segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Fernando Gabeira O diabo na rua no meio da campanha

O Globo

O debate religioso, para além do consenso sobre a liberdade de credo, só interessa às pessoas que querem nos jogar num mundo pré-moderno

A imprensa fala de uma guerra santa, movida pela campanha de Bolsonaro. Isso interessa a ele, que vê guerra em todos os lugares, possivelmente porque a vive dentro de si próprio. Além do mais, não tem nada de santa: apenas uma tática para assustar as pessoas.

Por isso que o demônio ganhou tanto peso no discurso oficial; ele é apontado aqui e ali, como se fosse um atributo da oposição.

O diabo é um dos grandes temas do monumental “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. Mas aparece com tantas nuances na cabeça do jagunço Riobaldo que alguns intérpretes afirmam que o escritor usa o diabo para descrever a visão do mundo da personagem: um mundo de coisas impermanentes, transitórias, sem existência autônoma. Para alguns, o budismo no sertão de Minas.

O diabo existe ou não existe? Riobaldo já nos primeiros parágrafos fala de um bezerro com cara de cachorro que ria como uma pessoa. Foi morto porque era diferente.

Mas é pela sabedoria de um compadre Quelemém que ele chega à conclusão de que o diabo “vige dentro do homem, nos crespos do homem — ou é o homem arruinado ou o homem ao avesso. Solto por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum”.

Demétrio Magnoli - Liberalismo sem democracia

O Globo

O núcleo principal do empresariado está dizendo que não se reconhece no bolsonarismo — no culto ao autoritarismo e nos ataques à democracia conduzidos pela extrema direita

 ‘É natural que a Fiesp assine um manifesto em defesa da democracia, já que não existe liberalismo, economia de mercado ou propriedade privada, valores tão caros à entidade e ao setor industrial, sem que exista segurança jurídica, cujo pilar essencial é a democracia e o Estado de Direito.’

Foi assim que Josué Gomes da Silva, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, justificou o manifesto empresarial pela democracia. O gesto é positivo. Mas a justificativa contém um erro conceitual: o liberalismo não precisa da democracia. Nessa disjuntiva encontra-se a raiz da adesão de tantos empresários ao bolsonarismo.

O liberalismo tomou de assalto o Ocidente no século XIX, antes do advento das democracias contemporâneas. Os princípios liberais clássicos — os direitos individuais, as liberdades civis e políticas, o secularismo, o livre mercado — estabeleceram-se em regimes políticos aristocráticos ou oligárquicos. A democracia (o governo da maioria) chegou depois.

Democracia, tal como entendida hoje, supõe o direito universal de voto, algo que só se difundiu ao longo do século XX. Os sistemas pioneiros de governo liberais baseavam-se no consentimento de uma minoria que gozava o privilégio de plenos direitos políticos. Massas de pobres eram excluídas do voto por muralhas ligadas à propriedade ou à renda. O primeiro país a instituir o sufrágio feminino foi a Noruega — em 1913.

O rótulo democracia liberal indica uma ruptura e uma adaptação. O liberalismo sofreu uma revolução interna para acomodar-se ao advento da democracia de massas. Nesse passo, tornou-se menos “puro” na esfera econômica, pois teve de admitir as intervenções estatais destinadas a combater a pobreza extrema e as mais clamorosas desigualdades sociais.

Marcus André Melo* - Renovação na Câmara?

Folha de S. Paulo

Por que a renovação será baixa na Câmara dos Deputados?

Uma percentagem inédita (87%) dos atuais deputados federais está buscando a reeleição; 1% a mais do que em 2018, quando 444 deputados fizeram o mesmo (86%). Desse grupo, 56,5% foram reeleitos; o menor percentual desde 1986. A taxa de reeleição deverá manter a tendência vigente desde 1982: os incumbentes levando vantagem. O bônus médio do incumbente (estimado em 53%) acentuava-se a cada eleição, até a quebra do padrão nas últimas eleições.

Eis o paradoxo: à medida que dobrava a participação nas eleições entre 1970 e 2000 (passando de 40% a quase 80% da população acima de 18 anos), as vantagens dos titulares crescia sem cessar até 2014. E isso se manifestava de várias formas, inclusive na percentagem de votos dos eleitos relativos aos não eleitos dentro dos partidos (que pula de 4,5% para 8,5%). Os dados são de pesquisa realizada por Dani Hidalgo e Renato Lima (2016).

