domingo, 31 de agosto de 2008

Ruim com eles, pior sem eles


Nas Entrelinhas :: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

Os partidos nunca conseguiram se consolidar no Brasil por causa da interferência autoritária do Executivo


É senso comum no Brasil atribuir as mazelas da política nacional aos partidos. Agora mesmo, na justificativa da reforma partidária encaminhada ao Congresso, o Palácio do Planalto responsabiliza o sistema partidário pelo fisiologismo e clientelismo que têm contaminado suas relações com o parlamento. Direciona suas baterias aos pequenos partidos, que pretende abater, como se os grandes não tivessem nenhuma responsabilidade pelo ocorre. Não é bem assim. O escândalo do Orçamento, durante o governo Itamar, foi protagonizado pelo PMDB. E o “mensalão”, no primeiro mandato de Lula, uma megatrapalhada do PT. Grandes partidos sobreviveram às crises. São os eixos de sustentação do governo Lula e vão muito bem, obrigado.

Criador e criatura

O Brasil já teve vários sistemas partidários, quase todos resultaram da forte interferência do Estado na vida partidária. A Justiça Eleitoral, ao longo dos anos, ajudou a construir um sistema eleitoral cada vez mais eficiente e democrático. Porém, consolidou a sistemática interferência do estatal na vida dos partidos. Constantes mudanças no sistema partidário, desde a monarquia, fragilizaram os partidos e tornaram suas lideranças mais personalistas.

Os partidos no Brasil surgiram na Independência, com o Partido dos Brasileiros liderado por José Bonifácio e o Partido dos Portugueses, alinhado a D. Pedro I. A divergência era óbvia: um queria consolidar a independência; outro, reunificar o império português. O fato de o Brasil ser uma monarquia fortalecia o projeto de reunificação, contradição que acabou provocando a dissolução da Constituinte de 1823 e, mais tarde, a abdicação de Pedro I, em 1831.

A partir de 1935, inspirados no parlamentarismo inglês, surgiram os partidos Liberal (luzias) e Conservador (saquaremas). Foram às armas a partir de 1842, quando a Revolução Liberal de Tobias de Aguiar, em São Paulo, com apoio do ex-regente Diogo Feijó, foi duramente reprimida. Os dois partidos, porém, protagonizaram a “política de conciliação” do Marquês de Paraná, a partir de 1853. Surgiu assim o modo de fazer política das elites brasileiras, cujo eixo é a aliança entre a União e as oligarquias regionais. O governo Lula não foge a esse espírito.

As oligarquias regionais deram forma, com a República, ao fraudulento sistema eleitoral que vigorou até a Revolução de 30. Os partidos eram regionais, com o nome de republicano. Derrotaram a Campanha Civilista de Rui Barbosa, em 1915; a Reação Republicana de Nilo Peçanha, em 1921; e a Aliança Liberal, em 1929, quando o mineiro Antônio Carlos de Andrade rompeu com presidente Washington Luiz por causa da candidatura do paulista Júlio Prestes.

Com a revolução de 30, liderada por Getúlio Vargas, os partidos republicanos desapareceram. Surgiram diversos partidos regionais, programáticos ou corporativos na Constituinte de 1934, quase todos inexpressivos. As novidades eram a Aliança Libertadora Nacional de Luiz Carlos Prestes, a Ação Integralista de Plínio Salgado e a União Democrática Nacional de Armando Sales, todos contra Vargas, que implantou o Estado Novo em 1937. O que houve depois é mais conhecido.

Cinismo oficial

Na Constituinte de 1946, surgiram os partidos que protagonizaram a crise de 1964:PSD, UDN, PTB, PSP, PR, PSB, PDC, PCB. Todos foram extintos após o golpe militar. Por ato institucional, foram criados a Arena e o MDB, em 1965. Os dois partidos foram obrigados a mudar de nome pelos militares em 1989 (PDS e PMDB, respectivamente) e surgiram o PDT, o PT e o PTB. O presidente José Sarney, em 1985, legalizou os partidos comunistas e liberou a formação de partidos para a Constituinte de 1988. Hoje, há cerca de 30 partidos em atividade no país.

Os partidos nunca conseguiram se consolidar no Brasil por causa da interferência autoritária do Executivo. Anunciada com o propósito de racionalidade e enxugar o quadro partidário, a reforma proposta pelo presidente Lula não é garantia de que será diferente. Seu objetivo de fundo é continuísta: favorecer a formação de uma nova coligação governista para a sucessão do presidente Lula em 2010. Por isso, a proposta de fidelidade partidária é um primor de cinismo oficial. Estabelece uma proibição e cria quatro regras para o “troca-troca” de partido com data marcada, cujo combustível é o fisiologismo e o clientelismo oficiais.

Polícia de boa vizinhança


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

50 anos de idade, quase todos da fase adulta dedicados à defesa dos direitos humanos, o secretário nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Ricardo Balestreri, vai logo avisando: “Não sou um romântico”.

Faz a ressalva meio na defensiva, a título de introdução à análise sobre as razões pelas quais, na sua visão de estudioso, consultor e agora executivo da área de segurança pública, os governos do Brasil pós-redemocratização não conseguem dar um passo adiante no combate à criminalidade.

São quase que meros espectadores inertes do agravamento da situação. Isso embora a insegurança esteja no topo da lista das preocupações da população e, nem Fernando Henrique Cardoso nem Luiz Inácio da Silva - para citar apenas os dois eleitos e com mandatos em ambiente de normalidade institucional - possam ser acusados de insensibilidade política e social.

Cuidaram da economia como quem amamenta um bebê a inspirar cuidados permanentes. Sabem que, se tivessem dado um jeito pelo menos na contenção da violência, seriam sérios candidatos à consagração unânime.

Se não é alienação, indiferença ou desumanidade, qual é o obstáculo? Nos dois grupos, antagônicos no campo partidário, a dúvida perpassa, mas não produz uma resposta.

Ricardo Balestreri não concorda com uma tentativa de explicação, segundo a qual a geração oriunda da esquerda quer distância de assuntos ligados à repressão. Por motivos óbvios.

O secretário nacional de Segurança acha simplista o raciocínio, embora sustente sua análise a partir de uma premissa relacionada aos procedimentos do governo autoritário. “A ditadura afastou a polícia do povo e a democracia ainda não devolveu.”

E por quê? “Porque nos países premidos pelo senso comum, a discussão fica rasteira, muita gente palpita, poucos entendem e, como a violência causa sofrimento e fadiga, o cidadão cobra com emoção, o poder público procura corresponder também com emocionalismo que, mal conselheiro, não resolve nada.”

Nesse ambiente, aponta o secretário, acaba prevalecendo a lógica da eliminação: trancafiar todo mundo, matar a maioria.

“Prendendo todos conseguiremos, no máximo, aumentar o contingente de doutores no crime e, matando, não resolvemos porque no dia seguinte o bandido é substituído por outro convocado no exército de reserva das organizações de delinqüências, em geral mais jovem e mais cruel. Se matar fosse a solução, o Brasil, com seu enorme índice de letalidade de criminosos, seria o país mais seguro do mundo.”

Portanto, na opinião dele, a primeira tarefa é alterar procedimentos. “A lógica do Estado tem de ser a da racionalidade, do conhecimento, da informação, da repressão qualificada.”

Antes de prosseguir na receita, segundo ele em parte já em execução pelo Ministério da Justiça, Balestreri esclarece uma questão: acha um equívoco falar em poder paralelo do crime. “Isso não existe, assim como não é na favela que mora o crime organizado.”

O poder do crime, hoje, diz, não é paralelo, é “transversal” ao Estado, perpassa todas as instâncias oficiais, “freqüenta os melhores ambientes e, por isso, é tão difícil de combater”.

O secretário remexe na ferida: “Por que no regime militar o Estado conseguia combater quem via como inimigo e hoje não consegue”? Contaminação decorrente de corrupção.

Mas não só e aqui chegamos onde ele localiza o verdadeiro crime organizado. “Nas altas esferas do poder econômico e político. A raiz está em cima. Os delinqüentes, ainda que de porte, são empregados dessa gente que não põe diretamente a mão na lama, mas está à frente de uma indústria poderosa que hoje representa um quarto da economia mundial.”

Então, estamos perdidos, sem solução?

Ricardo Balestreri não confunde dificuldade com rendição. Do povo “de cima” acha que a Polícia Federal (“com todas as imperfeições”) começou a cuidar quando se voltou primordialmente para os crimes de colarinho-branco. Este é um patamar.

No outro, da esfera do dia-a-dia, que chama de “crime ordinário” - o assalto, o estupro, o homicídio, a ação de gangues - a solução por ele sugerida é a reforma das polícias, mas na direção oposta à da tese de aceitação geral sobre a unificação das polícias civil e militar.

“Seria o mesmo que obrigar um casal em desarmonia a viver junto, o risco de se matarem é grande.” Na opinião dele, cada uma das polícias deveria ter autonomia para fazer o trabalho completo de prevenção, investigação e prisão.

“Do jeito como está hoje temos duas meias polícias e não temos nenhuma. A militar trabalha no modelo ultrapassado do radiopatrulhamento em que a polícia passa mas não fica e não está presente quando o cidadão precisa, e a civil é um cartório de ocorrências mortas”, diz o secretário.

Há esperança de mudança em breve?

“Vou defender que o governo Lula não termine sem apresentá-la.”

Quando? “A partir de 2009 seria bom.”

De fato. Basta convencer suas excelências a prestarem atenção em alguma coisa que não seja a sucessão de Lula.

O troco republicano


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

ST. PAUL, Mineápolis. A convenção republicana começa amanhã com as pesquisas já mostrando uma retomada da liderança do candidato democrata, Barack Obama, como é tradição acontecer. A primeira conta a fazer é de que tamanho será a subida do democrata depois de sua convenção. Há dois exemplos célebres no seu partido: o ex-presidente Bill Clinton ganhou 16 pontos percentuais após a convenção em 1992, e Al Gore, em 2000, saiu de uma derrota por sete pontos percentuais para uma vitória de dez pontos sobre George Bush. No primeiro caso, Clinton venceu Bush pai por boa margem e Al Gore foi derrotado por Bush filho no colégio eleitoral numa decisão polêmica, embora tenha vencido no voto popular. São parâmetros que podem servir de base para uma análise do potencial de Barack Obama junto ao eleitorado.

A partir de agora, todos os holofotes estarão voltados para os republicanos, e é a primeira vez em 50 anos que os dois partidos fazem convenções logo em seguida uma da outra. Este detalhe pode fazer com que a dança dos números nas pesquisas eleitorais continue indefinida, com os republicanos neutralizando a dianteira dos democratas após as convenções.

A corrida presidencial está tão apertada que os dois candidatos estão buscando eleitores no campo adversário. O democrata Barack Obama salientou, em seu discurso, em Denver, o pedido de união entre democratas, republicanos e independentes para dar um basta nos oito anos de gestão Bush.

Já a vice de McCain, a governadora do Alasca, Sarah Palin, investiu diretamente no eleitorado feminino democrata, na expectativa de ganhar votos entre os ainda insatisfeitos com a derrota da senadora Hillary Clinton.

Para o cientista politico Silvério Zebral, ligado ao Partido Republicano, o problema na estratégia do partido é que a identificação construída em favor de McCain é do tipo negativa, feita através da "desconstrução" de Obama, baseada não nos temas de campanha, mas nos atributos negativos e incapacidades do candidato democrata.

