa institucionalidade é tão disfuncional que contamina qualquer sistema ou instrumento jurídico que exista para conter arroubos autoritários de autoridades.

É o caso do impeachment, que se transformou em um ativo político nas mãos do Congresso para chantagear o governante da ocasião. Pela direita, com Collor e Temer, ou pela esquerda, com Dilma, o impeachment bateu em Chico e Francisco, e o resultado teve a ver historicamente com a relação do Executivo e Congresso.

Collor, quando tentou reorganizar seu governo e comprar adesões, já estava crucificado pela soberba pessoal e pela corrupção. O então ex-presidente Lula tentou ajudar sua sucessora na negociação política para evitar o impeachment, ficou de plantão permanente em um hotel de Brasília parlamentando, mas a incapacidade de Dilma de se relacionar com diferentes impediu-a de continuar a exercer o governo, além do abuso do poder que decretou seu impedimento definitivo.

Míriam Leitão - A diferença que os valores fazem

O Globo

Tudo o que temos celebrado no Prêmio Faz Diferença esteve sob ataque. Por isso, a festa deste ano teve uma alegria calma e sensação de alívio

O líder indígena Ailton Krenak entrou no salão do Copacabana Palace, quando ainda estava quase vazio. Abriu um sorriso ao ver Milton Nascimento. Sentou-se do lado dele, e os dois encostaram suas cabeças uma na outra e cantaram baixinho uma música de “Txai”, o álbum de Milton dedicado aos indígenas. Ao fim da cerimônia, duas jovens foram dizer a Ailton o quanto o admiravam. Eram as filhas da cientista Mercedes Bustamante. Krenak me disse baixinho. “A geração Greta entendeu”.

É privilégio ver cenas assim dos bastidores do prêmio que há vinte anos este jornal entrega a pessoas e instituições que, por uma luta, uma superação, uma história de vida, uma causa, melhoram o país. Nós, jornalistas, somos céticos por dever de ofício. Temos que duvidar para começar a entender qualquer matéria. O prêmio Faz Diferença é um saudável exercício de buscar, em cada editoria, o que deu certo, o que é bom, generoso, transformador.

Eliane Cantanhêde - E la nave va

O Estado de S. Paulo

O Centrão e até o PL põem o pé direito no eleitorado e o esquerdo no governo Lula

Com o presidente Lula em Bruxelas e o Congresso e o Judiciário em recesso, pausa para Lula pensar e desenhar a reforma ministerial sem a pressão cara a cara do Centrão ou da votação no dia seguinte da matéria tal ou qual. Agora, é torcer para que ministros do Supremo não digam besteira por aí, ocupem as manchetes e animem o combalido bolsonarismo.

Depois de escolher os dois novos ministros do Centrão e os partidos passíveis de ceder as vagas, como já escrito aqui, Lula avança na dança de cadeiras, com um troca-troca interno, e mexe na aritmética da reforma: em vez de demitir dois ministros, poderá demitir só um, ou melhor, uma.

Bruno Boghossian - Lula cultiva o antibolsonarismo

Folha de S. Paulo

Petista anda com imagem do antecessor no bolso apesar de inelegibilidade do rival

Nas últimas semanas, Lula chamou Jair Bolsonaro de titica, gângster, genocida, golpista, insano e outros insultos. Dias atrás, o petista foi ao congresso da UNE e disse que os quatro anos do antecessor foram uma amostra do fascismo e do nazismo.

Lula anda com a imagem do ex-presidente no bolso. O petista mantém a artilharia contra Bolsonaro em palanques, eventos oficiais e entrevistas. Lança críticas diante de plateias dispostas a fazer coro, como estudantes e integrantes do MST, e tenta salgar terrenos em torno de empresários e governantes estrangeiros.

Bolsonaro está fora das próximas eleições, mas Lula quer preservar o antibolsonarismo como força e medir seus efeitos no próximo ciclo.

A rejeição a Bolsonaro ajudou Lula a alcançar uma maioria em 2022. Derrotar o capitão e barrar o sonho golpista renovaram o fôlego da militância de esquerda, atraíram eleitores distantes do PT e forjaram uma rede ampla de defesa da democracia.

Elio Gaspari - A canetada onipotente e inócua do MEC

O Globo

Ministério da Educação podou os recursos para 202 escolas cívico-militares de 15 Estados, onde estudam cerca de 120 mil jovens

Com uma canetada, o Ministério da Educação podou os recursos para 202 escolas cívico-militares de 15 Estados, onde estudam cerca de 120 mil jovens. No ofício em que comunicou a suspensão da iniciativa aos secretários estaduais, referiu-se a um “processo de avaliação liderado pela equipe da Secretaria de Educação Básica” ao fim do qual “foi deliberado o progressivo encerramento do programa”.

Não se conhecem as conclusões de qualquer avaliação pedagógica dessas escolas, e a Nota Técnica que instruiu a decisão discute genericamente a questão.

A medida, anunciada na última quarta-feira , é a um só tempo onipotente e inócua. Onipotente, porque partiu de burocratas que criam ou matam programas sem maior discussão. Inócua, porque em 48 horas cinco governos estaduais anunciaram que financiarão as escolas com seus recursos.