Celso Rocha de Barros - Qual o prazo de Bolsonaro?

Folha de S. Paulo

A eleição se aproxima, e o centrão não banca perdedor

As pesquisas da semana passada frustraram o Palácio do Planalto. Os bolsonaristas esperavam uma diminuição substancial da distância entre Bolsonaro e Lula quando o Auxílio Brasil fosse pago. O candidato fascista conseguiu subir em alguns segmentos, mas, no agregado, não tirou votos de Lula. A frustração dos bolsonaristas nas redes sociais era evidente.

É perfeitamente possível que essa situação mude. O Auxílio Brasil, por exemplo, pode demorar para fazer efeito.

Os números da semana passada sugerem que os eleitores compreenderam o caráter eleitoreiro do Auxílio: todo mundo viu que Bolsonaro só lembrou que os pobres existiam quando faltavam três meses para a eleição, todo mundo sabe que o auxílio só é garantido por lei até dezembro, e o eleitorado, por experiência, sabe que Lula não cortará o auxílio se vencer a eleição.

Ana Cristina Rosa - Cotas sim, mas isso não basta

Folha de S. Paulo

Gênero e raça não são garantias de representatividade de uma coletividade

Era de se esperar que as mudanças nas regras de distribuição do fundo eleitoral e do fundo partidário, além das crescentes articulações dos movimentos sociais negros pela ocupação de espaços de poder, resultassem numa ampliação da participação de mulheres e de pretos e pardos entre os candidatos ao pleito de 2022.

A questão agora é saber quantas dessas pessoas estão realmente dispostas e aptas a trabalhar por pautas de interesse das mulheres e da negritude e quantas estão simplesmente cumprindo tabela, ou melhor, preenchendo cota.

Lygia Maria - O tabu das drogas

Folha de S. Paulo

Mudanças de Freixo mostram que sociedade é incapaz de falar sobre legalização

O deputado Marcelo Freixo, candidato ao governo do Rio de Janeiro, disse em entrevista que não defende mais a legalização das drogas, nem mesmo da maconha. Freixo era uma das principais forças políticas a apoiar essa bandeira no país, mas, pelo visto, a disputa pelo governo o deixou mais pragmático.

Óbvio, como sabemos, é impossível ser eleito para o Executivo no Brasil defendendo a legalização das drogas ou se dizendo ateu. E as duas questões estão de mãos dadas, já que a principal motivação contra a legalização é moral e religiosa. Em recente pesquisa do Datafolha, 83% dos entrevistados acham que as drogas devem ser proibidas e 79% acham que acreditar em Deus torna as pessoas melhores.

Carlos Pereira* A armadilha do mal maior

O Estado de S. Paulo

Fazer vista grossa a comportamentos desviantes subverte a democracia

Na semana passada, o laureado escritor, filósofo e neurocientista norteamericano, Sam Harris, surpreendeu o mundo quando declarou ao podcast Triggernometry, com honestidade intelectual incomum, que “Hunter Biden poderia literalmente ter cadáveres de crianças em seu porão que não se importaria.”

Harris fez essa declaração para minimizar os supostos esquemas de corrupção na Ucrânia atribuídos ao filho do presidente dos EUA, Joe Biden, “em comparação com a corrupção com a qual sabemos que Donald Trump está envolvido”. Harris ainda argumentou que até uma conspiração da esquerda americana para que o laptop do filho do presidente Biden não fosse investigado seria justificada para evitar a reeleição de Trump, interpretada por ele como um mal muito maior.

Como se fosse possível subverter a democracia para poder salvá-la.

Henrique Meirelles * - O preço de um Banco Central solitário

O Estado de S. Paulo

Recentes medidas que ampliaram os gastos públicos devem se tornar despesas constantes

Em um evento na semana passada, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, tocou no ponto importante da incerteza sobre a política fiscal de 2023. As recentes medidas que ampliaram o gasto público com objetivos eleitorais devem se tornar permanentes. Campos Neto repetiu a dúvida que estava na última ata do Copom: sendo permanentes, como estes novos gastos serão financiados? Não há resposta.