É uma estratégia que pode ser vencedora, mas Zebral teme que quanto mais a intenção de voto em McCain basear-se sobre uma rejeição do eleitorado ao "homem" Obama, "maior será o desafio de McCain em emocionar positivamente os indecisos e oferecer-lhe razões "positivas" sobre si próprio para levá-los às urnas e atraí-los para o campo conservador".

Há em política uma verdade estabelecida que esta campanha está desmentindo, por enquanto: é mais importante "de quem se fala" ou "do que se fala", do que "o que se fala". "A novidade desta eleição - e o quebra-cabeça que entusiasma os analistas - é que a agenda republicana tem sido o próprio "Barack Obama". E na batalha de imposição de agendas - ao menos até agora - esta "estranha agenda republicana" - Obama, o incapaz, o inadequado, o duvidoso - vem saindo vitoriosa", comenta Silvério Zebral.

Outro analista especialista em campanhas eleitorais, o marqueteiro americano Dick Morris, acha que o candidato republicano John McCain tem alguns desafios pela frente, o principal deles o de convencer o eleitorado de que o seu eventual primeiro mandato não será o terceiro de Bush, como Obama colocou no seu discurso de aceitação.

Para tanto, McCain teria que acentuar seu lado republicano liberal, que o fez ficar contra a tortura aos prisioneiros de guerra e, em outros temas, ter se posicionado junto com os democratas como em projetos de lei de reforma do financiamento de campanha, por ética na política e legislação mais flexível para os imigrantes.

O dilema de McCain é semelhante ao de Obama. Ele venceu as prévias republicanas por ser independente e se distanciar da maioria das críticas que são feitas ao governo Bush, com exceção da guerra no Iraque.

Mas, depois de confirmado candidato, aproximou-se da Casa Branca e teve que fazer concessões à ala mais radical do partido, e a escolha da vice Sarah Palin é um exemplo disso. O democrata Barack Obama, por sua vez, teve que se afastar da imagem de outsider de Washington para conseguir o apoio da cúpula partidária, e a escolha do vice Joe Biden é sintoma disso.

Também teve que aceitar a exigência dos governadores democratas para que se ativesse a questões do dia-a-dia do eleitor médio, em vez de manter a campanha baseada apenas na esperança de mudança.

O segundo desafio que Dick Morris vê diante de McCain é a desconstrução das propostas de Obama de cortar os impostos de 95% das famílias, e estender a todos os americanos um seguro de saúde possível de pagar, além de investir US$150 bilhões para tornar o país independente dos países árabes em material de energia.

O próprio Obama admitiu no discurso de Denver que precisará buscar recursos fazendo uma revisão de programas já existentes que sejam ineficientes, para poder cumprir as promessas sem desequilibrar mais ainda as finanças do país.

Uma conseqüência da nova política de impostos de Obama, que penalizaria os mais ricos para poder cortar os impostos da classe média, seria, segundo os conservadores, o desestímulo ao investimento produtivo, impedindo que uma outra promessa, a de aprofundar o conhecimento científico e tecnológico estratégico, seja realizada.

Ontem mesmo já apareceram análises de institutos independentes dizendo que, mesmo cortando programas ineficientes e fechando brechas na legislação que permitem às empresas pagar menos impostos, o programa de corte de impostos de Obama custará US$130 bilhões por ano, e o máximo que se conseguirá economizar serão US$80 bilhões.

Da arte de comparar


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE
)

Cotejo inevitável: impossível refletir sobre qualquer fenômeno ou fato político em qualquer parte do mundo sem utilizar como referência o grande espetáculo estreado na última segunda em Denver, Colorado, com reprise marcada para a próxima, em Minneapolis, Minnesota.

Uma semana depois do feérico show de disciplina e rigor exibido na Olimpíada de Pequim, o processo democrático americano exibe-se diante da platéia mundial com igual esmero, porém acrescido dos ingredientes da sua cultura em dosagens máximas: sonho, retórica, profissionalismo, civismo, ingenuidade, fervor, música. Os chineses, tão artistas, contentaram-se em oferecer lantejoulas tecnológicas. Os americanos, tão materialistas e supostamente tão decadentes, entregaram grandes quantidades de emoção.

Por uma série de fatores, alguns até casuais, o momento americano ganhou uma dimensão palpitante, prenhe de significados e remissões. Ao aceitar sua indicação como candidato à presidência dos EUA, Barack Obama lembrou Franklin Roosevelt e John Kennedy e foi catapultado para o plano da história. Pode não ganhar a eleição em novembro, mas garantiu o seu lugar na galeria de heróis que construíram o American dream, sonho americano.

Ao longo da jornada das primárias e agora na convenção do Partido Democrata ficou evidente para nós que o carisma de políticos enfezados cuspindo perdigotos para todos os lados é completamente diferente do carisma refinado, penetrante, capaz de atuar nas esferas da razão e do sentimento e nelas permanecer. Carisma é dom e não afetação, independe da maquiagem, gravatas, covinhas no rosto, pode ser potencializado por estrategistas e marqueteiros, mas precisa ser traduzido em energia. Energia capaz de levar seus ouvintes e interlocutores a acreditar que vivem uma situação grandiosa, estelar.

Também no Brasil participamos de uma disputa eleitoral, preliminar é verdade, mas destinada a influir decisivamente na próxima quando será escolhido o sucessor do presidente Lula. Também vivemos um momento especialíssimo, favorecidos por um inédito ciclo de estabilidade e continuidade. Os últimos 15 anos são únicos na história da nossa República, comparados com igual período na vizinha Argentina oferecem um estimulante contraste.

O problema é a nossa incapacidade de enxergar o futuro no presente. Entronizamos o porvir como uma era remota, grandiloqüente – talvez influenciados pelas profecias de Stefan Zweig – sem perceber que o futuro faz-se agora, é hoje.

Convivemos com os pequenos deslizes, aceitamos os ínfimos senões certos de que não terão importância nem influência e passarão despercebidos. Não avaliamos os efeitos da acumulação e da inércia, desconsideramos os efeitos da soma e da multiplicação mesmo quando se trata de microscópicas partículas. A complacência com as pequenas malignidades é capaz de produzir, com incrível rapidez e letalidade, tremendas brechas na estrutura de uma sociedade.

Os EUA saíram da derrota no Vietnã relativamente ilesos, engoliram o orgulho ferido sem avaliar-se, preferiram entregar-se ao pragmatismo. Premiados pela debacle soviética não imaginaram que o retorno do bumerangue seria tão catastrófico. Em apenas oito anos, a vergonhosa vitória eleitoral de George W. Bush, a incompetência na prevenção e combate ao terrorismo, o desapego aos valores morais da democracia e o fundamentalismo religioso converteram a superpotência num império arruinado.

A festa em Denver tem algo de catarse coletiva. We, the People, Nós, o Povo – preâmbulo da Constituição Americana – incorporou-se à proclamação de Obama, “Yes, we can”. “Sim, podemos”. Sempre no plural, carisma é isso.

Num mundo com tantos espelhos é um desperdício não espelhar-se. Aprende-se muito com as comparações, mesmo quando desfavoráveis.

» Alberto Dines é jornalista.

Vagas e vogas da crítica


José Arthur Giannotti
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / + MAIS!

Após a hegemonia de teorias como estruturalismo e marxismo, ciências humanas parecem entrar num período de transição

Daí meu desconforto diante dos que continuam a pensar a história a partir de um único ponto de vista

João Cruz Costa, que ensinou na USP nos anos 1950 e 1960 a fazer filosofia pensando no Brasil, sempre nos alertava sobre as periódicas levas de pensamento que recebíamos de fora, verdadeiros furacões ameaçando afogar as sementes que estavam sendo cultivadas.

Fiel a seu ensino, observo que, desde os meados do século passado, filosofia e ciências humanas sofreram o rolo compressor do estruturalismo, da filosofia analítica, do marxismo althusseriano e gramciano, do habermasianismo. Agora parece que entramos num período de transição, pois não temos hoje paradigmas dominantes.

Sobraram os estudos particulares sem grandes aspirações metodológicas e o esforço dos partidários da Escola de Frankfurt, vaga tendência para a qual todos os gatos são pardos, desde que vistos da óptica da "emancipação". À margem se nota ainda a influência de "letterati", gente de formação em literatura que se projeta no mundo da cultura, principalmente nos interstícios dos meios de comunicação.

Mas não é apenas no nível da recepção das idéias que isso acontece, a história de sua produção também apresenta momentos importantes de solução de continuidade.

De repente, uma idéia, que permanecera à margem do pensamento dominante vem para o centro e satura todo o ambiente. Exemplo clássico foi a aceitação do heliocentrismo. Copérnico, no seu livro de 1543, mostrou que tomar o sol como o centro de nosso universo simplificava enormemente o cálculo dos movimentos dos astros, mas não afirmou a verdade dessa hipótese.

O homem no universo

Mas, quando Galileu introduziu o uso da luneta na observação do céu, isso em 1606, rapidamente os melhores pensadores do século se converteram ao heliocentrismo. É todo um sistema de idéias que desaba, alterando a posição dos seres humanos no universo.

Mas não foi apenas a interpretação de novos fatos que provocou essa comoção, pois só mais tarde é que se armou uma teoria óptica assegurando que a imagem de um satélite de Júpiter não era um efeito produzido pela própria luneta.É toda uma imagem do mundo que se altera.

O caso do marxismo é o inverso, pois ele desaparece como num passe se mágica. No fim do século 19 era aceito por líderes do movimento operário, embora sempre estivesse em competição com o anarquismo. Legitima a Revolução Russa de 1917 e, sob a forma de marxismo-leninismo, passa a dominar os movimentos de esquerda.

Nos anos 1950, Jean-Paul Sartre o coloca como o horizonte intransponível da filosofia contemporânea, e Maurice Merleau-Ponty, filósofo cauteloso, não tem dúvidas ao afirmar que o marxismo não era apenas uma filosofia da história, mas a própria filosofia da história, sendo que renunciar a ele seria cavar o túmulo da razão na história.

Mas nos anos 1980 o marxismo se desmilingüe. Algumas ilhas sobraram no oceano: continua sendo cultivado por alguns historiadores e alguns literatos, mas basta examinar a lista das publicações a partir dessa data para se convencer de que ele ficou à margem das idéias dominantes.

Como explicar esse fenômeno? Obviamente o desmoronamento da União Soviética e das democracias populares o desmoralizou como ideologia legitimando a "ditadura do proletariado", isto é, a fusão do Estado com o partido único, assim como evidenciou a incapacidade de uma economia centralizada para satisfazer as demandas de um capital globalizado tendo por base a tecnologia da informação. Não é à toa que a China pratica hoje um "socialismo de mercado".

Por certo existem outras causas, mas vou me ater apenas ao abandono do princípio que sustentou a afirmação dos dois filósofos franceses: o marxismo confere racionalidade à história porque a emoldura numa única trama.

Em termos grosseiros: o desenvolvimento das forças produtivas teria quebrado o comunismo primitivo, instalado a luta de classes que resultaria na revolução proletária que, por sua vez, emanciparia os seres humanos de suas dilacerações e alienações.

É como se o reino dos fins, que para Kant era o princípio regulador da moral, se encarnasse na própria história, se transformasse num fato revolucionário. Obviamente, estou traçando uma caricatura, pois nem Sartre nem Merleau-Ponty pensaram em termos tão crus. E Marx, como ele mesmo declarava, nunca foi marxista.

