domingo, 17 de julho de 2022

Luiz Sérgio Henriques* - A democracia na América – e no Brasil

O Estado de S. Paulo

O ponto central do ataque às democracias consiste na deslegitimação do sistema eleitoral – nos Estados Unidos e no Brasil.

A generalidade do cerco às democracias, mesmo as que pareciam historicamente enraizadas, é um fato que dispensa maiores comentários e, não por acaso, o caráter por assim dizer estrutural da fragilidade delas está a desafiar a imaginação dos teóricos e a capacidade das forças comprometidas com sua defesa. Vitórias eleitorais de democratas, inclusive os que nada têm de radicais e se mostram dispostos ao compromisso, logo se revelam como pausa precária em batalha desigual, como se o adversário continuasse à espreita, forte e seguro de si, sentindo-se natural porta-voz do espírito do tempo.

Peritos reconhecidos na descrição da morte lenta de democracias contemporâneas, sem que a maioria dos cidadãos saiba como evitar o desastre pressentido, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt alertam, no caso norte-americano, para o tipo de ofensiva já agora em preparação. Não mais – dizem – o simulacro do fato revolucionário, mediante o assalto desordenado ao poder, mas a insidiosa partidarização dos mecanismos eleitorais por republicanos inclinados à subversão da ordem institucional. Tais mecanismos poderão estar de tal modo viciados em 2024 que, de forma “suave” e aparentemente legal, uma vontade minoritária acabe por se impor no colégio eleitoral e, consequentemente, nos corpos legislativos e na própria Presidência.

Luiz Carlos Azedo - As metamorfoses do governo Bolsonaro

Correio Braziliense

O isolamento de Bolsonaro no Ocidente, antipatizado pela opinião pública e em litígio com os principais líderes mundiais, inclusive o presidente Biden, fez de Putin um parceiro natural

Uma das dificuldades de caracterização do governo do presidente Jair Bolsonaro decorre do fato de que não existe um projeto político claro que oriente as ações, tudo acontece na base do improviso, diante da necessidade de manter o poder. Por essa razão, desde o primeiro momento, mas principalmente depois da derrota de seu aliado principal, Donald Trump, sempre considerei a hipótese de que haveria uma aproximação estratégica de Bolsonaro com o presidente da Rússia, Vladimir Putin. Só não imaginava que isso viria a ocorrer em razão da guerra da Ucrânia. Sobre isso falaremos mais adiante.

Inicialmente, cabe destacar, tão logo tomou posse, o governo Bolsonaro assumiu características bonapartistas, em contradição com uma ordem democrática presidida pela Constituição de 1988. Por que essa caracterização? Ora, em razão de Bolsonaro se colocar acima da sociedade e se apoiar essencialmente nas Forças Armadas, constituindo um governo com grande número de militares, maior até do que o dos presidentes Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo, todos generais-presidentes. Grosso modo, o bonapartismo consiste no fato de que um indivíduo se coloca acima de todas as partes do Estado e da sociedade, ou seja, fulaniza o vértice de poder.

Merval Pereira - Ainda o golpe

O Globo

O fantasma de um golpe domina as conversas não apenas dos cidadãos comuns, mas ainda mais as dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Não foi aleatória a escolha do objetivo da terceira rodada de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), que se dedicou a avaliar se o TSE estabeleceu mecanismo de gestão de riscos adequado para garantir proteção aos processos críticos do  sistema eleitoral, de forma a evitar a interrupção da normalidade das eleições em caso de incidentes graves, falhas ou desastres, ou assegurar a sua retomada em tempo hábil a não prejudicar o resultado das eleições.

O mais recente temor das autoridades que lidam com os processos eleitorais é a possibilidade de um ataque cibernético inviabilizar a remessa dos resultados de uma ou várias regiões do país para a central do TSE em Brasília. Na eleição municipal de 2020, houve uma falha no sistema que atrasou em 3 horas a divulgação dos dados. Foi feito um esforço extremo para que fosse possível anunciar os primeiros resultados ainda no dia da eleição, o que foi feito somente às 23h55m.

Dorrit Harazim - Estamos cegos?

O Globo

Raras vezes houve traficância política tão espúria no Congresso Nacional, em detrimento de um Brasil viável no futuro

Existe um ponto cego natural no campo de visão de todo ser humano. Mesmo para quem é dotado de visão perfeita, enxerga atrevidamente bem de longe e perto e nunca terá necessidade de usar óculos. Esse ponto cego tem nome — mancha de Mariotte, em homenagem ao físico francês que o descobriu quatro séculos atrás. Nunca nos impediu de tocar a vida. Aliás, podemos ignorar a existência dessa minúscula área da retina de cada olho desprovida de receptores de luz. Isso porque as duas manchas monoculares não se sobrepõem, e nossa visão binocular compensa esse defeito de fábrica que, não fosse assim, nos impediria de ver em toda a amplitude aquilo que olhamos.