A política fiscal não está entre as atribuições do presidente do Banco Central, mas afeta diretamente o trabalho da autoridade monetária. O controle dos juros busca reduzir a quantidade de dinheiro em circulação para conter a inflação. Quanto mais responsável é a política fiscal, menor a taxa de juros necessária para atingir o objetivo. Se ocorre o contrário, e o Banco Central se vê sozinho no combate à inflação, maiores são os juros.

Em condições como as atuais, em que o Banco Central busca recolocar a inflação na trajetória da meta, seria essencial uma política fiscal responsável. Infelizmente, não é o que temos. O governo federal estourou o teto de gastos nos últimos dois anos e não há sinal de se – ou como – o cumprirá em 2023. O Banco Central atua sozinho.

Bruno Carazza* - Sinais de um Congresso ainda mais conservador

Valor Econômico

Direita lança mais candidatos, turbinados pelo Orçamento secreto

A disputa eleitoral esquenta a cada dia, e na sexta-feira ela entra na reta final, com a propaganda eleitoral na TV e no rádio. Embora todas as atenções estejam concentradas na campanha presidencial, é bom ficar de olho na briga pelas cadeiras do Congresso, pois ela definirá as condições de governabilidade do próximo ocupante do Palácio do Planalto.

Há muitos dados reveladores na relação de candidatos à Câmara dos Deputados neste ano. O número de postulantes cresceu quase 19,6% em relação a 2018, situação previsível dada a mudança nos incentivos provocada por inovações na legislação eleitoral ocorridas nos últimos anos.

De um lado, as coligações foram proibidas nas eleições proporcionais (deputados federais, estaduais e vereadores), o que impede que partidos se associem para pegar carona nas votações uns dos outros.

Além disso, ter um bom desempenho nas eleições para a Câmara tornou-se vital para os partidos pequenos, pois a cláusula de desempenho exige um percentual mínimo de votos para ter acesso, nos próximos quatro anos, aos R$ 4 bilhões do fundo partidário e ao horário eleitoral “gratuito” (2% dos votos válidos em todo o Brasil para a Câmara dos Deputados, ou 11 deputados federais eleitos, tudo isso em pelo menos nove Estados).

Sergio Lamucci - Os efeitos e os limites do pacote de bondades

Valor Econômico

Por enquanto, a estratégia de Bolsonaro de buscar a redução a qualquer custo da inflação e de dar mais dinheiro a uma parcela expressiva da população não levou a uma mudança do quadro eleitoral

A 42 dias do primeiro turno, os fatores mais decisivos para o resultado das eleições serão o impacto sobre os eleitores dos números mais favoráveis da inflação e especialmente o efeito do aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600. Por enquanto, a estratégia do presidente Jair Bolsonaro de buscar a redução a qualquer custo da inflação e de dar mais dinheiro a uma parcela expressiva da população, mesmo que desrespeitando regras fiscais e eleitorais, não levou a uma mudança significativa do quadro eleitoral. Na semana passada, pesquisas do Datafolha e do Ipec mostraram que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva segue com uma folga considerável na liderança da disputa, embora ela tenha se estreitado.

A percepção sobre a situação da economia, enfim, será o ponto mais importante para o resultado da eleição, como dizem os analistas políticos há muitos meses. Outro fator, porém, tem ganhado força nas últimas semanas - a questão religiosa. É justamente entre os evangélicos que Bolsonaro tem conseguido melhorar o seu desempenho nas pesquisas. Em maio, o presidente vencia Lula por 39% a 36% nesse grupo, segundo o Datafolha. No levantamento da semana passada, Bolsonaro tinha 49% das intenções de voto do segmento, enquanto o petista tinha 32%.

Na economia, a inflação ao consumidor acima de dois dígitos no acumulado em 12 meses desde setembro de 2021 é o fator que derrubou a popularidade do Bolsonaro. O dano maior ocorre entre os mais pobres, devido à escalada dos preços de alimentos, que sobem mais de 17% em 12 meses. A disparada das cotações de combustíveis e energia elétrica também puxou a inflação para cima, e foi aí que o governo agiu.