Mas a caricatura serve para sublinhar a crença de que as ações humanas poderiam ser enquadradas numa racionalidade dominante, idéia que Sartre continuou a procurar, na "Crítica da Razão Dialética", e da qual Merleau-Ponty começou a duvidar em seus últimos escritos.

Não é possível, dirá ele então, encontrar uma perspectiva capaz de ter uma visão de sobrevôo sobre o mundo e sobre a história. Nem mesmo como princípio regulador, porquanto, sendo o pensamento sempre situado, nunca haverá uma situação que se situe a si mesma. Marx imaginou ser capaz de sair desse impasse, tentando mostrar que a lógica, a racionalidade perversa, do próprio sistema capitalista criaria um ponto de vista teórico e prático, uma crise cujos pólos possuiriam a virtude de encarnar a diferença entre o tudo e o nada.

Com a vitória do tudo, isto é, do proletariado, a totalização da história estaria completa, ou melhor, terminando a pré-história da humanidade e começando a história do ser humano propriamente dita. Mas, quanto mais Marx explicitava a lógica do capital, aprofundava sua crítica da economia política, tanto mais se distanciava desse esquema da totalidade. Nunca conseguiu provar a necessidade racional da crise.

Sob esse aspecto, o próprio Marx teria beirado a eclosão do novo paradigma. Em vez da crise, passam a ter importância as crises, os momentos de reestruturação do capitalismo e a oportunidade de domesticar os mercados. Não é o que hoje está em pauta?

Daí meu desconforto diante daqueles que continuam a pensar a história a partir de um único ponto de vista, aquele da emancipação, por exemplo. Ou ainda aqueles que pensam o socialismo tendo programa definido, quando o próprio Marx ensinou que "comunismo" é uma palavra equívoca, vale dizer, que indica apenas um movimento contrário ao capital, aquelas mudanças permitidas no presente.

Ser socialista passa a significar, então, o esforço de superar a crise do momento, do ponto de vista da liberdade e da justiça social efetivas.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .

Em pauta, o direito de ser diferente


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

O STF pode decidir se a diferença é um direito universal ou se há brasileiros de primeira e de segunda

Quando Joênia Batista de Carvalho, advogada brasileira da etnia wapichana, ocupou a tribuna do STF, na quarta-feira, não representou apenas a causa territorial dos indígenas de Roraima, como constava da agenda. Ao se paramentar com as marcas faciais de sua tribo e arrolar os fatos da relação dos indígenas de Roraima com o general Rondon e o Exército na demarcação dos confins do território brasileiro, o que os fez brasileiros muito antes de outros protagonistas do pleito, pôs em causa conexões inevitáveis do que motiva o processo. Trata-se de um processo de conotação histórica porque nele está em jogo mais do que a contestação do direito dos índios daquele Estado a uma reserva íntegra, já decretada com base na Constituição, que lhes assegure a materialidade de seu território de ocupação imemorial.

A invocação de problemas de segurança nacional em relação à demarcação de um território indígena contínuo e íntegro na faixa de fronteira é compreensível, mas parece irrelevante no mundo moderno, em face dos recursos técnicos de que dispõe o aparato responsável pela segurança das fronteiras do País. Esses setores recebem fotografias aéreas das diferentes regiões brasileiras a cada tantas horas, feitas a partir de satélite, e a cada tantos dias fotografias de melhor resolução. As Forças Armadas brasileiras, com esses recursos, sabem até mesmo que tipo e tamanho de avião estacionou num aeroporto até horas depois de o avião ter decolado, simplesmente com as imagens de seu fantasma na imagem gerada e deixada por sua temperatura no solo. O mesmo monitoramento identifica diariamente aviões não autorizados, procedentes de países vizinhos, que invadem o espaço aéreo brasileiro. A lei do abate permite que tais aviões sejam derrubados, caso não se identifiquem e não pousem onde os pilotos dos caças de abordagem determinarem.

O que o País precisa não é que os índios de Roraima sejam culturalmente lesados em nome da segurança das fronteiras. Precisa que as Forças Armadas estejam devida e permanentemente equipadas e treinadas para cumprir sua função constitucional na defesa das fronteiras do País. E isso estão, cabendo assegurar que disponham sempre do que necessitam para que essa missão não seja, ela sim, prejudicada. No Alto Rio Negro, que faz fronteira com a Venezuela e a Colômbia, território do município de São Gabriel da Cachoeira, com uma brigada do Exército estabelecida, em que 85% da população são indígenas, além do português são línguas oficiais o nheengatu, o baniwa e o tukano e nelas são publicados leis, decretos, portarias, editais. Nem por isso a segurança é menor.

No litígio que corre no Supremo, entre arrozeiros e governo federal, de que as vítimas do conflito territorial são os índios, há uma disputa entre duas concepções de terra: a terra como morada ancestral, referência de um modo de viver e de uma consciência do mundo que, suprimida, desencadeará o desaparecimento social e cultural de seus protagonistas; e a terra como mercadoria, mero instrumento de troca e produção, que pode ser comprada e vendida em qualquer lugar. Sua posse pelos arrozeiros, declarada ilegal no voto do ministro-relator, não é, pois, referência simbólica de identidade nem meio de sobrevivência cultural.

No processo está em jogo, também, uma tendência da história brasileira relativa à diferença entre a terra como propriedade fundiária e o território como patrimônio da nação. No antigo regime sesmarial, antecessor do atual regime fundiário, o Estado era titular do domínio da terra e os sesmeiros tinham dela a posse útil. A Lei de Terras, de 1850, alterou esse direito de modo que os fazendeiros se tornaram titulares de domínio e posse, um direito pleno. Com a Revolução de 1930, o Estado brasileiro tratou de recuperar em parte o domínio da terra para sobre ela exercer sua soberania no que sobrepusesse os interesses nacionais aos interesses privados. Nessa tendência houve a separação legal de solo e subsolo, retornando o subsolo e tudo que contém ao domínio do Estado. O mesmo acabou acontecendo com as terras do Distrito Federal, as marinhas e as terras indígenas.

O que está em jogo no Supremo é, portanto, a interrupção ou a mitigação do processo de reconquista do domínio do território pelo Estado Nacional. Os interesses dos índios, nesse aspecto, coincidem com os do Estado; o dos arrozeiros, não. Nas conexões dessa tendência histórica, temos o surgimento de sujeitos de direito e sujeitos de brasilidade diversos do convencional, mas igualmente legítimos.

Vale lembrar que em países como a Inglaterra, quando a expansão do capitalismo, no século 17, colidiu com direitos tradicionais da população, as lutas sociais asseguraram o reconhecimento dos direitos sociais como direitos precedentes em relação aos direitos econômicos e à conseqüente coisificação dos seres humanos na devastação cultural que se disseminava. No Brasil não tivemos, com a força social devida, instituições tradicionais reguladoras dos direitos dos pobres, trabalhadores e desvalidos porque esta era, afinal, uma sociedade escravista, resumida ao mandar e obedecer. As lutas tardias dessas populações, dos banidos da condição de sujeitos e privados do reconhecimento de identidade própria e ancestral, acabaram pondo na ordem do dia a reinvenção do Brasil numa perspectiva pluralista e multicultural. Mesmo no direito de propriedade, a Constituição de 1988 abrandou sua rigidez para acolher a legitimidade do costume quanto à posse e ao uso da terra.

Estamos num momento de recriação identitária e, portanto, de inclusão social não pela assimilação aniquiladora, mas pelo reconhecimento integrador do direito à diferença. Essa tendência histórica pode ser enriquecida ou empobrecida, dependendo do que o STF decidir, pois ele dirá se a diferença é um direito universal ou se há brasileiros de primeira e de segunda, em que a diferença continuará residual, como um defeito de caráter.

*José de Souza Martins é autor de Fronteira (A Degradação do Outro nos Confins do Humano), Hucitec, São Paulo, 1997

Ativismo judiciário a pleno vapor


Maria Tereza Aina Sadek*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS


A vitalidade do STF é inquestionável. Basta ver os efeitos de suas decisões. Ou até do adiamento delas

Esta semana é do Supremo. As anteriores também foram. As próximas, muito provavelmente, serão. Os temas são variados: habeas-corpus; uso de algemas; registro de candidatos a cargos eletivos; nepotismo; demarcação de terra indígena; interrupção de gravidez de feto anencéfalo; lei seca; lei de imprensa; cotas nas universidades; mensalão; união homoafetiva; transposição do Rio São Francisco; etc. A lista, além de extensa, é repleta de questões sensíveis.

O processo de tomada de decisões expõe e confronta princípios como, por exemplo, presunção de inocência e moralidade da administração pública; direito de acusados e direito de investigar; direito de optar e imposição ou pretensão do Estado de legislar; segurança nacional; soberania nacional e direito dos índios; diversidade cultural.

O embate, contudo, não é só de princípios. Instituições, grupos, corporações, interesses, imiscuem-se em categorias filosóficas abstratas. Assim, aparecem em lados opostos índios, organizações não-governamentais, Ministério Público e governo federal versus fazendeiros, deputados e governo estadual; Igreja contra cientistas; entidades médicas em desacordo com religiosas; cúpula do Judiciário e setores da advocacia em confronto com juízes de primeiro grau, aos quais se somam integrantes do Ministério Público, membros da Polícia e associações representativas.

A relevância dos temas e sua potencialidade de provocar impactos no âmbito público, na esfera de ação de corporações e na área privada justificam que se dirija a atenção para as decisões do Supremo. Com efeito, de área de interesse quase exclusiva de juristas e de operadores do direito, a Justiça estatal passou a constar da agenda política e da pauta dos meios de comunicação.

Propostas de reforma do sistema de Justiça saíram do reino da retórica transformando-se em medidas concretas. O Judiciário e seus integrantes converteram-se em objeto de manchetes, recebendo destaque em todos os veículos, jornais, revistas, rádios, televisões e blogs. A própria TV Justiça - uma singularidade brasileira -, no início vista com desdém pela maior parte dos conhecedores de mídia, tem conquistado audiência, especialmente quando transmite julgamentos vistos como memoráveis.

A rigor, esse quadro marcado pela presença do Judiciário na arena pública não é novo. A novidade está em seu robustecimento, em sua profusão de cores e contrastes. A constitucionalização deu ensejo a uma atuação ampla por parte do Judiciário e particularmente de sua corte suprema, o STF. Não é acidental que o Supremo seja levado a se pronunciar sobre tantos assuntos e menos ainda que eles digam respeito a tão ampla gama de temas. A Constituição de 1988 consagrou extenso rol de direitos, conferiu condições que garantem status de poder ao Judiciário, ampliou o número de legitimados com acesso direto ao Supremo. Ademais, a expressiva judicialização de questões políticas, econômicas e sociais implicou a composição dos tribunais como arena de disputas políticas e instância decisória final.

Em termos comparativos internacionais, é possível dizer que a participação do Judiciário na esfera pública é quase tão antiga quanto sua ascensão a Poder de Estado e a Corte Constitucional. Bastaria recordar a atuação da Suprema Corte americana e seu impacto na vida pública daquele país. Os exemplos são muitos. É, porém, suficiente lembrar seu apoio à segregação racial, negando a cidadania para os negros na primeira metade do século 19; sua intervenção invalidando leis sociais que objetivavam limitar a jornada de trabalho, em 1905; sua oposição ao New Deal do presidente Roosevelt; sua decisão a favor da pílula anticoncepcional e do aborto.

