De onde vinha a influência de Rosemary de Noronha, a mulher que se
apresentava como "namorada" de Lula – e, com isso, nomeada afilhados,
interferia em órgãos do governo e recebia recompensas
Diego Escosteguy e Alberto Bombig
Uma triste passagem de bastão marcou a política brasileira na semana
passada: saiu de cena um escândalo político; entrou outro. De um lado, o
Supremo Tribunal Federal fez história ao definir as penas dos condenados do
mensalão. Treze dos réus, incluindo o ex-ministro-chefe da Casa Civil José
Dirceu, vão para a cadeia em tempo integral - uma rara ocasião na história
brasileira em que poderosos pagarão por seus crimes. De outro lado, uma nova
personagem irrompeu na cena política nacional: Rosemary Nó-voa de Noronha, ou
Rose. Falando em nome de um padrinho político poderoso, o ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, Rose trabalhou pela nomeação de vários afilhados no
governo federal. Ao se dirigir a diretores de empresas estatais ou órgãos do
governo, Rose frequentemente se apresentava como "namorada" do
ex-presidente. Um dos afilhados de Rose, Paulo Vieira, foi preso pela Polícia
Federal (PF) na Operação Porto Seguro, acusado de chefiar uma quadrilha que
cobrava propinas de empresários, em troca de pareceres jurídicos favoráveis em
Brasília - fosse no governo, nas agências reguladoras ou no Tribunal de Contas
da União. Rubens Vieira, diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac),
irmão de Paulo e outro dos afilhados de Rose, também foi preso. Tão logo o caso
veio a público, na sexta-feira dia 23 de novembro, Rose foi exonerada do cargo
que exercia, como chefe do gabinete da Presidência em São Paulo.
Como foi possível que Rose, uma simples secretária do PT, acumulasse tanto
poder e prestígio, a ponto de influenciar nos rumos do governo federal - e
causar tamanho salseiro? "A investigação demonstra que o poder de Rose
advinha da relação dela com Lula. Não há elementos, entretanto, de que o
ex-presidente soubesse disso ou tivesse se beneficiado diretamente do esquema",
afirma uma das principais autoridades que cuidaram do caso. "Lula cometeu
o erro de deixar que essa secretária se valesse da íntima relação de
ambos", afirma um amigo do casal Lula e Dona Marisa. "Deveria ter
cortado esse caso há muito tempo." Os autos do processo, de que Época
obteve uma cópia integral, e entrevistas com os principais envolvidos revelam
que:
1) Lula, ainda presidente da República, prestou - mesmo que não soubesse
disso -três favores à quadrilha. Por influência de Rose, indicou os irmãos
Paulo Vieira e Rubens Vieira para a direção, respectivamente, da ANA e da Anac.
Lula, chamado em e-mails de "chefão" ou "PR" por Rose,
também deu um emprego no governo para a filha dela, Mirelle;
2) A quadrilha espalhou-se pelo coração do poder - e passou a fazer
negócios. Os irmãos Vieira, aliados a altos advogados do PT que ocupavam cargos
no governo, passaram a vender facilidades a empresários que dependiam de
canetadas de Brasília;
3) Rose, gabando-se de sua relação com Lula, tinha influência no Banco do
Brasil. Trabalhou pela escolha do atual presidente do BB, Aldemir Bendine,
indicou diretores (um deles a pedido de Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT
condenado no caso do mensalão), intermediou encontros de empresários com
dirigentes do BB e obteve um contrato para a empresa de construção de seu
marido;
4) Despesas do procurador federal Mauro Hauschild, do PT, ex-chefe de
gabinete do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli e, depois,
presidente do INSS, foram pagas pela quadrilha. É uma situação similar à do
recém-demitido número dois da Advocacia-Geral da União (AGU), José Weber
Holanda - que, segundo a PF, recebeu propina;
5) A PF, mesmo diante das evidências de que Rose era uma das líderes da
quadrilha, optou por não investigá-la. Não pediu o monitoramento das
comunicações de Rose e não quis detonar a Operação Porto Seguro no começo de
setembro, quando a Justiça autorizara as batidas e prisões. Esperou até o fim
das eleições municipais.
De acordo com o relato feito a Época por um alto executivo que trabalhou na
Companhia das Docas do Porto de Santos (Codesp), Rose evocava sua relação com
Lula para fazer indicações e interferir, segundo seus interesses, nos negócios
da empresa. Nessas ocasiões, diz o executivo, Rose se apresentava como
"namorada do Lula". "Ela jogava com essa informação, jogava com
a fama", diz ele.
