No Cairo, a cidade mais poluída do mundo, o tema seria inevitável, assim como as divergências. Durante a XX Conferência da Academia da Latinidade, a questão da ecologia entrou de contrabando na discussão sobre o conflito de civilizações, ainda que como consequência do debate sobre o relacionamento dos países desenvolvidos com os emergentes
Ecoando o debate que se desenvolve dentro do governo, para a definição da proposta brasileira de redução de emissão de CO2 na reunião de Copenhague, em dezembro, houve uma acalorada discussão sobre a importância da questão ecológica na agenda dos partidos de esquerda na América Latina, a partir também do caso brasileiro, em que a dissidência verde da senadora Marina da Silva coloca em xeque a candidatura oficial da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, justamente a representante da ala “desenvolvimentista” do governo na definição do compromisso brasileiro.
O seminário aconteceu durante dias em que a poluição podia ser “vista”, e não apenas sentida, com a chamada “nuvem asiática” cobrindo a cidade, responsável por doenças respiratórias e cardiovasculares que provocam a morte de cerca de cinco mil pessoas na região do Cairo todos os anos, segundo estudo atribuído ao Serviço de Toxicologia do Centro Hospitalar Universitário de Kasr el Aïni.
Formada por partículas decorrentes de várias fontes de poluição, urbana e industrial, essa nuvem é um fenômeno recorrente no Cairo nesta época do ano devido ao crescente fluxo de automóveis, grande parte deles de modelos antigos e poluidores, e à falta de normas industriais.
O nome reflete um problema que atinge megacidades asiáticas como Shangai, a segunda cidade mais poluída do mundo, segundo o Centro de Informações e Pesquisa Atmosférica de Londres, Dhaka (Bangladesh), e Karachi (Paquistão).
Regiões metropolitanas com população superior a 10 milhões — a grande Cairo tem hoje cerca de 18 milhões de habitantes — passaram de apenas três em 1975 para cerca de 20 hoje.
O sociólogo Candido Mendes, secretário-geral da Academia da Latinidade, começou sua crítica à atuação da esquerda pelo governo de Hugo Chávez na Venezuela, que classificou como um ditador que tenta controlar os demais poderes e a imprensa para impor sua vontade.
Candido Mendes criticou o estímulo à delação instituído pelo governo de Chávez, e classificou o modelo chavista como uma esquerda ultrapassada.
Ele já havia chamado a atenção, em sua palestra, para o perigo de “paradas sutis” e até mesmo regressões no processo democrático com o “conflito crescente entre a democracia representativa e a plebiscitária”.
No entanto, assumiu também a crítica à ecologia, como sendo uma fuga de certa parte da esquerda, que teria transformado o tema em um fetiche, sem levar em conta a necessidade de desenvolvimento dos países emergentes.
Para Candido Mendes, não há dados cientificamente comprovados em que se basear para a definição de políticas que entravem o desenvolvimento de países como o Brasil, que precisam crescer economicamente e produzir empregos.
As contestações partiram de um uruguaio radicado no Brasil, Enrique Larreta, que preside o Instituto de Pluralismo Cultural da Universidade Candido Mendes, e do venezuelano radicado nos Estados Unidos Fernando Coromil, professor de antropologia, presidente do Centro de Graduação da City University de Nova York.
Larreta, que está fazendo pesquisas sobre o bloco dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China) e tem passado períodos na China, relatou os avanços chineses nesse setor, demonstrando que não é incompatível com o crescimento econômico a preocupação com a ecologia, e Coronil, a partir da experiência venezuelana, chamou a atenção para a falta de entendimento da esquerda latinoamericana do que seja a preocupação com a preservação da natureza.
Para ele, a ecologia deveria ser um tema importante para a esquerda da América Latina, mas lamenta que seja um tema importante apenas para grupos minoritários.
“Há grupos que têm uma visão puramente econômica da ecologia, e não a vinculam com o social e o político”, analisa Coronil, para quem o que mais preocupa é que esse não seja um tema para governos progressistas, “ou que se dizem progressistas”, e que “as ações” não sejam “coerentes com as proclamações”.
Coronil diz que a visão deveria ser “não apenas de proteger a natureza, mas de proteger a sociedade dos danos à natureza. Se trata de relacionar o ecológico com o social”, esclarece, na mesma linha de melhorar o nível de bem-estar da população.
Dada a situação da economia, Coronil avalia, quase todos os governos sentem a necessidade de promover o desenvolvimento econômico para resolver problemas sociais. “A vantagem comparativa que a América Latina tem sobre os demais países emergentes como a China não é a mão de obra barata, mas os recursos naturais”, mas os governos, mesmo que tenham boa vontade, “acabam promovendo políticas econômicas que de alguma forma ficam dependentes desses produtos, seja gás, petróleo, cobre, ou os agrícolas”.
Coronil defende que o dinheiro desses recursos naturais, especialmente no caso do petróleo em abundância na Venezuela e no Brasil, deveria ser investido na modernização das políticas energéticas, com a integração dos setores produtivos.
Mas, na sua análise, uma “lógica per versa” acaba aprofundando os danos ecológicos.
Para Fernando Coronil, “o petróleo é um caso típico”.
Ele escreveu um livro, “O Estado Mágico”, em 1997 onde relata os equívocos que foram cometidos devido à abundância do petróleo em seu país.
(Amanhã, o gato verde chinês)