Bernardo Mello Franco – O pacifismo do general

O Globo

O general Paulo Sérgio Nogueira é incansável. A cada semana, inventa uma nova forma de questionar o sistema eleitoral. Na quinta-feira, ele surpreendeu pela ousadia. Propôs uma votação paralela, em cédulas de papel, a pretexto de testar a segurança da urna eletrônica.

O ministro da Defesa lançou o despautério em audiência pública no Senado. Pelas companhias, parecia se sentir em casa. A sessão foi presidida pelo bolsonarista Eduardo Girão, que se notabilizou por fazer propaganda da cloroquina na CPI da Covid. O plenário foi tomado por governistas associados à defesa do voto impresso.

Sem contraditório, o general falou o que quis. Definiu a própria atuação como “eminentemente técnica” e se declarou interessado em “fortalecer a democracia”, apesar do endosso à pregação golpista do chefe. Ele também disse adotar um “espírito colaborativo” em relação ao TSE, a despeito das tentativas de enquadrar e constranger ministros da Corte.

Míriam Leitão - Economia tenta salvar Bolsonaro

O Globo

Jair Bolsonaro viverá agora um bom momento de sua campanha eleitoral. Haverá deflação em julho, e talvez agosto, a projeção do PIB está sendo revista para cima, está em curso uma farta distribuição de dinheiro público às vésperas das eleições. Tudo foi feito passando por cima do estatuto da Petrobras, da autonomia tributária dos estados, das leis eleitorais, das normas fiscais. O Congresso se comportou como um puxadinho do Planalto e armou o palanque no qual ele, na sexta-feira, acenou aos que resistem mais aos seus apelos: mulheres, pobres e nordestinos. Num erro histórico, a oposição votou a favor de que Bolsonaro quebre leis eleitorais em proveito próprio às vésperas das eleições.

A inflação sempre tira voto do governante quando sobe. E quando acontece o contrário e ela cai? A mudança de humor do eleitorado não é automática, depende de muitos fatores, e tem a ver com a sensação de conforto econômico que nem sempre se consegue ter num momento de queda da renda como agora. Mesmo assim, ele pode subir alguns pontos, e isso ser suficiente para levar a disputa ao segundo turno.

Elio Gaspari - André Esteves produziu uma boa notícia

O Globo

Em 2019, o banqueiro André Esteves (BTG) teve uma ideia. Ele e seu sócio Roberto Sallouti resolveram criar uma instituição de ensino superior sem fins lucrativos, nos moldes dos institutos de tecnologia de Massachusetts e da Califórnia, surgidos nos Estados Unidos no século XIX. Assim começou o Inteli, Instituto de Tecnologia e Liderança. Esteves doou R$ 200 milhões para a construção do campus e os custos operacionais.

(Nunca é demais lembrar que a vigorosa classe média americana dos anos 50 do século passado foi produzida em boa parte pela G.I. Bill, de 1944, pela qual o presidente Franklin Roosevelt garantiu matrículas em universidades para 2,2 milhões de soldados que estavam combatendo na Europa e no Japão.)

Passados três anos, o Inteli existe, funciona em São Paulo num campus de 10 mil metros quadrados, e as aulas começaram para 180 estudantes (28% negros ou pardos). Oferece cursos de Ciências e Engenharia da Computação e Sistemas da Informação. A mensalidade custa R$ 5.500, mas metade dos alunos têm bolsas parciais ou totais.

Eliane Cantanhêde - Não foi por um punhado de areia

O Estado de S. Paulo

Quem é bobo? Quem acredita que não houve motivação política no assassinato do petista Arruda?

Ao ouvir o discurso do presidente Jair Bolsonaro na promulgação da PEC da reeleição, na quinta-feira, fazendo loas às mulheres e aos nordestinos, uma moça simples, mas bem informada, comentou: “Ele acha que todo mundo é bobo? Que a gente acredita em qualquer coisa?” Mulher e nordestina, sim, mas não petista nem esquerdista, ela é apenas mais uma desencantada com tudo que está aí.