Quer agindo de forma conservadora quer de forma progressista é inegável o papel político do Judiciário. O desempenho desse papel está fortemente condicionado pelo desenho institucional da corte constitucional, mas também por características de seus integrantes. O perfil de seus ministros faz diferença. Em outras palavras, a despeito dos incentivos a uma atuação política propiciada pelos parâmetros institucionais, traços individuais contam. Em conseqüência, a atuação da corte reflete de forma inequívoca se o grupo é mais ou menos homogêneo, do ponto de vista ideológico e doutrinário; se predominam comportamentos mais ou menos reservados, atitudes mais ou menos agressivas, mais ou menos sensíveis a problemas sociais; enfim, importa como é ocupado o espaço concedido aos atributos individuais, tanto os vistos como positivos como os negativos.

Na mesma medida em que se robustece o protagonismo do Judiciário, crescem e se acirram as posições favoráveis e as contrárias a esse fenômeno. A valorização do ativismo judicial e do constitucionalismo tem seu contraponto na contenção, nos riscos da extrapolação de suas funções, nos preceitos majoritários. A polêmica, uma vez mais, não é só de princípios. Está em jogo a força relativa das instituições e de seus integrantes, como também a distribuição de poder no interior das instituições, a manutenção de privilégios e a efetivação de projetos políticos.

Face a tais características, não há como desconhecer a importância e o significado do Supremo na vida pública. Importância e significado que têm crescido nos últimos anos, impulsionados por características de seus integrantes. Qualquer que seja sua decisão, ou mesmo sua decisão de adiar uma decisão, tem potencial de produzir efeitos notáveis.

Para nos atermos a exemplos mais recentes, bastaria recordar as reações de lideranças políticas, de parlamentares, seus parentes e apaniguados em relação às imposições relativas à contratação de pessoas ligadas por vínculos familiares. E, por outro lado, as respostas favoráveis por parte dos que defendem uma administração pública baseada na impessoalidade, no mérito, na moralidade. Quanto à questão da demarcação de área indígena, postergar a decisão funciona como recurso de busca de solução salomônica, com maior potencial de pacificação das partes em conflito.

A vitalidade do Supremo é inquestionável. Os últimos anos testemunham seu protagonismo, decidindo ou postergando decisão, suscitando maior ou menor controvérsia. Sua presença é constante, como protagonista principal ou como ator pronto a entrar no palco. Tem tanto disciplinado matérias, atendo-se às suas clássicas atribuições, como legislado, adentrando em searas parlamentares. O presidente do Senado, ciente do risco do espaço perdido, reconheceu uma regra básica da política - a inexistência de vácuo. Ou, como consta dos escritos federalistas, “o poder é abusivo por natureza”. Hoje, o que está em discussão não é o protagonismo do Judiciário, mas sua extensão e limites.

*Maria Tereza Aina Sadek, cientista política, profa. da USP e coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais (Cebepej), é autora, entre outros, de A Justiça Eleitoral e a Consolidação da Democracia no Brasil (Konrad-Adenauer-Stiftung)

Espionado, Mendes exige que Lula explique grampo da Abin

José Maria Tomazela
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, cobrou ontem providências do presidente Lula, após a revelação de que a Agência Brasileira de Informações gravou pelo menos uma conversa telefônica sua – com o senador Demóstenes Torres. “Nesse caso, o próprio presidente da República é chamado às falas”, disse Mendes. “Há descontrole no aparato estatal.” Ele convocará o STF para analisar o episódio. O grampo foi reproduzido pela revista Veja, que informou ter obtido cópia com um funcionário da agência. A Abin teria grampeado também ministros e parlamentares. O presidente do Senado, Garibaldi Alves, vai articular uma reação conjunta à ação dos espiões. A Abin prometeu investigar o caso.

Gilmar Mendes é espionado, cobra explicação de Lula e convoca o STF

Ministro do Supremo teve um diálogo com senador do DEM interceptado ilegalmente; ação é atribuída à Abin

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, vai reunir a Corte para decidir que medidas serão tomadas após a confirmação de que ele e outros políticos foram alvos de grampos ilegais. Ele também quer explicações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a respeito das gravações. Reportagem publicada neste fim de semana pela revista Veja mostra que os serviços de espionagem federais instalaram grampos telefônicos ilegais nos aparelhos de Mendes, como já se suspeitava. A Veja atribuiu a ação à Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Depois de uma conversa com o vice-presidente do Supremo, Cesar Peluso, Mendes decidiu convocar todos os 10 ministros para discutir o assunto amanhã às 16 horas. Segundo ele, todos estão “perplexos e chocados” com a revelação dos grampos. Por causa da crise, ele cancelou uma viagem que faria à Coréia, onde participaria de um congresso - o vôo estava marcado para amanhã à noite.

O presidente do Supremo considerou “um crime extremamente grave” a interceptação telefônica clandestina e disse que é o caso de cobrar explicações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Nesse caso, o próprio presidente da República é chamado às falas, ele precisa tomar providências.” Para ele, há descontrole no aparato estatal.

Mendes ressalvou estar convencido de que o presidente não autorizou os grampos. “Não se trata de uma ação pessoal contra Gilmar Mendes, mas contra um dos poderes da República”, observou. De acordo com informações passadas por um agente da Abin à revista, também foram grampeados o presidente do Senado, Garibaldi Alves (PMDB-RN), o líder do PSDB, Arthur Virgílio (AM), e os senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE), Álvaro Dias (PSDB-PR), Demóstenes Torres (DEM-GO) e Tião Viana (PT-AC). Outras vítimas dos grampos foram os ministros da Casa Civil, Dilma Rousseff, e das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, além de Gilberto Carvalho, chefe de gabinete do presidente Lula.

Não há detalhes das conversas deles capturadas pelo serviço de espionagem. “Estamos voltando a ver uma prática continuada e reiterada de desrespeito aos termos expressos na Constituição. Temos que repudiar de maneira muito clara”, disse Mendes. Ele afirmou que, com as provas existentes, é preciso haver medidas muito mais enfáticas e enérgicas. “Há descontrole no aparato estatal e a isso precisa ser colocado um termo. Escuta telefônica só se faz mediante autorização judicial e essa regra precisa ser seguida. Grampear uma conversa rotineira entre o presidente do Supremo Tribunal Federal e um senador líder do Senado e importante autoridade na Comissão de Constituição e Justiça é um crime muito grave. Criou-se uma suspeita geral de que todos estão agindo ilicitamente.”

Ele manifestou preocupação com a “generalização” da prática. “A pergunta que nós fazemos é que garantia tem o cidadão comum, se o órgão que assegura as garantias sofre esse tipo de violação.” Mendes disse não saber como o homem comum pode se defender desse tipo de abuso. “Não se trata de nenhum medo de ser interceptado, não há nenhum medo, não há nenhum conteúdo criminoso nas nossas conversas, mas se trata de se preocupar com a restituição do Estado de Direito e de estabelecer seguranças jurídicas para todos.”

CONTRAMEDIDAS

Mendes disse que as medidas de segurança no gabinete já vinham sendo providenciadas. “Mas o que o cidadão comum faz diante desse tipo de invasão? Ele compra telefone criptografado, ele adota redes especiais?”, questionou.

A prova de que Gilmar Mendes foi mesmo vítima da arapongagem é a transcrição de uma conversa de cerca de dois minutos entre ele e o senador Demóstenes Torres, ocorrida às 18h32 do dia 15 de julho, trazida pela revista. No telefonema, Demóstenes pede a Gilmar ajuda contra a decisão de um juiz de Roraima que teria impedido uma importante testemunha de depor na CPI da Pedofilia, da qual é relator. No diálogo, Mendes agradece a Demóstenes por ter subido à tribuna do Senado para criticar pedido de impeachment contra ele, feito por um grupo de promotores descontentes com habeas corpus dado a Daniel Dantas.

Na época, a PF acabara de concluir a Operação Satiagraha, que prendera Dantas, acusando-o de uma série de crimes, entre eles lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e corrupção. De acordo com Veja, as gravações ilegais feitas pela Abin servem de base para relatórios que são entregues ao presidente. Isso, diz a revista, não quer dizer que o presidente Lula saiba dos grampos.

O que pensa a mídia

Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1074&portal=

A Abin gravou o ministro


Policarpo Junior e Expedito Filho
DEU NA VEJA

Diálogo comprova que espiões do governo grampearam o presidente do Supremo Tribunal Federal. Autoridades federais e do Congresso também foram vigiadas

Há três semanas, VEJA publicou reportagem revelando que o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, foi espionado por agentes a serviço da Agência Brasileira de Inteligência. O diretor da Abin, Paulo Lacerda, foi ao Congresso e negou com veemência a possibilidade de seus comandados estarem envolvidos em atividades clandestinas. Sabe-se, agora, que os arapongas federais não só bisbilhotaram o gabinete do ministro como grampearam todos os seus telefones no STF. VEJA teve acesso a um conjunto de informações e documentos que não deixam dúvida sobre a ação criminosa da agência. O principal deles é um diálogo telefônico de pouco mais de dois minutos entre o ministro Gilmar Mendes e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), gravado no fim da tarde do dia 15 de julho passado. A conversa, reproduzida na página anterior, não tem nenhuma relevância temática, mas é a prova cabal de que espiões do governo, ao invadir a privacidade de um magistrado da mais alta corte de Justiça do país e, por conseqüência, a de um senador da República, não só estão afrontando a lei como promovem um perigoso desafio à democracia.

O diálogo entre o senador e o ministro foi repassado à revista por um servidor da própria Abin sob a condição de se manter anônimo. O relato do araponga é estarrecedor. Segundo ele, a escuta clandestina feita contra o ministro Gilmar Mendes, longe de ser uma ação isolada, é quase uma rotina em Brasília. Os alvos, como são chamadas as vítimas de espionagem no jargão dos arapongas, quase sempre ocupam postos importantes. Somente neste ano, de acordo com o funcionário, apenas em seu setor de trabalho já passaram interceptações telefônicas de conversas do chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho, e de mais dois ministros que despacham no Palácio do Planalto – Dilma Rousseff, da Casa Civil, e José Múcio, das Relações Institucionais. No Congresso, a lista é ainda maior. Segundo o araponga, foram grampeados os telefones do presidente do Senado, Garibaldi Alves, do PMDB, e dos senadores Arthur Virgílio, Alvaro Dias e Tasso Jereissati, todos do PSDB, e também do petista Tião Viana. Esse último, conforme o araponga, foi alvo da interceptação mais recente, que teve o objetivo "de acompanhar como ele está articulando sua candidatura à presidência do Senado".

No STF, além de Gilmar Mendes, o ministro Marco Aurélio Mello também teve os telefones grampeados.

