sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Merval Pereira - Autogolpe

- O Globo

A melhor resposta da democracia americana ao autogolpe que o (ainda?) presidente Donald Trump tentou ao incentivar seus militantes a impedir a formalização pelo Congresso da eleição de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos seria utilizar a 25ª emenda para não deixa-lo continuar no cargo por incapacitação física, ou impedi-lo, com o apoio da Câmara, que tem maioria Democrata, e do Senado, com maioria Republicana.

“Autogolpe” é como o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, co-autor do livro “Como as Democracias Morrem”, classifica a invasão do Congresso em entrevista à BBC em espanhol. Consequência de "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump. Também foi um assunto polêmico desde que, na campanha presidencial, o candidato a vice, General Hamilton Mourão, admitiu o ”autogolpe” como uma possibilidade no cenário político brasileiro.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares", e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Essa análise de Levitsky vai ao encontro de diversos estudos acadêmicos sobre a militarização do governo Bolsonaro, ou a “bolsonarizacao” dos quartéis, que estamos discutindo nos últimos dias. Até ontem, podíamos especular sobre a possibilidade de termos aqui os acontecimentos decorrentes da negação de Trump em aceitar a derrota na eleição presidencial. Mas Bolsonaro deixou claro, ao apoiar Trump nas acusações de fraude nas eleições americanas, que pode haver, sim, uma rebelião como a que o presidente americano organizou.

Ao dizer que podemos ter coisa pior, se não houver cédula física nas próximas eleições, ameaça e pressiona a Justiça Eleitoral. Especulamos sobre o assunto quando ele, no início do governo, tentou várias vezes desmoralizar o Congresso, o STF, a imprensa independente, e seus militantes mais radicais atacaram com fogos de artifício o STF. Também quando fez comício contra as instituições em frente ao quartel-general do Exército em Brasília, numa clara provocação.

A especulação ganha foros de verdade quando ele diz claramente que vai haver problema “mais sério” entre nós. O presidente não convive com a democracia, autoritário, querendo sempre mais poder. Por isso, as instituições da democracia deveriam impedir que essa tendência autoritária se revertesse em influência nas Forças Armadas.

Fernando Gabeira - O ano e seu adversário

- O Estado de S. Paulo

2021 pede sabedoria tática, que passa por denunciar a política destrutiva de Bolsonaro

A virada do ano confirmou, para mim, as prioridades que me parecem óbvias no Brasil de 2021: vacinação em massa e retomada da economia com ênfase em sustentabilidade e responsabilidade social. Uma retomada verde.

No entanto, não adianta muito pura e simplesmente repetir prioridades. Em primeiro lugar, não significam tudo e, em segundo, não resolvem as emergências.

A pandemia voltou a se agravar, com o aumento de casos em dezembro. A expectativa de alguns cientistas é de que tenhamos um dos mais tristes janeiros da História.

Respondendo a uma pergunta do deputado Ivan Valente (PSOL-SP), a comissão do governo encarregada do tema afirmou que não havia previsão de uma segunda onda de coronavírus no País. Isso significa que a existência real de uma segunda onda, agravada pelos excessos das festas de fim de ano, vai se desenrolar diante da indiferença do governo em Brasília.

Nessas circunstâncias, a vacina e a retomada verde não produzem um milagre. O caso da Inglaterra revela como o processo de vacinação, sobretudo na fase inicial, não transforma a realidade.

Luiz Carlos Azedo - O normal e o patológico

- Correio Braziliense

O Brasil já registra 200 mil mortos por vítimas da covid-19. Por ora, objetivamente, nem o ministro da Saúde nem os brasileiros sabem quando começa a vacinação

O ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, numa longa entrevista coletiva de sua equipe — na qual falou muito e foi embora sem responder perguntas —, anunciou a intenção de compra de 100 milhões de doses da vacina CoronaVac, de origem chinesa, produzida pelo Instituto Butantan, do governo de São Paulo, com o propósito de iniciar a vacinação dos grupos de risco, primeiramente, o pessoal da área de saúde. Aproveitou a ocasião para criticar duramente a imprensa, acusando a mídia de não se ater aos fatos e fazer interpretações fantasiosas sobre a atuação do governo e a sua própria no combate à pandemia.

Ao cobrar objetividade da imprensa, Pazuello tangenciou um universo que, talvez, tenha estudado na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, por onde passam oficiais de alta patente: a sociologia. É uma disciplina desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, ao qual, diga-se de passagem, se aplicariam com perfeição as críticas que fez à interpretação dos fatos relacionados à pandemia por parte dos jornalistas. Émile Durkheim, o pai da sociologia moderna, foi o primeiro a defender a objetividade dos fatos sociais, ou seja, sua externalidade em relação ao observador, como pilar metodológico de estudo das sociedades.