As mesmas perguntas valem para a conclusão meteórica de que o assassinato do petista Marcelo Arruda pelo bolsonarista Jorge Guaranho não teve motivação política. Todo mundo é bobo? Quem acredita numa coisa dessas? A perplexidade foi geral, no mundo político e jurídico, inclusive pela gritante coincidência entre a narrativa dos advogados do assassino, a versão dos policiais do Paraná e o discurso do presidente Jair Bolsonaro, do vice Hamilton Mourão e do governo, de que foi crime comum.

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira* - Pregações destrutivas

O Estado de S. Paulo

Às ladainhas armamentista e da discórdia se soma uma que visa ao desprestígio dos Poderes e das instituições do Estado.

 “Se eu não estivesse armado, a minha reação teria sido um tapa nas costas, um pontapé no traseiro, no máximo um empurrão.” No entanto, após ter sido magoado pela vítima, o agressor sacou da arma que portava e atirou. Assim, com intenso sofrimento e claros sinais de arrependimento, ele forneceu uma patética lição a todos os apologistas das armas. Eu indago: quantos e quantos assassinatos teriam sido evitados, se o agressor não estivesse armado? A sua raiva, o seu ciúme, a sua frustração, seja lá o sentimento que o moveu, seriam extravasados de outra forma, de uma forma não cruenta.

As estúpidas brigas de trânsito têm levado ao crime. Uma fechada, uma brecada abrupta, uma falta de sinal, quaisquer motivos, por mais insignificantes que sejam, levam motoristas a sair do carro, discutir e, não raras vezes, tirar a vida de alguém. Motivos insignificantes provocam uma consequência extrema: interrompem a vida alheia.

Janio de Freitas - Muito além dos votos

Folha de S. Paulo

Achar que Bolton, Trump, Bolsonaro, Lava Jato, Moro, Dallagnol formam mera teoria da conspiração, é coisa de impostor

O apoio majoritário do eleitorado é pouco para garantir a vitória. A Constituição o dá como a condição decisiva, mas sua força moral e jurídica é muito inferior à de seus inimigos, baseada nos fatores opostos.

Artifícios e artimanhas ilegítimas no processo eleitoral, quando não criminais, têm sido a sina latino-americana. Exceto quanto a 64, no Brasil há pouco interesse pelo conhecimento desse submundo, com revelações apenas esparsas e quase todas casuais. Em maior número, talvez, vindas do exterior.

eleição lavajatista de 2018, cujos fatores decisivos são conhecidos só na superfície mais grosseira, recebeu agora uma inconfidência sugestiva.

Ex-conselheiro de Segurança Nacional de Trump, John Bolton fortaleceu sua crítica ao golpe trumpista com este argumento: fala "como alguém que já ajudou a planejar golpes de estado, não aqui, mas, você sabe, em outros lugares".

Nos 17 meses que antecederam a demissão de Bolton por Trump, em 10 de setembro de 2019, houve duas articulações golpistas contra processos eleitorais para presidências latino-americanas.

A partir da conclusão de observadores da OEA, a reeleição do índio Evo Morales na Bolívia foi dada como fraudulenta, e ele decidiu renunciar em 10 de novembro de 2019. Aguentara três meses de fortes manifestações, que vinham de antes da eleição (13 de outubro de 2019) já com a acusação de fraude —como no Brasil de 2018, como nos EUA de 2020. Não por táticas isoladas, claro.

Bruno Boghossian - Bolsonaro e o juízo final

Folha de S. Paulo

Presidente agora diz que salvação do espírito depende de comportamento na campanha eleitoral

Em pouco mais de 24 horas, Jair Bolsonaro mandou o mesmo recado para duas plateias diferentes da Assembleia de Deus. Depois de fazer sua conhecida pregação contra a esquerda, o presidente afirmou a pastores e fiéis no Maranhão e em Minas Gerais que a salvação de seus espíritos depende do comportamento de cada um deles na campanha eleitoral.

"No dia do ponto final, nós temos um currículo para ser apresentado. Esse currículo são nossas ações ao longo de toda a vida, bem como as nossas omissões. Quem se abstém, quem diz 'eu não quero nem esse nem aquele' está errando também", disse Bolsonaro em Vitória do Mearim (MA), na quinta-feira (14). "Esse currículo é o que vai nos dizer se teremos ou não a sonhada vida eterna."

O presidente tenta acrescentar uma nova camada à briga pelo voto evangélico. Bolsonaro costuma fazer ofertas concretas aos fiéis, como ações relacionados à política de drogas ou ao aborto. Agora, ele cobra apoio desse grupo como uma espécie de imperativo espiritual.