As gravações ilegais feitas pela Abin servem de base para a elaboração de relatórios que têm o presidente da República como destinatário final. Isso não quer dizer que Lula necessariamente tenha conhecimento de que seus principais assessores estejam grampeados ou que avalize a operação. Os agentes produzem as informações a partir do que ouvem, mas sem identificar a origem. Por serem ilegais, depois de filtradas, as gravações são destruídas. A do ministro Gilmar Mendes foi preservada porque, ao contrário das demais, ela foi produzida durante uma parceria feita entre a Abin e a Polícia Federal na operação que resultou na prisão do banqueiro Daniel Dantas, no início de julho. Os investigadores desconfiavam de uma suposta influência do banqueiro no STF e decidiram vigiar o presidente da corte. Gilmar Mendes já havia sido informado de que alguns comentários que ele fez com assessores no interior do gabinete tinham chegado ao conhecimento de outras pessoas – uma evidência de que suas conversas estavam sendo ouvidas. Desconfiado, solicitou à segurança do tribunal que providenciasse uma varredura. Os técnicos constataram a presença de sinais característicos de escutas ambientais, provavelmente de aparelhos instalados do lado de fora da corte. Não era só isso. O presidente do STF também tinha os telefonemas de seu gabinete gravados ininterruptamente. A Abin recebia e analisava, por dia, mais de duas dezenas de ligações do ministro. Foi para provar o que dizia que o funcionário mostrou uma delas.

De acordo com os registros, o senador Demóstenes Torres ligou para o ministro Gilmar Mendes às 18h29 para tratar de um problema relacionado à CPI da Pedofilia. Na ocasião, Mendes não pôde atender porque estava a caminho do Palácio do Planalto para uma audiência com o presidente Lula. Três minutos depois, às 18h32, a secretária retornou a ligação para o gabinete do senador e a transferiu para o celular do ministro. A conversa foi rápida. O presidente do Supremo agradeceu a Torres pelo pronunciamento no qual havia criticado o pedido de impeachment protocolado contra ele no Congresso. Na semana anterior, Mendes havia mandado soltar o banqueiro Daniel Dantas, o que provocou, além do pedido de impeachment, uma barulhenta reação da polícia e do Ministério Público. As entidades enxergaram na decisão do ministro – polêmica, mas felizmente tomada sob inspiração das leis vigentes – uma tentativa de impedir a punição dos corruptos. A Polícia Federal e a Abin interpretaram a decisão como uma confirmação de que alguma coisa errada se passava no gabinete do ministro e decidiram intensificar as ações ilegais. A partir daí, o presidente do Supremo e seus assessores mais próximos passaram a ser ouvidos, grampeados e seguidos pelos arapongas.

O diálogo em poder da Abin foi apresentado ao ministro Gilmar Mendes e ao senador Demóstenes Torres. Ambos confirmaram o teor da conversa, a data em que ela aconteceu e reagiram com indignação. "Não há mais como descer na escala da degradação institucional.

Gravar clandestinamente os telefonemas do presidente do Supremo Tribunal Federal é coisa de regime totalitário. É deplorável. É ofensivo. É indigno", disse o ministro, anunciando que vai pedir providências diretamente ao presidente Lula. "Não acredito que a ação da Abin ou da Polícia Federal seja oficial, com o conhecimento do governo, mas cabe ao presidente da República punir os responsáveis por essa agressão", acrescentou Mendes. O senador Demóstenes Torres também protestou: "Essa gravação mostra que há um monstro, um grupo de bandoleiros atuando dentro do governo. É um escândalo que coloca em risco a harmonia entre os poderes". O parlamentar informou que vai cobrar uma posição institucional do presidente do Congresso, Garibaldi Alves, sobre o episódio, além de solicitar a convocação imediata da Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso para analisar o caso. "O governo precisa mostrar que não tem nada a ver e nem é conivente com esse crime contra a democracia."

A atuação descontrolada dos arapongas oficiais está provocando crises dentro do próprio governo. Em conversas reservadas com assessores, Gilberto Carvalho, o chefe de gabinete do presidente Lula, que também foi vítima de espionagem clandestina, suspeita de uma conspiração em andamento para criar dificuldades ao governo. A teoria ganhou um reforço de um peso pesado do petismo. O ex-ministro José Dirceu, acostumado a freqüentar o noticiário como suspeito de alguma coisa, tem contado a amigos que é vítima de uma intensa perseguição de arapongas. A mais explícita, segundo ele, aconteceu em março passado. Um advogado, muito amigo do ex-ministro, recebeu a informação de que os telefones de Dirceu, de seus advogados e de alguns familiares estariam clandestinamente grampeados. Além disso, o escritório de Dirceu em São Paulo sofreria uma "entrada" – no jargão dos arapongas isso significa uma invasão clandestina disfarçada de roubo. O alerta, segundo o advogado, foi feito por um policial. Dias depois, o escritório do ex-ministro foi invadido. De acordo com o boletim de ocorrência registrado na delegacia, eram ladrões diferenciados, pois não se interessaram em levar uma televisão de plasma, uma cafeteira italiana, celulares e objetos de valor. Furtaram apenas a CPU do computador. Os "ladrões" também não deixaram marcas nas portas nem impressões digitais. A polícia paulista informou que o crime provavelmente foi praticado por uma gangue de catadores de papel.

No fim de junho, José Dirceu avisou o presidente Lula que estava sendo vítima de operações ilegais e que suspeitava da ação conjunta da Polícia Federal e da Abin. Em público, o ministro não faz acusações diretas contra ninguém, mas, para o presidente, ele foi explícito: Dirceu acusa o atual diretor da Abin, Paulo Lacerda, e o ministro da Justiça, Tarso Genro, de estarem por trás de um complô para prejudicá-lo, recorrendo a supostas ações ilegais contra ele, inclusive a invasão do escritório. "Mandei também avisar o presidente que estava sendo escutado ilegalmente", disse o ex-ministro a um interlocutor na semana passada. Dirceu considera Tarso Genro, que é do PT, mas de uma corrente interna diferente da sua, como desafeto político. O ministro da Justiça estaria usando o aparato policial contra Dirceu para tentar minar sua influência no partido. Paranóia? Talvez. O fato é que a ação clandestina dos arapongas, sejam eles da Abin ou ligados à Polícia Federal, está criando entre políticos, magistrados e autoridades em Brasília um clima que não se percebia desde os tempos do velho SNI, o serviço de inteligência criado no regime militar, que serviu, por mais de duas décadas, como instrumento de perseguição de adversários. Havia mais de um ano que o ministro Gilmar Mendes suspeitava que seus telefones estavam sendo grampeados. Parecia paranóia.


GILMAR MENDES: "Gravar clandestinamente os telefones do presidente do STF é coisa de regime totalitário. É deplorável. É ofensivo. É indigno"


DEMÓSTENES TORRES: "Há um grupo de bandoleiros atuando dentro do governo. É um escândalo que coloca em risco a harmonia entre os poderes"


O diálogo

Gilmar Mendes – Oi, Demóstenes, tudo bem? Muito obrigado pelas suas declarações.

Demóstenes Torres – Que é isso, Gilmar. Esse pessoal está maluco. Impeachment? Isso é coisa para bandido, não para presidente do Supremo. Podem até discordar do julgado, mas impeachment...

Gilmar – Querem fazer tudo contra a lei, Demóstenes, só pelo gosto...

Demóstenes – A segunda decisão foi uma afronta à sua, só pra te constranger, mas, felizmente, não tem ninguém aqui que embarcou nessa "porra-louquice". Se houver mesmo esse pedido, não anda um milímetro. Não tem sentido.

Gilmar – Obrigado.

Demóstenes – Gilmar, obrigado pelo retorno, eu te liguei porque tem um caso aqui que vou precisar de você. É o seguinte: eu sou o relator da CPI da Pedofilia aqui no Senado e acabo de ser comunicado pelo pessoal do Ministério da Justiça que um juiz estadual de Roraima mandou uma decisão dele para o programa de proteção de vítimas ameaçadas para que uma pessoa protegida não seja ouvida pela CPI antes do juiz.

Gilmar – Como é que é?

Demóstenes – É isso mesmo! Dois promotores entraram com o pedido e o juiz estadual interferiu na agenda da CPI. Tem cabimento?

Gilmar – É grave.

Demóstenes – É uma vítima menor que foi molestada por um monte de autoridades de lá e parece que até por um deputado federal. É por isso que nós queremos ouvi-la, mas o juiz lá não tem qualquer noção de competência.

Gilmar – O que você quer fazer?

Demóstenes – Eu estou pensando em ligar para o procurador-geral de Justiça e ver se ele mostra para os promotores que eles não podem intervir em CPI federal, que aqui só pode chegar ordem do Supremo. Se eles resolverem lá, tudo bem. Se não, vou pedir ao advogado-geral da Casa para preparar alguma medida judicial para você restabelecer o direito.

Gilmar – Está demais, não é, Demóstenes?

Demóstenes – Burrice também devia ter limites, não é, Gilmar? Isso é caso até de Conselhão.
(risos)

Gilmar – Então está bom.

Demóstenes – Se eu não resolver até amanhã, eu te procuro com uma ação para você analisar. Está bom?

Gilmar – Está bom. Um abraço, e obrigado de novo.

Demóstenes – Um abração, Gilmar. Até logo.

sábado, 30 de agosto de 2008

Uma disputa estratégica


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


DENVER, Colorado. Foi um discurso com a dose certa de emoção e razão, de quem não está na corrida presidencial por acaso, mas para ganhar. O candidato democrata Barack Obama confirmou na noite de quinta-feira, diante de mais de 80 mil pessoas num estádio de futebol americano, que é um adversário difícil de ser desconstruído, que não teme o confronto. Só estando lá para sentir a eletricidade do ambiente, a alegria dos militantes, a ansiedade da vitória que dominava a todos e, ao mesmo tempo, o temor de que o sonho afinal não se realize.

O fato de ter chamado para o centro da disputa eleitoral seu adversário, o republicano John McCain, a quem citou nada menos que 22 vezes em cerca de uma hora, mostra que, a partir das convenções, a disputa ganhará tons cada vez mais pessoais, embora Obama tenha dito, em um dos muitos bons momentos de seu discurso, que a campanha não era sobre ele, mas sobre o povo americano.

Ao contrário, a disputa é toda em torno dele, o primeiro negro a ser lançado candidato à Presidência dos Estados Unidos por um dos grandes partidos, e isso pode ser bom para ele, mas pode também ser um complicador.

Ele tem que se mostrar renovador, mas não tão distante do mundo real que se torne um aventureiro; tem que defender novas maneiras de fazer política sem parecer ingênuo; e mostrar uma visão diferente da que prevalece em Washington sem se revelar inexperiente.

Ele vai ter que viabilizar uma mudança que vêm "de fora" ("a change to Washington"), e não de Washington, mas, para isso, paradoxalmente, terá que ter a ajuda do establishment político. Tendo rejeitado Hillary Clinton como vice, teve que buscar em Washington o senador Joe Biden.

Em uma disputa tão apertada como costumam ser as eleições presidenciais americanas, os dois candidatos mostram-se mestres em estratégia política. Sendo a energia um dos pontos centrais da preocupação do americano médio, os dois trataram a questão com prioridade máxima.

Obama usou palavras de pura inspiração misturadas com questões concretas do dia-a-dia do cidadão, como seu plano de tornar os Estados Unidos independente dos países árabes em relação ao petróleo em dez anos, e conseguiu provocar uma das grandes ovações da noite, explicitando o que vai na alma do eleitorado em geral: o preço da gasolina e do aquecimento está mexendo com a cabeça e o bolso do americano, que atribui aos árabes mais essa desdita.

McCain foi buscar no Alaska sua candidata a vice, a governadora Sarah Pallin, mulher, mais jovem que Obama, uma política independente dentro do Partido Republicano tanto quanto McCain e, sobretudo, favorável à ampliação da exploração de petróleo, inclusive no seu estado, onde a exploração é limitada por questões ambientais.