A grande sacada de Durkheim foi distinguir o fato social normal — aqueles que decorrem do desenvolvimento da sociedade dentro de uma norma comum, um padrão que visa o aprimoramento dos indivíduos e a manutenção da coesão e da vida em sociedade — do patológico. O fato social normal observa a ordem institucional, a vida individual mantém em funcionamento os laços solidários que unem os indivíduos de um grupo. O fato social patológico desenvolve-se fora da norma, como uma doença. Ele é perigoso, e quando atinge uma dimensão maior, pode afetar negativamente a sociedade.

Ricardo Noblat - Se não deu certo nos Estados Unidos, aqui tampouco dará

- Blog do Noblat | Veja

Avisem a Bolsonaro que ele está atrasado

O presidente Jair Bolsonaro usou os acontecimentos espantosos dos Estados Unidos que chocaram o mundo para voltar a desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. E sem apresentar provas do que disse, assim como fez Donald Trump.

Vociferou: “Aqui no Brasil, se tivermos o voto eletrônico em 2022, vai ser a mesma coisa. A fraude existe. Aí a imprensa vai falar: ‘sem provas, diz que a fraude existe’. Eu não vou responder esses canalhas da imprensa mais, tá certo?”

Não parou por aí. E não poderia ser mais explicitamente ameaçador do que foi: “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter um problema pior que os Estados Unidos”.

Antes de saber que, pressionado, Trump criticara os manifestantes que incitados por ele invadiram o prédio do Congresso americano, Bolsonaro havia justificado assim o que por lá aconteceu:

– O pessoal tem que analisar o que aconteceu nas eleições americanas agora. Basicamente, qual foi o problema, a causa dessa crise toda? Falta de confiança no voto. Lá o pessoal votou e potencializaram o voto pelos correios por causa da tal da pandemia e houve gente que votou três, quatros vezes. Mortos votaram. Foi uma festa lá. Ninguém pode negar isso daí.

Em troca, engoliu calado às censuras veladas de três ministros do Supremo Tribunal Federal. Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, declarou que o processo eletrônico nunca apresentou qualquer evidência ou indícios de fraudes registradas no tempo do voto em cédula.

Cesar Maia pede aliança democrática

“Teremos um 2º turno muito diferente à Presidência em 2022”, diz Cesar Maia

Para ex-prefeito do Rio, disputa ao Planalto será das mais abertas desde 1989, sem favoritos para as duas vagas na etapa final

Por Cristian Klein - Valor Econômico

 RIO -  “Ninguém é carta fora do baralho” para a próxima corrida presidencial - nem o ex-ministro da Justiça e ex-juiz Sergio Moro - e a eleição em 2022 tem o potencial de ser a mais disputada desde 1989, com as duas vagas no segundo turno em aberto, afirma o vereador e ex-prefeito do Rio por três mandatos Cesar Maia (DEM). O cenário, prevê, será bem distinto do padrão de competição que opôs petistas e tucanos por duas décadas e que desmoronou parcialmente em 2018, mas apontava ao menos duas forças políticas claras. A tendência agora é de incerteza. “Teremos um segundo turno muito diferente de 2018. Diferente porque não haverá favorito. Em 2018 os dois concorrentes no segundo turno estavam pré-definidos”, lembra, em referência a Jair Bolsonaro, então candidato pelo PSL, e Fernando Haddad (PT).

Pai do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM), Cesar defende, em entrevista, a união do que classifica de “forças democráticas” para uma aliança que pode até se fragmentar no primeiro turno, mas não na segunda etapa. “O fundamental é não termos uma fragmentação no segundo turno e o poder aglutinador prevalecer”, afirma. Cesar Maia sinaliza que nesse grupo há espaço para eventual adesão à candidatura de centro-esquerda de Ciro Gomes (PDT), algo que foi rechaçado em recente entrevista ao Valor pelo correligionário Eduardo Paes. O prefeito do Rio disse que o PDT demonstrou, regionalmente, nos últimos anos, não querer praticar uma política de alianças ao lançar candidatos contra ele e, por isso, Ciro não mereceria receber apoio. “Não se pode confundir eleições nacionais com municipais. É outro panorama”, diverge o ex-prefeito.

Cesar Maia advoga a ideia de um “centro democrático” mas evita falar do futuro eleitoral do filho, um dos maiores responsáveis no Congresso por articular o campo político. Prefere não comentar a possibilidade da participação de Rodrigo na corrida presidencial - ainda que como vice. Em 2018, o pai declarou em entrevista ao Valor apoio ao tucano Geraldo Alckmin em desacordo à pretensão do filho que buscava concorrer ao Planalto. “Cabe a ele responder. Estamos muito longe de 2022. Pense em 2016”, esquiva-se.