Uma história contada por ele ilustra o estilo de atuação de Rose. Em 2005,
uma funcionária da Guarda Portuária passou a dizer na Codesp que fora indicada
para o cargo porque era amiga da "namorada do Lula". O caso chegou ao
conhecimento da direção do Porto de Santos. Um diretor repreendeu a funcionária
e chegou a abrir uma sindicância para apurar o fato - e ela foi demitida. O
executivo conta que, contrariada, Rose ligou para executivos para cobrar
explicações e reafirmou o que a amiga havia dito: "Eu sou a namorada do
Lula". Os executivos acharam que ela blefava. "No começo, a gente não
sabia que ela era tão forte", diz um deles. No Porto, ela foi responsável
pelas indicações de Paulo Vieira e do petista Danilo de Camargo, ligado ao
grupo do ex-ministro José Dirceu no PT. Os dois passaram a atuar em parceria
com Valdemar Costa Neto, o deputado pelo PR condenado à prisão por corrupção
passiva e lavagem de dinheiro no caso do mensalão, responsável por indicar o
presidente da Codesp.
Um dos interesses desse grupo era perdoar uma parcela da dívida da empresa
transportadora Libra com a Codesp. O valor da dívida era de R$ 120 milhões. O
acordo foi fechado no Ministério dos Transportes, então controlado pelo grupo
ligado a Costa Neto, e contou com o aval de Camargo, presidente do Conselho de
Administração. O PT de Santos, liderado pela ex-prefeita Telma de Souza, ficou
revoltado com os termos do acordo e resolveu cobrar explicações de Camargo.
Novamente Rose entrou em ação para defender os interesses da Libra, do PR de
Costa Neto e de Paulo Vieira. Na ocasião, diz o alto executivo, ela evocou
novamente o nome de Lula. Nos telefonemas que dava aos petistas contrários ao
perdão da dívida, afirma ele, Rosemary sempre mencionava o então presidente.
Rose tem 57 anos, começou jovem na militância política e sua turma, dentro
do PT, é uma turma das antigas. Seus principais interlocutores no partido, além
de Lula, são Paulo Frateschi, secretário de organização do PT, e os já
mencionados Camargo e Dirceu. Rose trabalhou como assessora de Dirceu nos anos
1990. Acompanhou de perto sua ascensão à presidência do PT. No total, foram 12
anos de parceria. Foi no período em que trabalhava com Dirceu que Rose conheceu
Lula. Em fevereiro de 2003, com Lula no Planalto, Rose se tornou assessora
especial do gabinete regional da Presidência em São Paulo. Em 2005, tornou-se
chefe da unidade. Seu poder no partido foi crescendo. Ela fazia triagem
informal dos currículos de candidatos a cargos do segundo escalão. Nessa época,
começou a exercer influência também no Banco do Brasil. Rose trabalhou, de
acordo com políticos e executivos do setor bancário, pela indicação de Aldemir
Bendine para a presidência do BB.
A proximidade com Bendine permitiu que Rose, em 2009, conseguisse um emprego
para José Cláudio Noronha, seu ex-marido. Noronha ganhou a vaga de suplente no
Conselho de Administração da Aliança Brasil Seguros, atual Brasilprev. De
acordo com as investigações da PF, Paulo Vieira forjou um diploma de curso
superior para que Noronha cumprisse uma exigência da Brasilprev e assumisse a
vaga. Em agosto do ano passado, o mandato de Noronha foi renovado.
Rose era também próxima de Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT condenado a
oito anos e 11 meses de prisão no caso do mensalão. Os dois costumavam tomar
café no Conjunto Nacional, centro comercial próximo ao prédio do gabinete da
Presidência. A pedido de Delúbio, segundo executivos do BB, ela usou sua
proximidade com Bendine para conseguir a nomeação de Édson Bíindchen para a
superintendência do BB em Goiás, em setembro passado.
Rose circulava tão bem no BB que pairava acima das disputas fratricidas
entre seus diretores. Era próxima também de Ricardo Flores, ex-vice-presidente
de crédito e ex-presidente da Previ, o bilionário fundo de pensão dos
funcionários do banco. Flores e Bendine travaram embates corporativos
constantes e são considerados inimigos. Isso nunca impediu Rose de se sentir
segura para pedir favores a ambos. Em 25 de março de 2009, Rose pediu a Flores
que examinasse um pedido de empréstimo de cerca de R$ 48 milhões da empresa
Formitex. Era um desejo de Paulo Vieira - na época, ele ainda não era diretor
da ANA. "Gostaria que encaminhasse esses dados técnicos ao Dr. Ricardo
(Flores) e, se possível, conseguisse uma agenda para o Dr. César
Floriano", diz Paulo em e-mail para Rose que consta do inquérito policial.