Aumentar a perfuração de petróleo é percebido, neste momento, pela população como uma solução para a questão do preço da gasolina, embora seja tão inócua quanto é improvável a concretização da promessa de Obama de o país estar auto-suficiente em energia em dez anos.

Mas não foi por acaso que a governadora Sarah Pallin, em seu primeiro pronunciamento, citou diretamente a senadora Hillary Clinton, exaltando seu feito como tendo sido um passo importante na política feminista, e se colocou como uma sucessora de Hillary Clinton, disposta a superar uma barreira que nem mesmo os 18 milhões de votos que a senadora democrata conseguiu nas primárias de seu partido foram suficientes para suplantar.

Ela está de olho em parte desses votos, os que teriam sido dados por Hillary ser uma política comprometida com o avanço da causa feminista. Pallin não é uma líder feminista, mas está defendendo a tese de que eleger uma mulher é um avanço. O mais próximo que Pallin chegou em defesa de uma causa feminista, pelo menos publicamente, foi pressionar para demitir um ex-genro que batia em sua irmã, o que causou um pequeno escândalo político no Alaska.

A escolha da governadora do Alaska tem também desvantagens para a candidatura McCain, sendo a mais previsível a redução da eficácia da desconstrução de Obama na base da inexperiência política.

Ora, a governadora Pallin está no seu primeiro mandato, e a única experiência anterior foi ser prefeita de uma pequena cidade. Para um candidato que fez 72 anos ontem e tem um histórico de doenças de pele - já teve um melanoma -, a escolha do vice é fundamental. Pallin é jovem, o que é uma garantia, mas tão inexperiente quanto Obama, o que pode ser perigoso caso ela tenha que assumir o governo em uma emergência.

A governadora é tão independente politicamente que mesmo sendo defensora da exploração de petróleo na costa de seu estado, ela tem litígios com várias companhias petrolíferas, tanto por ter criado impostos que impuseram novos gastos quanto por pressioná-las para aumentar a prospecção.

É uma conservadora que acredita na mão pesada do Estado, da mesma maneira que, durante a convenção democrata, o lado mais liberal do partido apareceu diversas vezes, várias delas no discurso do próprio Obama, que já foi considerado o senador mais de esquerda de Washington.

A senadora Hillary Clinton já havia dito em seu discurso que "obrigaria" as empresas de energia a implantarem projetos "para o bem comum", seja lá o que isso signifique. Barack Obama foi mais específico, disse que não permitiria que as companhias de seguro-saúde discriminassem pessoas com doenças graves, e garantiu que todos os cidadãos americanos terão acesso a planos de saúde a preços módicos.

Com a escolha de Pallin, a chapa dos republicanos deu uma guinada à direita, ao mesmo tempo em que o discurso dos democratas foi mais para a esquerda a partir da convenção.

Virtudes democráticas


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O processo eleitoral nos Estados Unidos - da escolha dos candidatos à eleição do presidente - não é perfeito, bem como a democracia tampouco se pretende sem defeitos.

Mas, haverão de convir até os adeptos do antiamericanismo como filosofia de vida, que nos últimos meses o país proporcionou ao mundo interessado no tema da representação política um espetáculo de qualidade ímpar.

Da aparição de Barack Obama na condição de azarão à perda de terreno da favorita Hillary Clinton, passando pela resistência da senadora ante a evidente desvantagem nas primárias até a confirmação do atropelo definitivo, a rendição e, por fim, escolha oficial de Obama como candidato a presidente em apoteótica convenção do partido Democrata, tudo isso ensina muito a países em estado de pré-depressão cívica.

Poderíamos falar de vários - muitos localizados aqui bem perto -, mas não há razão para olhar as mazelas do vizinho se precisamos mesmo é observar, esmiuçar e procurar corrigir as nossas.

A proposta não é fazer dos Estados Unidos um modelo. Inclusive porque não fossem milhares de outros fatores, há léguas de distância na formação das duas sociedades: a norte-americana forma uma nação e, só então, organiza o Estado; a brasileira nasce, cresce e permanece econômica, política e (sobretudo) culturalmente dependente do Estado.

Para uma, ele é um servidor; já para a outra é um provedor.

Só por essa diferença de origem já seria um equívoco acreditar que resida no arremedo a solução para o nosso nessa altura já inadiável avanço.

Valem, porém, a observação e a reflexão. Não sobre os atributos dos candidatos ou as razões do povo americano para se arriscar ao "diferente", mas a respeito do processo.

Por que Barack Obama conseguiu se impor ao favoritismo de Hillary dentro da "estrutura", enquanto que aqui o inesperado só tem chance quando envereda por atalhos exóticos, campos férteis aos aventureiros e oportunistas?

Aqui, a mentalidade do mandonismo, de um lado, e a vocação do servilismo, de outro, simplesmente impossibilitam a ampliação da participação social da vida dos partidos. É cada um no seu canto.

Lá, foram meses de primárias, consultas pelo país todo, debates sobre questões substanciais, cobranças de cada conduta, cada palavra, cada compromisso do passado em confrontação com as teses defendidas no presente e, no fim, uma convenção partidária com a participação de 75 mil pessoas e fila virando na porta de entrada.

Tudo sem voto obrigatório nem a influência da mão pesada do governante de turno. Seja ele impopular como George W. Bush, ou tenha sido popular como Bill Clinton.

O poder público não entra como fator de indução da vontade daqueles delegados representantes da população. Prevalece a vontade da "base" do partido induzida, aí sim, pelo que se passa do lado de "fora" dos organogramas oficiais.

Há conchavos? Evidente. Sem eles não se fazem acertos. Mas são apenas uma parte de um todo, cuja boa essência está no fato de ser conduzido pelas regras do jogo.

Poder do moderador

Autor da demarcação contínua das terras da reserva Raposa Serra do Sol, é natural que o governo federal defenda sua posição na ação em julgamento no Supremo Tribunal Federal. Isso no tocante à alçada da Advocacia-Geral da União.

Fora dessa área, as manifestações de ministros assumem um caráter de torcida que subtraem do governo credenciais para atuar na mediação do conflito já devidamente contratado em Roraima, seja qual for a decisão do Supremo.

Não havendo de nenhuma das partes disposição para aceitar concessões ao "adversário", o cenário de sublevação contra a palavra da Justiça está no horizonte.

Se confirmado, restará a administração política da questão. O Congresso estando amorfo, a tarefa será necessariamente do Executivo que, para isso, precisa preservar um espaço de neutralidade.

Terra firme

Político com o futuro em jogo não arrisca. Petisca do bom e, da festa, aproveita o melhor para si.

É só repara: o governador do Rio, Sérgio Cabral, apareceu na campanha apenas quando seu candidato, Eduardo Paes, engatou um segundo lugar nas pesquisas.

Mas não é o único a passar ao largo de cenários adversos. A menos que dependem da virada do quadro, caso típico do empenho de Aécio Neves pelo candidato à Prefeitura de Belo Horizonte, desde os 6% iniciais já devidamente transformados em 21% das pesquisas.

José Serra aproxima-se o menos possível da briga de foice no escuro do PSDB na campanha paulistana, mas no Rio dá apoio enfático a Fernando Gabeira; por ora não tem chance de vitória, mas faz boa figura na sociedade.

Hoje, quando o presidente Lula inicia por São Paulo seu percurso de palanques, o trajeto a ser percorrido daí em diante o confirmará como regra ou o mostrará como exceção.

Lula, ligue para o Obama


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

SÃO PAULO - Diz o jornal britânico "Financial Times" que a proposta talvez mais ambiciosa de Barack Obama para a economia, em seu discurso de aceitação da candidatura, foi a de "desmamar" os Estados Unidos do petróleo externo em dez anos e investir algo em torno de US$ 150 bilhões em programas de energia alternativa.

Eu, se fosse Lula, ligaria para Barack e diria: "companheiro, juntemos a fome com a vontade de comer e seus problemas acabarão". Explico: 1 - Lula tem verdadeira obsessão, de resto assumida, com o uso do etanol (desde que derivado da cana-de-açúcar, que fique claro) como fonte do que chama de revolução energética global.

2 - Funcionaria assim: o Brasil entra com a tecnologia, a melhor até agora disponível nesse campo, e os Estados Unidos com o dinheiro para que países pobres do Caribe, América Central e África possam se tornar exportadores de álcool, derivado da cana-de-açúcar ou outro plantio que não interfira com a alimentação humana.

Esse, aliás, é o espírito do memorando de entendimento assinado entre Lula e Bush em 2007, mas que não saiu do papel até agora.

3 - O telefonema urgente é importante, porque Barack Obama tem ou teve conhecidos vínculos com o lobby do etanol derivado do milho, especialidade norte-americana, que, no entanto, é cara demais e, ela sim, tira milho da boca das criancinhas (e dos adultos). É bom, desde já, deixar claro ao candidato que há uma alternativa melhor.

4 - É razoável supor que um programa desse gênero permitiria aos Estados Unidos reduzir sua dependência energética de fontes que não são confiáveis (aos olhos norte-americanos).

5 - Bem combinadas e estudadas as coisas, Lula deixaria de ser "o chato do etanol", como ele próprio se classificou faz pouco, para ser co-autor, aí sim, de uma revolução energética.

Anarquia e sindicalismo


Almir Pazzianotto Pinto
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Poucos movimentos sociais provocaram tanto sobressalto ao País como se deu com o anarcossindicalismo, nas primeiras décadas do século passado. O temor governamental era tamanho que em 7 de janeiro de 1907, imediatamente após a aprovação da primeira lei sindical, o presidente Affonso Penna sancionou o Decreto nº 1.641, que providenciava "a expulsão de estrangeiros do território nacional". Poderiam ser banidos aqueles que comprometessem a segurança ou a tranqüilidade pública e, também, os condenados em tribunais estrangeiros por crimes ou delitos de natureza comum.

Em janeiro de 1921, o presidente Epitácio Pessoa aprovou os Decretos 4.247 e 4.269. O primeiro impunha controles à entrada de estrangeiros considerados perniciosos à ordem pública e nocivos à segurança nacional. O segundo, conforme dispunha a ementa, regulava a "repressão ao anarquismo".

Qualificava-se como anarquismo "provocar diretamente, por escrito ou qualquer outro meio de publicidade, ou verbalmente, em reuniões realizadas nas ruas, nos teatros, clubes, sedes de associações, ou quaisquer lugares públicos, ou franqueados ao público, a prática de crimes tais como dano, depredação, incêndio, homicídio, com o fim de subverter a atual organização social".

As penalidades variavam da prisão celular por seis meses a quatro anos e, nos casos mais graves, autorizava-se o fechamento de associações, sindicatos e sociedades civis, com o exílio dos acusados.

Coube a anarquistas, comunistas, socialistas, da integridade de J. Mota Assunção, Gigi Damiani, Neno Vasco, Oreste Ristori, Edgard Leuenroth, Astrojildo Pereira, a tarefa de estimular a fundação das primeiras organizações proletárias no Brasil. Traziam, dos países de origem, ideais libertários e de sindicalismo revolucionário, inspirados em Bakunin, Kropotkin, Proudhon, Faure, Malatesta, Ferrer.

Quem tiver interesse em conhecer o papel desempenhado pelos anarquistas na criação das entidades sindicais deve consultar as obras de John W. Foster Dulles, Everardo Dias e Paulo Sérgio Pinheiro sobre as lutas sociais travadas, no Brasil, até o início da década de 1930.

