Contudo, nem tudo é névoa nas relações entre os dois poderes governativos no Brasil de 2023. Os arranjos mutantes em vigor podem não fixar ainda um sistema estável. Mas existem, do ponto de vista político e nunca deixaram de orientar a vida institucional. Podem, portanto, ser analisados, como foram até em momentos críticos, de Bolsonaro com pandemia. A anomia nos rondou, mas não se instalou, porque temos sociedade civil e também porque o Congresso agiu com perícia naquele 2020 fatídico. Hoje, com mais razão ainda, podemos constatar que o processo de mutação do sistema de governo, que já dura quase uma década, não foi interrompido e que, passada a borrasca, ganha intensidade.
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
domingo, 7 de maio de 2023
Paulo Fábio Dantas Neto* - Adensando névoa: o Poder Executivo num novo sistema de governo em construção
Merval Pereira - Dificuldades na transição
O Globo
Lula não entendeu que foi eleito por um
eleitorado insatisfeito com Bolsonaro, mas que não é seu
A dificuldade do governo com o Congresso
era previsível, porque o Congresso atual é, talvez, o mais conservador dos últimos
tempos, pelo menos em contraposição ao governo Lula, não o da campanha, mas o
de fato. Lula conseguiu ser eleito por uma diferença mínima porque vestiu na
campanha a fantasia do líder moderado, que desejava fazer um governo de
transição com o apoio das forças democráticas. Um governo de aliança nacional.
A dificuldade do governo com o Congresso
era previsível, porque o Congresso atual é, talvez, o mais conservador dos
últimos tempos, pelo menos em contraposição ao governo petista, não o da
campanha, mas o de fato. Lula conseguiu ser eleito por uma diferença mínima
porque vestiu na campanha a fantasia do líder moderado, que desejava fazer um
governo de transição com o apoio das forças democráticas. Um governo de aliança
nacional.
Como o anseio majoritário, mas nem tanto, era se livrar de Bolsonaro, ele logrou êxito; inclusive conseguiu tirar do Congresso uma verba astronômica para poder começar a governar. Logo depois de eleito, deu uma guinada e tanto em direção à tendência mais à esquerda do PT. Não entendeu que a correlação de forças entre esquerda e direita mudou e também que a institucionalização do Brasil mudou muito nesses 20 anos.
Luiz Carlos Azedo - “Sucesso do governo Lula é uma questão de probabilidades”
Correio Braziliense
Quando o governo decide aumentar seus gastos
sociais, de algum lugar esses recursos precisam sair. A conta não fecha. O
conflito distributivo tende a se agravar se a economia não voltar a crescer
Não custa nada repetir: o governo Lula 3
não é uma continuidade dos governos 1 e 2. Os dois mandatos anteriores do
presidente da República foram bem-sucedidos e consagrados nas urnas, com a sua
própria reeleição e a eleição de Dilma Rousseff, enquanto o mandato atual está
apenas começando, num cenário completamente diferente dos anteriores — muito
mais difícil do ponto de vista econômico, social e político. Por enquanto, o
sucesso de Lula 3 é apenas uma probabilidade, mais ou menos equivalente aos
seus 50,9% de votos válidos no segundo turno do ano passado. Não é pouca coisa.
Uns têm a impressão de que o governo vai
muito devagar, outros que o universo conspira contra Lula. Leonard Mlodinow, em
seu livro O Andar do Bêbado, explica que isso está associado à importância da
memórias mais “disponíveis”, sobretudo as boas recordações. Quando escolhemos
aleatoriamente um caixa de supermercado, temos a sensação de que a nossa fila é
mais lenta. Entretanto, a chance de que isso aconteça, caso existam 10 caixas,
é de apenas 10%. Essa probabilidade é a mesma para todos, mas temos a impressão
de que é mais lenta porque prestamos atenção em tudo o que acontece à nossa
frente.
O Andar do Bêbado é um livro dedicado ao acaso na vida das pessoas, que conta a história da lei das probabilidades, com exemplos surpreendentes, como o movimento caótico das partículas suspensas em água, que serviu para os trabalhos de Albert Einstein sobre a física estatística no começo do século passado. Muitas vezes o governo se move aleatoriamente, como se estivesse bêbado. Em outras, temos a impressão de que passou a fazer a mesma coisa de forma pior, só porque foi elogiado.
Vinicius Torres Freire – Lula, a oposição do PT e o centrão
Folha de S. Paulo
Núcleos do comando petista no governo
entram em atrito com outras áreas do governo
O comando do PT e o núcleo do PT no
governo, em especial na Casa Civil, têm um programa que, em parte, tem sido no
mínimo apoiado por Luiz Inácio Lula da
Silva.
É um plano que incomoda gente de outras
partes do governo, petistas inclusive, como na economia, nas relações
exteriores e mesmo na área ambiental. Até no BNDES, espécie de
ala esquerda da equipe econômica, os planos mais petistas-partidários causam
preocupação. Todos dizem que o governo precisa se lembrar de que foi eleito por
uma "frente ampla".