Floriano era um dos empresários que bancavam a quadrilha. Em 17 de agosto de
2009, Rose encaminha outro e-mail a Paulo em que pergunta se "aquele
assunto do Flores foi resolvido". Poucos minutos depois, Paulo responde:
"As coisas com o Flores estão caminhando bem, ele tem sido muito legal e
parece que vamos avançar bastante".
De acordo com a investigação da PF, além do emprego para o ex-marido, Rose
usou seus contatos no BB para ajudar o atual, João Vasconcelos. Documentos
apreendidos pela polícia na casa de Rose, em São Paulo, mostram que a
construtora de Vasconcelos, a New Talent, obteve um contrato de R$ 1,1 milhão -
sem licitação - com a Cobra Tecnologia, subsidiária do BB. Tratava-se de uma
obra de adequação e reforma do novo centro de impressão da empresa em São
Paulo. Mais uma vez, Rose recorreu a Paulo Vieira para forjar documentos. A
Associação Educacional e Cultural Nossa Senhora Aparecida, mantenedora da
faculdade de propriedade de Vieira em Cruzeiro, São Paulo, emitiu um falso
atestado de capacidade técnica para a New Talent conseguir o contrato com a
Cobra. Em maio de 2010, funcionários da Cobra encaminharam a Vasconcelos o
contrato com a New Talent.
Rose queria mais. Noutras mensagens interceptadas pela polícia, em maio
deste ano, ela se mostrou preocupada com a situação financeira da New Talent.
Queixou-se de que Paulo não conseguia contratos para a empresa. Paulo responde
que fará "das tripas coração" para conseguir. Diz que só poderá
encaminhar o pedido "após os contratos de concessão, que ainda não foram
assinados, tudo isso deve rolar no segundo semestre". Os investigadores
suspeitam que Rose e Paulo discutiram possíveis contratos da New Talent com a
empresa que venceu a licitação para administrar o Aeroporto de Viracopos, em
Campinas. Na seqüência, Rose diz que Campinas não interessa "por ser
longe", e completa: "Gostaria mesmo é de São Paulo" - uma
referência à concessão do aeroporto de Guarulhos.
As pretensões só pareciam alcançáveis porque, usando o nome de Lula, Rose
conseguiu colocar afilhados em cargos importantes no Estado brasileiro. Em
janeiro de 2009, Paulo Vieira e Rubens Vieira começaram a articulação para ser
nomeados na ANA e na Anac. Rubens escreveu a Rose no dia 20: "O presidente
(Lula) indica e o Senado aprova. Eu preencho todos os requisitos para o
cargo". Rose respondeu no dia seguinte pela manhã. "Oi Rubens, vou
tentar falar com o PR na próxima terça-feira na sua vinda a São Paulo. Me envie
seu currículo atualizado e os artigos que o Paulo falou. Se você estiver aqui
em SP, posso te colocar no evento de terça-feira à tarde. Pelo menos vê se
cumprimenta só para ele lembrar de vc, aí eu ataco. Bjokas. Rosemary."
Duas semanas depois, Paulo cuidava de duas indicações simultâneas: a do
irmão, para a Anac, e sua própria, para a ANA. Em e-mail enviado no dia 25 de
março, Paulo disse a Rose que um pedido dela a JD (de acordo com os
investigadores, sigla para José Dirceu), "tratando a questão como de
interesse seu", ganharia mais força. Entre os dias 28 e 29 de abril, os
senadores Gim Argello (PTB-DF), Renan Calheiros (PMDB-AL) e o deputado Sandro
Mabel (PR-GO) enviaram cartas ao Palácio do Planalto para reforçar a indicação
de Paulo para a ANA. Os destinatários eram os então ministros Dilma Rousseff
(Casa Civil) e José Múcio Monteiro (Relações Institucionais). Em 3 de agosto,
Paulo cobrou Rose sobre a conversa com "JD". No dia seguinte, Rose
disse que se encontraria com "JD". No dia 17 de agosto, ela disse a
Paulo que estava "no pé do meu chefe sobre o seu caso". O
"chefe" é Lula. No dia 9 de dezembro de 2009, com a assinatura do então
presidente Lula, a mensagem com a indicação de Paulo Vieira para a ANA seguiu
para o Senado.