Inimigos do Estado, utópicos, radicais, moralistas, anticlericais, dotados de invulgar coragem, os anarquistas - como os antigos socialistas e comunistas - sonhavam com uma sociedade justa, em que todos vivessem de forma decente, livre e digna.

Positivista, estancieiro e caudilho, adversário de todas as variantes esquerdistas, Getúlio Vargas assumiu a Presidência da República em novembro de 1930, comprometido com a idéia da domesticação dos movimentos sociais e do sindicalismo emergente, tarefa iniciada mediante a criação do Ministério do Trabalho. Passo a passo, a liberdade de organização foi sendo estrangulada e substituída pelo modelo corporativo-fascista, tributário dos interesses do Estado. Dele aflorou a figura do pelego, dirigente desprovido de coluna vertebral, submisso às solicitações patronais, vassalo do governo e mantido pelo Imposto Sindical.

A Constituição de 1988 iniciou, mas não concluiu o desmonte da estrutura fascista criada pelo Estado Novo. Ao invés de modelo democrático, sofreu a inseminação de uma espécie corrompida de anarcossindicalismo, caracterizado pela proliferação de entidades artificiais, usadas como balcões de negócios e rampas de acesso a partidos políticos.

A palavra anarquia significa sistema social baseado na absoluta igualdade entre os indivíduos, tendo como aspiração o desaparecimento do poder de coação, inseparável do ordenamento jurídico. No sentido pejorativo e vulgar, porém, o termo traduz um quadro de desordem e indisciplina, pela ausência de lei ou omissão das autoridades.

Na esfera sindical, regredimos de fases em que o sindicalismo era levado a sério para o peleguismo e a anarquia, parteiros de entidades cujos objetivos nada têm que ver com os trabalhadores e os interesses nacionais.

Ante o perigo de ser tido como patrocinador de negociatas envolvendo registros e bases territoriais, o Ministério do Trabalho pensou em reagir, com a aprovação de portaria disciplinadora de ambas as matérias. Como se sabe, porém, portaria é, por definição, "o instrumento pelo qual ministros, secretários de governo, ou outras autoridades, expedem instruções sobre a organização e o funcionamento de serviços e praticam outros atos de sua competência". O ato em causa extravasou os limites das atribuições ministeriais, como deixou patente, em artigo publicado pela revista Trabalho, o desembargador José Carlos Arouca, do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP).

O governo pensa em resolver o problema, que aflige empregados e empregadores, os quais já não sabem quem os representa, com quem dialogar, negociar e para quem recolher a Contribuição Sindical obrigatória, tantas se tornaram as invasões de categorias profissionais e de empresas, praticadas por entidades recém-nascidas, nebulosas e dirigidas por pessoas obscuras.

Ensina a Bíblia, contudo, que não se deve coser tecido novo em roupa velha, ou guardar vinho fresco em tonéis envelhecidos. A estrutura sindical herdada do Estado Novo não comporta reforma, e os problemas que apresenta jamais alcançarão solução por meio de portarias.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva perde excelente oportunidade de enriquecer a biografia ao consentir que a estrutura sindical sobreviva cambaleante e corrupta, sob a direção - salvo as exceções de praxe - de notórios e vitalícios pelegos.

Almir Pazzianotto Pinto é ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), aposentado

A chama acesa da esperança


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL

O GOVERNO, DESTA VEZ, não pode ser acusado de leviandade no pacote de reforma política encaminhado ao Congresso, depois de seis anos e quase nove meses de estudos profundos, longa meditação, infindáveis debates internos e sigilosas consultas aos diversos setores da sociedade. O que pingou na ansiedade dos parlamentares não vai além de algumas gotas que não chegaram a regar a expectativa de ardentes patriotas, com os olhos vidrados no futuro do país.

O inevitável azedume da malícia dá guarida a suspeita de que o presidente Lula nas suas meditações sobre o amanhã, com a objetividade e a argúcia do estadista que o mundo reconhece, imagina o país nos quatro anos da sua sucessora, a ministra Dilma Rousseff, não apenas escolhida pelo dono do PT, mas na pré-campanha sob a batuta do chefe.

E a reforma política entregue ao presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) tem as medidas exatas da ministra-candidata Dilma Rousseff, chefe do Gabinete Civil.

Mas, onde o carro enguiça é no atoleiro dos interesses imediatos e contraditórios. Da reforma para tapar a boca dos críticos e a lengalenga da anêmica oposição, à beira de um desastre eleitoral desqualificante nas eleições do próximo dia 5 de outubro, sobrou a polêmica do voto em lista para deputados federais e estaduais e vereadores.

Trata-se de uma trampa marota que só interessa aos donos dos partidos e que manipulam a elaboração das listas de candidatos, garantindo as vagas para os que têm prestígio. O quociente eleitoral definirá o número de vagas. O eleitor não votará no candidato, mas no partido e serão agraciados com os quatro anos de mandato segundo a lista partidária.

Trata-se de uma manobra sem a menor possibilidade de ser aprovada com as exigências de quorum de emenda constitucional. E se enche o olho da turma que manda nos partidos, morre na praia do baixo clero que sabe fazer as contas do seu interesse. O governo de perdulária gastança propõe abrir o cofre para o financiamento público de campanha. E que é uma medida moralizadora, mas inviável. Falando sério. Passou a hora da reforma política pois o governo jamais se interessou pela crise moral que corrói o Legislativo. Contribui para desmoralizar o Congresso, trancando a pauta com a enxurrada de medidas provisórias. Cerra os olhos, sussurra a desculpa de que não quer arranhar a independência dos poderes para justificar sua indolência e seu desdém pelas mazelas de um Congresso que não se dá ao respeito.

Por aí, o presidente Lula avança em campo minado. É claro que a doença do Legislativo é como uma lepra que se alastra e aumenta a cada ano no tecido gangrenado das mordomias, das vantagens, dos benefícios que transformaram o mandato conferido pelo voto do povo em um dos melhores empregos do mundo. A soma de múltiplas parcelas vai além dos R$ 100 mil mensais para uma semana estafante de três dias úteis.

E é por isso que soa em falso as justificativas do presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), de que as prioridades das urgências do Congresso são a "alteração do trâmite das medidas provisórias, a reforma tributária". Mas, ressalva, "se houver espaço não há nenhum problema em retomarmos a votação da reforma política".

E não há mesmo. Entra ano, sai ano e a reforma política é debatida em seminários acadêmicos, discutida por especialistas na imprensa, tema de debate universitário e, lá uma vez ou outra, chega à tribuna parlamentar em acalorados debates e severas críticas pela indiferença do governo.

Os parlamentares têm coisas mais urgentes e tratar. À frente da fila o problema criado pela intromissão do Supremo Tribunal Federal (STF) que derrubou o nepotismo, uma das prendas mais estimadas do mandato parlamentar que garantia a distribuição em empregos e sinecuras pela parentela, de olho no prêmio melhor que bilhete premiado.

Foram duas pancadas na moleira: além do desemprego de filhos, noras, tios, primos do chefe da família e da esposa, a impopularidade em plena campanha eleitoral com a ultrapassagem pela toga.

Não é um caso perdido. Daqui até 2010, quando as urnas eletrônicas decidirão a sorte da ministra-candidata Dilma Rousseff e do candidato ou dos candidatos da oposição, dos governadores, senadores, deputados federais e estaduais, muita coisa vai mudar.

É o que mantém acesa a chama da esperança.

A "onda vermelha", enfim

Fernando Rodrigues
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Profecia nunca autocumprida, a "onda vermelha" petista tem chances de vingar na eleição de 5 de outubro.

Em 2000, em meio à crise do já moribundo governo FHC, os petistas pensavam em se esbaldar. Elegeram prefeitos em 187 cidades. Faturaram a jóia da coroa, São Paulo, mas estacionaram muito atrás das siglas tradicionais quando se comparava quem tinha mais cidades governadas à época -eram 5.559 municípios; hoje são 5.564.

Em 2004, a derrota paulistana de Marta Suplicy e o ainda titubeante governo Lula acabaram impedindo um deslanche petista. Foi um avanço maiúsculo, de 119%, com 411 prefeitos eleitos.

Mas a previsão petista de vencer em 800 cidades estragou a festa.

Agora, a história é outra. Previsões modestas dos petistas apontam para 40% de aumento no número de prefeitos. Ou seja, acham que vão sair dos 411 em 2004 para algo perto de 570, no mínimo.

O percentual deve ser superior no Nordeste. Estados como a Bahia serão palco de um fenômeno até agora raro: petistas governando vários pequenos municípios. "É isso que tem deixado a oposição agitada no Congresso. Tem uma "onda vermelha" nas ruas", diz o senador petista por São Paulo Aloizio Mercadante, dando nome ao fato.

Como previsões eleitorais são pouco recomendáveis -como dizem o políticos, o "problema do vaticínio é que depende do futuro"-, melhor esperar para ver. Mas há elementos a favor dos petistas.

A economia está muito melhor do que em 2004. Lula é idolatrado no Nordeste e nas regiões mais pobres do país. E, incrível, não há nenhum escândalo novo na praça.

A se confirmar o cenário, o PT terá o mesmo tamanho de PMDB, PSDB e Democratas nas cidades brasileiras. Ao mesmo tempo, todas essas siglas cada vez mais se parecerão umas com as outras.

Modesto da Silveira: "Não se deve anistiar torturadores e golpistas"


Diógenes Botelho
DEU NO PORTAL DO PPS

Deputado Federal que encaminhou o projeto que deu origem a Lei da Anistia, Modesto da Silveira diz que homicídios, estupros e roubos cometidos por agentes do governo militar precisam ser tratados como crime comum. "Não se deve anistiar torturadores e golpistas", defende Silveira em entrevista ao Portal do PPS.


De engraxate, ajudante de carro de boi e guia de cego até deputado federal da oposição durante a ditadura militar, tempo em que se notabilizou como um dos maiores advogados do país na área de direitos humanos. A vida do mineiro Modesto da Silveira é por si só um exemplo de resistência. Em passagem por Brasília para participar de sessão solene da Câmara em homenagem aos 29 anos da Lei da Anistia, encaminhada por ele no Congresso, conversou com o Portal do PPS. Aos 81 anos, segue firme em sua luta pelos direitos humanos e pela radicalidade democrática. Não tem receio em entrar em assuntos polêmicos, como a revisão da Lei da Anistia. Para ele, homicídios, estupros e roubos cometidos por agentes do governo militar precisam ser tratados como crime comum. "Não se deve anistiar torturadores e golpistas", defende. Na entrevista, falou ainda sobre sua experiência como advogado de presos políticos, da perseguição que sofreu da ditadura, de um grupo golpista que ainda resiste no Exército brasileiro, entre outros assuntos. Confira.

Portal do PPS - Qual era o clima daquele 28 de agosto de 1979, quando o Congresso aprovou a Lei da Anistia?