Ruy Castro - E aquela do Nelson?

Folha de S. Paulo

O que Nelson Rodrigues dizia do Brasil nos anos 70 faz ainda mais sentido hoje

Nelson Rodrigues nos ensinou que toda unanimidade é burra, que sofremos do complexo de vira-lata e só os profetas enxergam o óbvio. E muitas outras frases que as pessoas repetem já sem saber da autoria. Menos famosas são as que ele escreveu sobre o Brasil nos anos 70 e ainda fazem total sentido. Exemplos.

"Outrora os melhores pensavam pelos idiotas. Hoje os idiotas pensam pelos melhores." "O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro." "Com o tempo e o uso, todas as palavras se degradam. Por exemplo: ‘liberdade’. Hoje, ‘liberdade’ é a mais prostituída das palavras."

"O ‘homem de bem’ é um cadáver mal informado. Não sabe que já morreu." "Tomem nota: ainda seremos o maior povo ex-católico do mundo." "Não há no mundo elites mais alienadas do que as nossas." "Subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos." "Hoje é muito difícil não ser canalha. Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." "No Brasil, quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte."

Vinicius Torres Freire - A morte invisível dos velhos

Folha de S. Paulo

Considerando demais causas de morte em 2019, a Covid seria o terceiro mal mais mortífero no estado de SP

Neste ano, 83% dos mortos de Covid tinham 60 anos ou mais em São Paulo. Durante a epidemia inteira, foram 69%. É um número parecido com aquele da gripe/pneumonia no estado: 85% dos mortos por essas doenças em 2019 e 2020 tinham 60 anos ou mais (ainda não há dados de 2021).

Como se fosse uma caricatura da profecia do monstro no poder, a Covid se tornou uma nova grande gripe assassina.

Ficamos acostumados à Covid, a suas mortes e sequelas, assim como as instituições do país se acostumaram a Jair Bolsonaro. A destruição continua, mas faz parte da paisagem. Assim também nos acostumamos à pobreza. No ano que vem, vamos para o DÉCIMO ano sem crescimento. Na verdade, ainda seremos muito mais pobres do que em 2014.

No caso da peste, nos acostumamos, por ora, a 250 mortes por dia no Brasil; a 69 por dia no estado de São Paulo. Nesse ritmo, a epidemia terá matado 700 mil pessoas no país às vésperas do segundo turno da eleição. Ainda haverá alguma comoção com a efeméride do número redondo de horror?

Muniz Sodré - A marca de Caim

Folha de S. Paulo

A América começa a descobrir, na identificação entre liberdade e gozo do tiro, o fundo mítico da tese de Hobbes

Se não nesta semana, é grande a probabilidade de que na próxima ocorra nos EUA um assassinato em massa, quando um indivíduo munido de armas poderosas atira aleatoriamente sobre outros. O "mass shooting" é tão americano quanto a "apple pie" ou o Halloween.

Não se equivalem, certo, mas são típicos do país que celebra no dia 4 de julho o seu excepcionalismo mundial e um sentimento nacional de liberdade associado à posse indiscriminada de armas. Este ano, na região de Chicago, a festa foi interrompida por um atirador, que matou celebrantes na rua a tiros de fuzil.

Nunca se ofereceu uma explicação satisfatória para o fenômeno. Historicamente, o primeiro caso teve como autor Howard Barton Unruh, que, em 6 de setembro de 1949, matou 13 vizinhos a tiros de pistola Luger nas ruas de Camden, Nova Jersey. Unruh tinha sido herói da Primeira Guerra Mundial. Mas o fenômeno expandiu-se depois da Segunda Guerra, a cabo de sociopatas, numa atmosfera social turbinada pela "democratização" das armas.

Hélio Schwartsman - Precisamos de um STF?

Folha de S. Paulo

Richard Bellamy defende o fechamento das cortes e alega que magistrados padecem dos mesmos vieses das pessoas comuns

Espero que o STF não mande me prender. É que hoje vou falar de um autor que defende o fechamento desta corte. Aliás, de todas as cortes constitucionais. Trata-se de Richard Bellamy, professor de ciência política do University College London. Eu não o conhecia. Quem me chamou a atenção para ele foi meu filho David, entusiasmado com a ideia.

David não é um bolsonarista feroz. Muito pelo contrário, é um jovem estudante de filosofia e, como tal, não resiste ao prazer estético de sistemas que não dependam de valores exógenos. Bellamy propõe um desses. Está em um capítulo de livro: "Republicanism, democracy, and constitutionalism" in "Republicanism and Political Theory".