A batalha pela nomeação de Paulo Vieira passou a envolver, a partir daí,
petistas lotados na AGU. Um deles era o gaúcho Mauro Hauschild - até outubro
passado, presidente do INSS, demitido a pretexto de ter deixado o trabalho de
lado para fazer campanha eleitoral no Rio Grande do Sul. Em 2009, Hauschild era
chefe de gabinete do hoje ministro do STF Dias Toffoli, o advogado petista que
antecedeu Luís Adams na chefia da AGU. Hauschild enviou um emissário da AGU ao
Senado para defender, diante do senador José Agripino Maia, a candidatura de
Paulo a diretor da ANA. Usou o nome de Toffoli na aproximação. Agripino, porém,
disse que votaria contra a indicação. Ela foi rejeitada em plenário em 16 de
dezembro de 2009. Após a derrota, o senador Magno Malta (PR-ES) disse no
plenário que Paulo perdera "não porque não é boa gente, nem
preparado". "Ele é preparado, só que houve uma campanha porque ele
foi colocado pelo presidente da República", afirmou Malta. No dia 18 de
dezembro, Rose enviou um e-mail a Paulo e pediu a ele que juntasse tudo que
saíra na imprensa sobre ele e a enviasse. "Quero MOSTRAR (assim, em letras
garrafais) para o PR", afirmou. Em abril de 2010, Malta apresentou uma
"questão de ordem". O presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP)
acatou seus argumentos. Uma nova votação foi realizada, e Paulo foi aprovado.
Sua nomeação foi publicada no Diário Oficial da União no dia 6 de maio de 2010.
No dia 25 de maio, a mulher de Mauro Hauschild, Regiane, servidora da ANA, foi
nomeada assessora especial de Paulo Vieira.
Além de, segundo as investigações, fazer tráfico de influência, Rose reinava
sobre o escritório paulistano da Presidência. Conhecida por falar alto e muito,
abusava de frases como "eu mando aqui" ou "vocês vão me
obedecer". Era tolerada por todos. Mas sua maneira de agir incomodava. No
início do governo Dilma, ministros tiveram dificuldades em usar carros oficiais
em São Paulo, porque Rose não autorizava. Recentemente, ela tentou barrar a entrada
do assessor de um ministro no gabinete da Presidência. Recuou quando o ministro
ameaçou telefonar para Dilma.
Como a primeira-dama, Marisa Letícia, Dilma não gostava muito de Rose. Rose
sabia disso e, sempre que Dilma ia ao gabinete paulista, tentava agradá-la
servindo pães de queijo - uma iguaria capaz de amolecer o coração de mineiros
como Dilma. Não adiantou. Assim que as notícias sobre o alcance da Operação
Porto Seguro foram se acumulando, Dilma mandou demitir Rose. Era o final da
manhã do sábado, dia 24. O ex-presidente Lula soube da demissão na hora do
almoço, depois de chegar de uma longa viagem à índia, por um telefonema do
ministro Gilberto Carvalho.
O ex-ministro José Dirceu nega qualquer envolvimento com o esquema.
"Gratuitamente. Irresponsavelmente, como das outras vezes. As
investigações ainda estão em curso e meu nome já é escandalosamente noticiado
como relacionado ao caso", disse em nota. "Envolvem meu nome no
noticiário com o maior estardalhaço, mas encerrados a "temporada" e o
sucesso midiático do escândalo, silenciam quanto ao fato de nada ter se provado
contra mim - pelo contrário, as investigações concluíram que não tive o menor
envolvimento com o caso em pauta." Questionado sobre o fato de Rosemary de
Noronha ter se apresentado como "namorada de Lula", Luiz Bueno,
advogado dela, disse: "Se alguém afirmou tal fato, agradecemos sua
identificação para que possamos imediatamente processá-lo por difamação".
O ex-presidente do INSS Hauschild afirmou em nota que a nomeação de sua
mulher para a assessoria de Paulo Vieira se deu por "razões técnicas"
e que "se encontrou poucas vezes" com Rosemary Noronha. Hauschild
afirma que R$ 5.800 recebidos de Paulo Vieira eram de um empréstimo. Disse
ainda que, na semana passada, pediu sua desfiliação do PT.
Por meio de sua assessoria, o presidente do Banco do Brasil, Aldemir
Bendine, afirmou que entre ele e Rose "existiram relações de cordialidade
protocolar". Ele nega que Rose tenha influenciado sua nomeação para a
presidência do banco. Disse, ainda, que a nomeação de José Cláudio Noronha para
a Brasilprev ocorreu por decisão de diretoria colegiada e que o Banco do Brasil
solicitou a substituição dele da suplência do Conselho de Administração da
Brasilprev. O presidente da Brasilprev, Ricardo Flores, afirmou, por meio de
sua assessoria, manter com Rose apenas "contato institucional" e
"não manter relacionamento com Paulo Vieira". Flores disse também não
ter participado de decisão nenhuma sobre a viabilidade de eventuais
empréstimos. Procurado pela reportagem de Época, o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva não respondeu às ligações.