Celso Rocha de Barros* - Os debates que fizeram a China

Folha de S. Paulo

Livro reconta discussões no início do milagre chinês sobre estratégia em transição para o mercado

A editora Boitempo acaba de publicar um livraço: "Como a China escapou da terapia de choque", de Isabella M. Weber. É uma história dos debates entre os economistas chineses, nos anos 80 do século passado, sobre que estratégia a China adotaria em sua transição para o mercado. Se você quer saber como a China chegou aonde chegou, é leitura obrigatória.

É inevitável comparar o extraordinário sucesso da economia chinesa nas últimas décadas com o colapso da Rússia no mesmo período. Weber parte da ideia, comum na literatura especializada, de que diferenças de estratégia econômica explicam essa diferença de desempenho.

Seu foco está nas políticas de liberação dos preços, que sob o planejamento socialista eram fixados pelo governo. A Rússia adotou a "terapia de choque": liberou todos os preços em um período muito curto. A China adotou um sistema dual em que, por um período maior, conviveram preços controlados e liberados.

Entretanto, como nota a autora no ponto alto do livro, a China quase implementou a terapia de choque ainda nos anos 80. Para reconstruir essa disputa, Weber entrevistou sobreviventes, teve acesso a textos censurados e reconstituiu debates clássicos (e muito bons) do campo socialista. A discussão sobre as posições (e possíveis inconsistências) do economista húngaro Janos Kornai –uma figura importantíssima– é um dos pontos altos do livro.

Vinicius Torres Freire - O programa 'pop' de Lula

Folha de S. Paulo

Presidente dá sinais de impaciência e cobra medidas de efeito popular, várias ineficazes

Faz alguns meses, governo, BC (Banco Central) e bancos dizem conversar sobre o que pode ser feito de taxas de juros, como a do cartão de crédito, em especial do rotativo, de 455,09% ao ano. O governo não pode fazer quase nada, se algo, mas gostaria (a "ala política") de ver um anúncio qualquer a respeito. Bancos discutem um modo de dar um fim ao crédito rotativo no cartão, linha que seria substituída por um parcelamento automático da fatia da dívida que não é paga no mês.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem cobrado mais providências "pop". Não por acaso, na semana que passou jogou no ar a ideia de uma espécie de programa "Mais Geladeiras", desconto de impostos para eletrodomésticos.

Também na semana passada o ministro Márcio França (Portos e Aeroportos) disse a esta Folha que o "Voa Brasil", começa em agosto. Não tem dinheiro do governo e é uma tentativa de vender cadeiras vazias nos aviões comerciais a R$ 200.

Muniz Sodré* - O voo do verme

Folha de S. Paulo

Bolsonarismo sobrevive como comunidade noturna onde não é preciso abrir olhos nem consciência

Aquilo que os analistas políticos têm chamado de "bolsonarismo" não é mero condensado de clichês da extrema direita, mas basicamente uma rede de sinergia onde corpos vulneráveis aglutinam-se por ressentimento, em busca de "outro lado" da política e do social. Na prática, uma coxia de desconchavos que podem variar da fantasia senil de uma senadora de transformar a Ilha de Marajó num principado até a comparação estapafúrdia de professores a traficantes feita por um deputado. Ao olhar sensível, um campo vibratório de fatos negativos.

De fato, o homem, além daquilo que pensa, é igualmente o que vibra. As manifestações ao mesmo tempo sentidas e efusivas no velório do teatrólogo José Celso ilustram claramente como, até mesmo na morte, uma existência plena de criatividade e amor de mundo pode vibrar como "celebração à vida".

Hélio Schwartsman - Poder e progresso

Folha de S. Paulo

Livro mostra que avanços tecnológicos podem virar concentração de renda ou prosperidade compartilhada

Daron Acemoglu, um dos autores do best-seller "Por que Nações Fracassam", volta à carga com mais um livro importante. Trata-se de "Power and Progress" (poder e progresso), desta vez em parceria com Simon Johnson.

Os autores admitem, por óbvio, que avanços científicos e tecnológicos estão na base da era de bem-estar material em que nos encontramos. Hoje, mesmo os mais pobres vivem vidas mais longas, mais saudáveis e com acesso a confortos com que nossos ancestrais de 300 anos atrás nem sequer podiam sonhar. O ponto da dupla é que nem todos os progressos tecnológicos se convertem automaticamente em prosperidade para todos.

Dorrit Harazim - Dois grandes

O Globo

Mundo prestará homenagens a Koudelka, conterrâneo de Kundera que produziu o registro visual definitivo da invasão soviética

Nesta semana o mundo perdeu o escritor Milan Kundera. Nascido na antiga Tchecoslováquia, hoje República Tcheca, ele teve a cidadania e o escrever cancelados em 1979 pelo regime comunista e morreu aos 94 anos naturalizado francês, na Paris que o acolheu. Admirado pelo estilo irônico, refinado e encharcado da melhor literatura secular europeia, Kundera conseguiu manter distância da aclamação instantânea alcançada com “A insustentável leveza do ser”. Foi um dos grandes do século XX. Mas é seu embate decisivo com a censura que aqui merece registro à parte, por trazer embutido um ensinamento universal.