A tentativa de retomar o controle da Eletrobras, política para a Petrobras, regra de reajuste do salário mínimo, o caso de Lula com a guerra da Ucrânia, os decretos para mudar as leis do saneamento (facilitando a vida de estatais), a lentidão da remontagem na área ambiental e os ataques contra o arcabouço fiscal fazem parte da lista de atritos. A retomada da Eletrobras e os decretos do saneamento são obras do núcleo petista no governo.
Míriam Leitão - Os fios que tecem a rede de crimes
O Globo
Na esteira da investigação sobre a
vacinação, surgiu uma trilha de crimes: fraudes, golpismo, até do assassinato
de Marielle se falou
Várias linhas de investigação cercam
Bolsonaro e seu entorno sobre os desmandos que cometeram. Uma dessas linhas,
que parecia menos promissora, a da vacina, ligou alguns pontos: fraudes,
golpismo, até do assassinato de Marielle se falou. “É como Al Capone”, me disse
uma fonte oficial se referindo ao caso de uma investigação que parecia
acessória e que assumiu centralidade. Um jurista que eu ouvi falou uma palavra
estranha, mas esclarecedora. “Serendipidade”, que é o “encontro fortuito de
provas” para definir os achados que foram revelados na semana passada.
Investigava-se um crime e indícios de outros crimes apareceram. Eles foram
atrás.
Na hora do depoimento na Polícia Federal, o ex-militar Ailton Barros, o homem que falou que sabia quem mandou matar Marielle, tentou escapar com uma resposta rasa. “Falei bobagem”, disse no interrogatório. Não quis ir muito além disso, permaneceu em silêncio como os demais, mas isso não preocupa os investigadores.
Bernardo Mello Franco - Na cena do crime
O Globo
Cenário está armado para que o
tenente-coronel pague a conta em nome do capitão
A cena marcou os debates da eleição
presidencial. Nos intervalos de cada rinha televisiva, um militar subia ao
palco para cochichar com Jair Bolsonaro. Era o tenente-coronel Mauro Cid, preso
na quarta-feira pela Polícia Federal.
Nos estúdios de TV, o oficial fardado se
destacava entre os civis. Sua presença tinha duplo significado. Simbolizava o
uso da máquina na campanha à reeleição e o apoio dos quartéis ao candidato da
extrema direita.
Cid foi a sombra de Bolsonaro no poder. Tenente-coronel do Exército, não se limitava às atribuições de um ajudante de ordens, como carregar papéis e atender telefonemas. Também aconselhava o chefe em assuntos políticos e eleitorais.
Celso Rocha de Barros - Quem vai delatar Bolsonaro?
Folha de S. Paulo
Escândalos do ex-presidente começam a andar
como andavam escândalos em governos menos blindados
Com o caso da falsificação
do registro de vacina, os escândalos de Jair
Bolsonaro começam a andar como andavam os escândalos em
governos menos blindados. Agora é ver quem vai delatar.
Em outros governos, a coisa começava com
uma denúncia, pela imprensa ou pelas autoridades. A denúncia gerava
desdobramentos políticos, como CPIs, quedas de ministros, inquéritos, delações
premiadas, mobilizações da opinião pública e até pedidos de impeachment.
A turma do Jair chegou ao poder pisando nas
ruínas do sistema político, destroçado pela Lava Jato.
Aprenderam a lição: os partidos tradicionais haviam tolerado democracia demais,
liberdade de imprensa demais, investigações demais, autonomia institucional
demais, transparência demais.
Os bolsonaristas estavam decididos a não repetir o erro: blindaram-se com os militares, fizeram guerra à imprensa e ao STF, aparelharam o Ministério Público e a Polícia Federal, compraram o Congresso com o orçamento secreto. Suas relações suspeitas preferenciais foram com países árabes que só não são menos transparentes que a Coreia do Norte. Tudo isso com um toque de gênio: o apoio de Sergio Moro, a face pública da Lava Jato.
Muniz Sodré – O fato fora do circo
Folha de S. Paulo
CPI, o campo de batalha na guerra de
narrativas
"Primeiro reúna os seus fatos, depois
você pode distorcê-los como quiser". O torneio lapidar de Mark Twain é
pretexto para uma abordagem à questão grave da desinformação, que hoje
atravessa a esfera pública das tecnodemocracias ocidentais, de forma aguda entre
nós.
A frase teria como alvo a imprensa, onde o viés excessivo da interpretação pode descambar no falseamento jornalístico. Não é caso raro em todas as épocas.
Atualmente, porém, na informação praticada pelas plataformas digitais, o processo é sistemático, com outros métodos: o principal consiste em amealhar fragmentos de fatos e encadeá-los por meio de mentiras explícitas antes de narrar. Não se trata, portanto, de mera distorção, mas de tática de controle da experiência empírica da sociedade civil, isto é, de tudo o que ocorre na vivência casual, não organizada, inclusive nas escolhas políticas.