Cristovam Buarque* - Tripla insensatez

Blog do Noblat / Metrópoles

Dirigentes e opositores promovem tragédia histórica

Há livros dedicados a analisar a estupidez política de líderes do passado. Não conheço livro que analise a insensatez múltipla de dirigentes e opositores, promovendo tragédia histórica. O Brasil de 2022 será um tema de análise da tripla insensatez na política.

De um lado, o Presidente com a estupidez de anunciar com meses de antecedência que não respeitará o resultado das urnas. Insensato aos fatos, porque para ter sucesso, o golpe exige surpresa; e porque, se tiver êxito, é muito provavelmente que seja descartado, uma vez que não liderará as Forças Armadas, depois que rasgar 56 milhões de votos e a Constituição que lhe dá legitimidade para compensar sua total falta de liderança. Além disto, basta ler história para saber que nenhuma ruptura do pacto constitucional provoca coesão e rumo duradouro para o país.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais

Ruínas fiscais

Folha de S. Paulo

Deterioração das práticas orçamentárias obstrui promoção do bem-estar da maioria da população

As mais recentes investidas do Executivo e da vasta maioria do Legislativo contra as instituições da responsabilidade fiscal legarão uma terra arruinada para os próximos mandatários e uma conta soberba a ser paga sobretudo pela parcela mais pobre da sociedade brasileira.

Os ataques bárbaros ao que assegurava um mínimo de compromisso com o equilíbrio e a previsibilidade dos orçamentos federais não se restringiram ao tropel atiçado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e pelo deputado Arthur Lira (PP-AL) na aprovação da PEC do desespero eleitoral.

As cargas de assalto também atingiram a Lei de Diretrizes Orçamentárias, norma que antecede e baliza a elaboração do Orçamento de 2023, entre outros dispositivos legais erigidos no farfalhar destes últimos dias de farra parlamentar.

O pagamento das emendas de relator —fina flor do clientelismo, da ineficiência e da corrupção— escapou por pouco de se tornar obrigatório. Esse mecanismo obscuro, pelo qual a elite do Congresso decide quem recebe e quem não recebe bilhões arrecadados do contribuinte, ainda assim saiu fortalecido, quando deveria ter sido extinto.

Conto | Machado de Assis - A Igreja do Diabo*

Capítulo primeiro

De uma ideia mirífica

Conta um velho manuscrito beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes, sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo, nada regular. Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.

- Vá, pois, uma igreja - concluiu ele -. Escritura contra Escritura, breviário contra breviário. Terei a minha missa, com vinho e pão à farta, as minhas prédicas, bulas, novenas e todo o demais aparelho eclesiástico. O meu credo será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja, uma tenda de Abraão. E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja será única; não acharei diante de mim nem Maomé, nem Lutero. Há muitos modos de afirmar; há só um de negar tudo.

Dizendo isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu os braços, com um gesto magnífico e varonil. Em seguida, lembrou-se de ir ter com Deus para comunicar-lhe a ideia, e desafiá-lo; levantou os olhos, acesos de ódio, ásperos de vingança, e disse consigo: "Vamos, é tempo." E rápido, batendo as asas, com tal estrondo que abalou todas as províncias do abismo, arrancou da sombra para o infinito azul.

Capítulo II

Entre Deus e o Diabo

Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou ao céu. Os serafins que engrinaldavam o recém chegado detiveram-se logo, e o Diabo deixou-se estar à entrada com os olhos no Senhor.

- Que me queres tu? - perguntou este.

- Não venho pelo vosso servo Fausto - respondeu o Diabo rindo -, mas por todos os Faustos do século e dos séculos.

- Explica-te.

- Senhor, a explicação é fácil; mas permiti que vos diga: recolhei primeiro esse bom velho; dai-lhe o melhor lugar, mandai que as mais afinadas cítaras e alaúdes o recebam com os mais divinos coros...

- Sabes o que ele fez? - perguntou o Senhor, com os olhos cheios de doçura.

- Não, mas provavelmente é dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito que o céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço, que é alto. Vou edificar uma hospedaria barata; em duas palavras, vou fundar uma igreja. Estou cansado da minha desorganização, do meu reinado casual e adventício. É tempo de obter a vitória final e completa. E então vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação... Boa ideia, não vos parece?

- Vieste dizê-la, não legitimá-la - advertiu o Senhor.

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Os velhos

 

Música | Orquestra Sinfónica Nacional de Costa Rica - Corcovado (Tom Jobim)