Modesto da Silveira - Eu era deputado e fui o encaminhador da lei, em nome de Ulysses Guimarães (ex-presindete do MDB/PMDB), na votação do plenário. Tinha saído do hospital, estava doente, e vim em cadeira de rodas tentar votar. Quando cheguei, o Ulysses olhou e disse: Modesto, você agüenta subir as escadinhas (para a tribuna). Eu disse: Claro, agüento, eu vou me arrastando, mas vou. No que ele respondeu: Então, encaminha a lei para a gente. Fiz o encaminhamento, justifiquei que a lei não era a que nós desejávamos. Nós queríamos a anistia ampla, geral e irrestrita para os perseguidos políticos e não para os perseguidores políticos. Mas, como a ditadura ainda durou muitos anos (até 1985), eles (os militares e seus sustentadores políticos) àquela altura tinham condição de impor o tipo de anistia em que concordariam. Até porque o Congresso Nacional era composto de muitos biônicos. Tanto que nessa ocasião, em 1978, a oposição, que era o MDB, teve cerca de 5 milhões de votos a mais do que a ditadura (representada pela Arena), e no entanto eles tinham o maior número de representantes porque havia os biônicos eleitos. Havia também aquele processo semibiônico de fortalecer os estados onde a ditadura era forte. E nos estados onde ela era fraca, calcularam matematicamente, e deu para eles fazerem uma maioria artificial. Então, ou nós aceitávamos aquela (Lei da Anistia) ali, negociando, ou não teríamos anistia nenhuma. E ela já foi um passo para as anistias posteriores, o que inclusive acabou redundando no artigo 8° do ato das disposições constitucionais transitórias (da Constituição de 1988, que estabeleceu o pagamento de indenizações e reparação de direitos aos atingidos pela ditadura). E já naquela primeira anistia foi possível tirar muita gente da cadeia e receber os milhares de exilados que estavam em toda parte do mundo, sobretudo na Europa.

Portal – Como foram os bastidores dessa negociação?

Silveira - Foi uma negociação difícil, muito difícil. Tentávamos ampliar e eles não concediam. Era esta ou não era nenhuma. Foi o máximo conseguido naquele momento.

Portal - Na sua opinião, é válida, hoje, a rediscussão da Lei da Anistia no Brasil, como alguns setores políticos estão propondo?

Silveira -
Para a anistia, a tese que eu acho mais aconselhável e interessante, e que não é de hoje, é de muitos anos, é a que se tenta ganhar na ONU. É aquela que eles acham o seguinte: anistia sim, mas anistia é para aqueles que são vítimas de tiranias e ditaduras em geral. Esses devem ser anistiados. Agora, os fabricantes de ditaduras e tiranias não devem receber anistia nenhuma. Porque senão você estará estimulando novos golpes para o futuro, sobretudo em países como o Brasil e o Chile, onde eles (os militares) se auto-anistiaram previamente pelos crimes que já tinham cometido e que ainda iriam cometer no futuro. Isso é uma coisa inédita e inaceitável pela humanidade. Imagine você, a lei era de 79 e a ditadura foi até 85. E os que vinham praticando crimes, torturando, estuprando, furtando e se corrompendo continuaram fazendo as mesmas coisas. É um privilegium, como diriam os romanos. Ninguém pode fazer lei em causa própria. E eles fizeram lei em causa própria para o passado, o presente e o futuro. O passado, pelos crimes que cometeram, e o presente e o futuro pelos crimes que estão ou irão cometer ainda. Isso é realmente uma teratologia (anomalia) jurídica. É um absurdo que foi cometido. A tese saudável hoje, que você vê elementos da ONU fazendo pronunciamentos, é aquela que anistia vítimas de ditaduras, de autoritarismos. Não se anistia autoritários, ditadores. E por quê? Porque eles serão estimulados a de novo derrubar outras democracias, estabelecendo ditaduras.

Portal - E por que apostar na tese da ONU?

Silveira - Porque ela tem a força moral e jurídica do mundo inteiro. Das 194 nações soberanas, você tem 192 que pertencem à ONU. Portanto, o que é decidido pela ONU pode se tornar lei praticamente no mundo inteiro.


Portal - Então, na sua opinião, ainda é possível, hoje, punir os agentes da ditadura brasileira? Fazer o que, segundo as suas próprias palavras, não foi possível fazer em 1979?

Silveira -
Se eles não forem punidos aqui, serão punidos lá fora. Um juiz espanhol e um italiano decretaram a prisão e o Pinochet (ex-ditador chileno Augusto Pinochet), o maior dos torturadores, foi preso na Inglaterra por um ano e tanto e chegou ao seu país e continuou respondendo processo político. Pois bem, hoje em dia se esses mesmos torturadores brasileiros ou de qualquer ditadura forem a Europa, poderão ser presos lá. Eles hoje estão prisioneiros de algum modo no Brasil porque estão limitados ao território brasileiro. Se eles saírem do Brasil, qualquer cidadão de outro país que eles visitem pode denunciar. Eles gostam de ir para Europa, principalmente, Espanha, França, Itália, etc... Bateu lá, o nome deles está lá e eles serão presos. Então, eles não podem ir a esses lugares. Já estão com a liberdade limitada, o que é uma prisão parcial. E a tese da ONU me parece uma tese saudável para você estabelecer democracias e procurar aperfeiçoá-las. E nunca permitir que se derrube uma democracia para estabelecer uma ditadura.

Portal - Como foi atuar como advogado de presos políticos em uma época dura, como foi a ditadura militar no Brasil?

Silveira - Eu fui advogado de todo o tipo de categoria profissional. Estudantes, crianças, menores, profissionais, parlamentares e até gente que acabou sendo ministro. E muitos advogados, fui advogado de muitos advogados. Todo mundo sofria. Eu mesmo, por essa ousadia toda, também fui sequestrado pelo DOI-CODI do Rio de Janeiro. Naquela altura não ousaram me marcar fisicamente porque eu estava conhecido até no exterior. Mas procuraram me marcar o máximo psicologicamente nos setores de tortura do DOI-CODI da Rua Barão de Mesquita.

Portal - Qual a importância de se relembrar, sempre, toda essa história?

Silveira - Por isso, comemorações como esta do Congresso (sobre os 29 anos da anistia) são importantes para ajudar a passar essa realidade, esse resgate para as jovens gerações. Para que elas tomem pavor de qualquer forma de autoritarismo, de tirania. Lute contra isso e ganhe consciência de que a democracia, por mais deformada que esteja, é infinitamente melhor do que a situação que passamos durante todo o período de ditadura. Mesmo com as deformações pelo poder econômico, pelas elites econômicas que deformam o processo democrático. Na ditadura, foram presos, sofreram, direta ou indiretamente, centenas de milhares de pessoas. Isso as que resistiram. As que não resistiram morreram, ou se exilaram ou foram banidas do país, e muitas delas não quiseram mais voltar porque têm péssimas lembranças, têm medo que pode acontecer outra vez.

Portal - Outra vez?

Silveira - Porque existem certos militares irresponsáveis que fazem ameaças ora veladas, ora abertas.

Portal - Mas o senhor acredita que há mesmo o risco de um novo golpe militar no país?

Silveira - Sobre isso eu lhe diria o seguinte. Eu estou convencido que estão blefando. Primeiro: o mundo de hoje não está em descenso ditatorial. Está em ascenso democrático. Segundo: aqueles que praticaram isso (deram o golpe militar em 1964) eram uma minoria das Forças Armadas com suporte de uma minoria civil. Então, hoje, eles não têm condição nenhuma disso. E se o fizerem vão receber o repúdio da população brasileira e certamente uma ação diferente (daquela de 1964). Por outro lado, o isolamento completo de um mundo que tende a reprimir sempre as ditaduras. Veja bem: se os próprios militares que são democratas, obedientes à lei e ao juramento que fazem isolarem esse grupelho, as Forças Armadas sairão íntegras. Porque um número muito maior foi vítima. Os militares golpistas eram pequenos grupos, fortemente armados e muito bem organizados.

Portal - E os arquivos da ditadura, que já se transformaram em uma "brincadeira" de pique-esconde. Uma hora foram queimados, depois aparece documento...

Silveira - A abertura dos arquivos é outro clamor público. Todo mundo precisa dos arquivos, até porque há o direito a habeas-data, sobretudo o que se refere a si mesmo. E a pessoa precisa não só para a sua história pessoal ou justificação junto a filhos, netos, familiares, mas até para tentar ter uma anistia (ou reparação). E os arquivos secretos não permitem que você corrija um erro passado. Eles todos (militares) se auto-anistiaram. Quem era capitão virou coronel ou general e continua aí infiltrado no poder. Vocês se lembram do depoimento que aquela deputada Beth Mendes fez daquele coronel, hoje general, Brilhante Ustra, que estava implantado na embaixada uruguaia como adido. E ela o reconheceu como um de seus torturadores, chefe de tortura. Há coisas assim flagrantes, chocantes... Se as Forças Armadas entenderem, pagarão muito menos se isolarem esse grupo de torturadores do que dando cobertura a eles. Porque isso não é uma questão de solidariedade de armas ou de classe, é uma questão de justiça, de fidelidade e honradez. Por que é que um militar hoje que não cometeu nenhum delito, que é apenas um vocacionado para as Forças Armadas, estará dando cobertura para assassinos, torturadores e estupradores? Isolando esses criminosos, eles estariam resgatando a imagem das Forças Armadas.

Portal - Mas o senhor é a favor do julgamento, no Brasil, dos criminosos da ditadura?

Silveira - Eles são considerados criminosos de crimes comuns. Não me consta que qualquer estupro, tortura, furto, e tudo isso que aconteceu por parte deles, seja crime político. Isso é crime comum. E onde já se viu você se dar uma lei pela qual você se perdoe de todos os crimes passados, presentes e futuros. A situação é essa, eu vejo assim. Creio que a tese que está percorrendo os gabinetes da ONU é muito correta. Não se deve anistiar torturadores e golpistas porque senão as democracias do mundo desaparecem. Todos aqueles que acham que têm um poderzinho ficam dispostos a golpear.

Portal - O ministro da Justiça, Tarso Genro, levantou essa questão. Mas o presidente Lula resolveu mandar parar o assunto...

Silveira -
Posso dar um palpite. Todo governador, prefeito e presidente da República não gosta de crise, quer governar tranqüilo. Então, tenta botar panos quentes para naturalmente governar mais tranqüilo, porque o governo vai bem economicamente, até socialmente, o prestígio pessoal do presidente é muito grande...Para ele é bom que o país esteja em calma. Mas, eu creio que os ministros que têm essa tese, que é a da ONU, manifestam uma posição moralmente muito segura, muito firme.

Portal - E se o Judiciário for provocado a respeito dessa questão?

Silveira - Olha, essa é uma questão mais de natureza política do que jurídica. São leis políticas, de anistia política, de crime exclusivamente político. E não se diga que haja conexão. Não há conexão nenhuma (entre vítimas e agentes da ditadura) como pretendem da lei (da Anistia). A conexão é quando se trata do mesmo indivíduo. Digamos: dois ou três indivíduos acertam para cometer um assalto, um roubo, um estupro. Esses são crimes conexos, que é um acerto para uma finalidade. Uma finalidade entre os mesmos criminosos. Agora, não se trata de criminoso e vítima. Você não conecta um crime da vítima com o crime do criminoso. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. É preciso punir como o Chile fez, como a Argentina também o fez.


Portal - Ou seja, na sua opinião, a anistia não abrange crimes comuns?

Silveira - Para crime comum, não. Como você vai anistiar um sujeito que foi lá, invadiu sua casa, tomou seu dinheiro, roubou o que quis da casa, sem responsabilidade nenhuma. Levou uma pessoa, estuprou-a, arrebentou-a, até matou-a. É um homicídio como outro qualquer, um estupro como outro qualquer, um furto ou roubo como outro qualquer. Isso é crime comum, não é crime político.