Gustavo Loyola* - O remédio na economia e no meio ambiente

O Globo

Com a postura negacionista de seu governo, o Brasil joga fora chance ímpar de liderar a agenda internacional

Anos eleitorais já são intensos em debates econômicos e sociais por si mesmos e, mais recentemente, o meio ambiente também ganhou protagonismo. Mas, agora no Brasil, vivemos um período ainda mais desafiador porque foi necessário incluir a defesa da democracia nessa discussão, algo que se pensava superado desde o final da década de 1980.

Proteger a democracia significa defendê-la de todas as ameaças ao sistema que têm sido ventiladas nas mídias sociais com o incentivo e o consentimento do presidente da República, em meio a desemprego e inflação elevados, atividade econômica ainda sem recuperação mais consistente e elevados níveis de desmatamento e emissões. A democracia é fundamental, entre outras razões, porque permite o livre debate de ideias e conduz a consensos e soluções sustentáveis no longo prazo. Como teria dito Churchill, a democracia é o pior regime político, com exceção de todos os demais.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Atentar contra a democracia é crime

O Estado de S. Paulo

Neste 7 de Setembro, há uma novidade importante. Aprovada no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito está vigente

Diante da informação, revelada pelo jornal Metrópoles, de que empresários bolsonaristas se articulam para, em caso de derrota nas urnas, impedir a posse de quem o povo eleger, é preciso lembrar que, nestas eleições, há uma novidade importante. Aprovada pelo Congresso no ano passado, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (Lei 14.197/2021) está vigente. O País conta agora com uma nova proteção jurídica para fazer respeitar o regime democrático, o que pode e deve servir de alerta a todos aqueles que tentam burlar as regras do jogo democrático, bem como às autoridades competentes. Polícia e Ministério Público têm o dever de proteger o Estado Democrático de Direito.

Além de revogar a antiga Lei de Segurança Nacional (LSN, Lei 7.170/1983), a Lei 14.197/2021 criou no Código Penal uma seção específica para os tipos penais contra o Estado Democrático de Direito, incluindo crimes (i) contra a soberania nacional, (ii) contra as instituições democráticas, (iii) contra o funcionamento das instituições democráticas no processo eleitoral e (iv) contra o funcionamento dos serviços essenciais. Continuam vigentes todos os direitos e garantias fundamentais, como as liberdades de expressão, de opinião e de associação, mas atentar contra a democracia é agora um crime previsto no Código Penal.

Trata-se de importante aperfeiçoamento da legislação penal, cuja finalidade é precisamente proteger os bens essenciais de uma sociedade. Por exemplo, não fazia sentido o Código Penal punir o ato de desacatar um funcionário público e, ao mesmo tempo, deixar impune um atentado contra o regime democrático.

Memória / Crônica | Graziela Melo* - De frente para trás

– 1963 o ano da democracia, comido por 1964 – o ano da ditadura – Uma palavra sobre o Governo Arraes.

O ano de 1963 foi de intensa movimentação política. Logo em janeiro foi o plebiscito que devolveu a João Goulart os poderes do regime presidencialista, anulando, portanto acordo anterior imposto pelos militares como condição para que Jango assumisse. Em Pernambuco, Arraes tomou posse no Governo do Estado, depois de ganhar a eleição para o representante dos usineiros João Cleofas de Oliveira, perdedor pela terceira vez, tendo, por isso ficado conhecido como “João três quedas”.

O Governo de Arraes, em Pernambuco, foi uma grande dor de cabeça para os militares golpistas, usineiros (a casta pernambucana) e correntes da extrema direita que viam em tudo o fantasma do comunismo e a presença nefasta do assim chamado “Ouro de Moscou”. Com relação a esta descabida propaganda da direita, alguém do PCB fez um sambinha irônico:

Lá no xilindró

Seu delegado diz

“É ouro de Moscou”.

Eu não conheço

Este tal de “seu Moscou”

Mas pelo jeito

Qui tô vendo

Deve sê trabaiadô

E de valô...

Poesia | João Cabral de Melo Neto - O cão sem plumas

 

Música | Moacyr Luz & Samba do Trabalhador - É lenha