“Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, letras. Neste vestido da rapariga que vai em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram — pois que o vejo vestido e não estofo — e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retrós de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E imediatamente, como num livro primário de economia política, desdobram-se diante de mim as fábricas e os trabalhos — a fábrica onde se fez o tecido; a fábrica onde se fez o retrós, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu lugar junto ao pescoço; e vejo as seções das fábricas, as máquinas, os operários, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escritórios, vejo os gerentes procurar estar sossegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido.
Toda a vida social jaz a meus olhos.
Para além disto pressinto os amores, as secrecias [sic], a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está diante de mim no elétrico, use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retrós de seda verde escura fazenda verde menos escura.
Entonteço. Os bancos do elétrico, de um entre-tecido de palha forte e pequena, levam me a regiões, distantes, multiplicam- se-me em indústrias, operários, casas de operários, vidas, realidades, tudo. Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira.”