O episódio ocorreu como prólogo da breve “Primavera de Praga” de janeiro de 1968, quando o stalinismo soviético entreabriu uma fresta para um reformista de olhos tristonhos, Alexander Dubcek, ensaiar seu “socialismo de rosto humano”. Kundera era membro dos mais ativos da União dos Escritores checos e participara com contundência de um congresso a favor de maior liberdade de expressão no país. Invocara a literatura como força vital para a própria existência da nação e concluíra seu discurso assim:

— Qualquer interferência com a liberdade de pensamento e da palavra (...) é um escândalo neste século, uma correia a prender nossa literatura justo quando ela tenta dar um passo à frente.

Edison Carlos Fernandes* - Capitalismo do primeiro Adam Smith

O Estado de S. Paulo

Se a experiência do socialismo real não refletiu a teoria de Karl Marx, tampouco o capitalismo real tem refletido a teoria de Smith, que completou 300 anos em 5 de junho

Aquele que é considerado o pai da economia moderna não se apresentava como economista. Ao que parece, esse título já existia à época, mas Adam Smith preferiu deixá-lo para outros estudiosos, referindo-se a si próprio como filósofo moral. Sua apresentação autoriza o entendimento de que seus livros devem ser considerados como uma só e única obra.

Fruto de suas aulas de filosofia moral, Smith legou-nos dois livros: Teoria dos sentimentos morais, buscando identificar a origem da moralidade no indivíduo; e A riqueza das nações, descrevendo o funcionamento dos aglomerados humanos, sob uma perspectiva social. Em ambos, como admirador de Isaac Newton, Smith adotou o método descritivo e indutivo: não havia hipóteses a priori a serem confirmadas ou refutadas; a pesquisa conduziria às conclusões sobre eventual existência de padrões de comportamento individual e social. Por ter focado o estudo nas humanidades, seu método se aproximou da Antropologia e mesmo da Psicologia – cuja consideração faz toda a diferença para interpretar sua teoria.

Almir Pazzianotto* - Poder Constituinte e Poder Legislativo

Correio Braziliense

A oitava Constituição foi elaborada em ambiente de rebeldia e revanchismo. Não havia clima para exame de projeto elaborado por juristas. O presidente José Sarney o tentou, com a nomeação de Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, conhecida como Comissão Afonso Arinos

Nas eleições de 1986, ao votarem em deputados e senadores para composição do Poder de Legislativo, os eleitores ignoravam que seriam investidos de poder para redigir e promulgar nova Constituição. Acreditavam que eram candidatos à Câmara dos Deputados e ao Senado, para legislar à luz da Emenda Constitucional nº 1/1969, considerada a nossa sétima Constituição.

Foi no exercício de prerrogativa concedida pela Emenda Constitucional nº 26, de 17/11/1985, que o presidente José Sarney converteu o Poder Legislativo em Poder Constituinte. Assim o havia feito o presidente Castelo Branco em 7/12/1966, quando, pelo Ato Constitucional nº 4, reuniu o Congresso Nacional extraordinariamente, de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967, para "discussão, votação e aprovação de projeto de Constituição apresentado pelo presidente da República" (Art. 1º).

O presidente Castelo Branco seguia o exemplo deixado pelo presidente interino José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, sucessor do deposto presidente Getúlio Vargas. O ministro José Linhares, mediante Lei Constitucional editada em 12 de dezembro de 1945, deliberou que os parlamentares eleitos em 2 de dezembro, para a Câmara dos Deputados e para o Senado, se reuniriam no Distrito Federal, "sessenta dias após as eleições, em Assembleia Constituinte, para votar, com poderes ilimitados, a Constituição do Brasil".

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Lula do centrão

Folha de S. Paulo

Aumento da participação do grupo no governo provê moderação, mas enseja riscos

O presidencialismo de coalizão é uma solução de governança em sistema multipartidário para situações em que a chapa eleita para o Executivo não tem maioria no Congresso. No Brasil, elas ocorreram em 100% dos pleitos desde 1989.

Os governantes que navegaram contra essa corrente enfrentaram dificuldades que variaram de contratempos pontuais ao impeachment. Jair Bolsonaro (PL) cometeu esse erro no início da gestão e depois, ameaçado, teve de entregar anéis e dedos ao centrão.

Parece vir desse aglomerado de parlamentares interessados sobretudo na sua sobrevivência regional a novidade política do segundo semestre da administração Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ensaia-se um embarque substancioso do grupo no governo.

Confirmado o deputado Celso Sabino (União Brasil-PA) no Ministério do Turismo, as conversas avançam para abarcar duas grandes legendas que apoiaram Bolsonaro em outubro —Republicanos e o PP de Arthur Lira, presidente da Câmara e pivô do centrão.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Mundo Grande

 

Música | Caetano Veloso - Ela é Carioca