Eliane Cantanhêde - A história do golpe
O Estado de S. Paulo
Um ‘ex-major que não vale nada’, a minuta de golpe do ministro da Justiça e o 8 de janeiro
A Polícia Federal atirou no que viu e
acertou no que não viu: a operação para desbaratar o que o ministro Alexandre
de Moraes chamou de “organização criminosa” mirava a falsificação de atestados
de vacinação de covid no sistema do Ministério da Saúde, mas acertou em
mensagens que são ouro puro (não joias das Arábias...) para as investigações
sobre a tentativa de golpe no Brasil.
Um major expulso do Exército, com sete prisões nas costas, suspeito de repassar armas para quadrilhas, que diz “saber tudo” da morte de Marielle Franco, ajudou na fraude das vacinas e gravou áudio sobre o andamento de um golpe de Estado para o ajudante de ordens do presidente, um tenente coronel da ativa, que estava na antessala do gabinete presidencial.
Cacá Diegues* - Bela noite para voar
O Globo
‘Sou a favor de total liberdade de
imprensa. A verdade, mesmo sendo má, deve ser escrita’, disse marechal Lott
A pretexto de longa entrevista com o
marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, morto em maio de 1984, com 89 anos de
idade, entrevista que realizou em duas oportunidades, em 1977 e 1978, o
historiador e jornalista Pedro Rogério Moreira nos fornece elementos
importantes para análise comparativa do que foram as lutas políticas do período
JK, até a assemelhada tentativa de golpe da direita contra Lula, em 8 de
janeiro de 2023.
A primeira parte de seu livro, dedicada às
duas entrevistas com Lott, se organiza em torno do que o marechal lhe
confidenciou. Pedro Rogério nos informa que só decidiu publicá-la no livro
“Lott, a espada democrática” depois das “assombrosas cenas de vandalismo
ocorridas em Brasília” ao longo do 8 de janeiro.
O marechal Lott conta a Pedro Rogério suas lembranças do Exército e os militares com os quais conviveu nesse período, das cartas falsas atribuídas a Arthur Bernardes (as fake news da época) aos movimentos de Getúlio Vargas, chegando aos irmãos Geisel, Ernesto e Orlando, dos quais o primeiro se tornou presidente da República durante o regime militar vigente no país a partir de 1964.
Cristovam Buarque* - A Taxa Lula
Blog do Noblat / Metrópoles
0,5% sobre as transações financeiras
internacionais, criando um Fundo a ser administrado pelas Nações Unidas, para
atender aos mais carentes
Há 50 anos, o economista James Tobin lançou
a ideia de uma taxa em 0,5% sobre as transações financeiras internacionais,
criando um Fundo a ser administrado pelas Nações Unidas, para atender
populações carentes. A ideia se espalhou com o nome de Taxa Tobin, mas não
avançou, ficou como uma Ideia Tobin. Porque acadêmica, sem articulação política
por líder com estrutura mundial; também por não definir como os recursos seriam
aplicados; e porque naquela época ainda havia crença que o crescimento
econômico bastaria: espalharia seus resultados, e a pobreza desapareceria.
Cinquenta anos depois, estes três impedimentos desapareceram: cresceu a consciência mundial da necessidade de cuidar dos pobres do mundo, dispõe-se da sugestão de Bolsa Família Internacional para canalizar os recursos, e Lula pode ser o líder político para articular a adoção da Taxa Tobin como uma ferramenta na construção da paz social, atendendo bilhões de seres humanos que vivem na pobreza.
O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões
Combate ao crime exige consistência do poder público
O Globo
Incentivo à produtividade policial e adoção
de metas reduziram índices de violência em 11 estados, revela estudo
Com 47.503 assassinatos em 2021 — o
equivalente à população de Campos do Jordão (SP) — e 22,3 mortes por 100 mil
habitantes, o Brasil tem enfrentado um desafio permanente para baixar os
índices de criminalidade, independentemente dos governos que se sucedem em
Brasília, nos estados e municípios. Para isso, uma contribuição inestimável foi
dada pelo estudo do Instituto Sou da Paz mostrando que pelo menos 11
unidades da Federação reduziram seus índices de violência por meio de boas
práticas, como a implementação de programas com metas e
incentivo à produtividade da polícia.
Um dos exemplos citados é o Espírito Santo, que se propôs a reduzir anualmente em 3,5% o número de homicídios. Entre as medidas adotadas, mostrou reportagem do GLOBO, está uma bonificação aos policiais por apreensão de arma de fogo. O resultado foi eloquente: os homicídios dolosos caíram de 41,7 por 100 mil habitantes em 2011, quando foi implantado o projeto, para 30,1 em 2020.