César Felício - Sinais de alerta

- Valor Econômico

Ao se olhar para o futuro, é bom recordar as lições de 1984

Poucos homens públicos personificaram a elite nacional como Jorge Bornhausen. Aos 83 anos, o ex-governador de Santa Catarina, ex-presidente do PDS, partido de sustentação do regime militar, ex-ministro nos governos Sarney e Collor e dirigente máximo do PFL até o início dos anos 2000 continua frequentando círculos políticos e empresariais em São Paulo. Tenta, na medida de suas forças, lançar um alerta em relação a 2022: para se articular uma alternativa a Bolsonaro fora do espectro da esquerda, é preciso conversar sem pretensões presidenciais colocadas.

Bornhausen votou em Bolsonaro no segundo turno das eleições presidenciais de 2018, movido por sua repulsa ao PT, nada mais do que isso. Afirma que não tinha ilusão alguma. “Não podia esperar muito de alguém que fez a apologia do coronel Ustra ao votar o impeachment de Dilma Rousseff”, afirmou, se referindo ao militar que comandou o DOI-Codi paulista nos anos 70 e se envolveu em diversos episódios de tortura a presos políticos.

Ele é taxativo: o presidente da República não tem equilíbrio mental, nem capacidade e nem competência para o cargo. Suas declarações recentes sobre o processo político nos Estados Unidos e seu comportamento relacionado à covid-19 reforçaram esta impressão. O saldo administrativo lhe parece desastroso.

No entanto, nada leva a crer que Bolsonaro não conclua o mandato, mesmo com a incapacidade do governo de governar. A pandemia, que ultrapassou ontem a marca dos 200 mil mortos, conspira a favor da permanência. “Política não se faz sem reunir as pessoas”, comenta Bornhausen, referindo-se tanto às ruas quanto aos gabinetes em Brasília. O agravamento da doença constrange a mobilização dos opositores do presidente, mas não a de seus aliados.

José de Souza Martins - Conformismo dos 37%

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Essa parcela da população, que julga o governo Bolsonaro ótimo e bom, entende que é melhor ter o muito menos do que o nada: não há nenhum contraponto ao atual governo

A recente pesquisa nacional de opinião, do Datafolha, sobre o desempenho do presidente da República e seu governo, feita entre 8 e 10 de dezembro, constatou que 37% dos brasileiros julga-o ótimo e bom. Ele manteve a popularidade da pesquisa de 29 e 30 de agosto. Portanto, para mais de 70 milhões de brasileiros, o provavelmente mais complicado governante de nossa história republicana atravessa incólume um dos piores períodos da história social e política do Brasil.

A causa dessa anomalia pode estar no fato de que o notório despreparo do governante é contrabalançado pela gravidade da situação adversa: os 37% entendem que é melhor ter o muito menos do que o nada. Não há nenhum contraponto político ao atual governante. Esse número não é regulado pelo melhor, mas pelo pior da situação anormal, que é ele mesmo.

Bolsonaro não é definitivo. Ele é o inevitável. Ideologicamente capturado pela pandemia, tornou-se expressão política da doença. Ele é a política doente.

Fernando Abrucio*- O que está em jogo é o silêncio da Câmara

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

 Eleição para a Mesa da Câmara definirá se teremos efetiva separação entre os Poderes ou cooptação de um dos pilares da democracia pelo bolsonarismo

Dois mil e vinte e um já começou, mas o ano político se inicia em 1º de fevereiro, quando forem eleitos os presidentes da Câmara e do Senado. Ambas as Casas são muito importantes para o equilíbrio democrático do país, realizando a dupla tarefa de tomar as decisões últimas sobre as legislações nacionais e de gerar contrapesos ao Executivo. Mas a disputa entre os deputados terá um efeito mais forte no cenário político porque é na Câmara se reside a esperança tanto do presidente Bolsonaro como daqueles que desejam um Congresso mais independente. O resultado desse pleito definirá se haverá uma efetiva separação de Poderes ou a cooptação de um dos sustentáculos da democracia pelo Palácio do Planalto.

Cinco fatores explicam a maior relevância política da eleição para presidente da Câmara. A primeira é que o Senado, mesmo que eleja alguém razoavelmente alinhado ao Executivo, tem uma configuração que lhe garante maior independência. Algumas razões estruturais explicam esse comportamento senatorial. Os senadores, em geral, pretendem representar o conjunto de seus Estados, o que lhes leva a ter maior parcimônia decisória, tornando-os menos vinculados a uma temática ou à pressão de um único grupo de interesse.

Além disso, são menos suscetíveis ao fisiologismo do varejo que os deputados, porque normalmente têm uma posição política mais forte, advinda de sua trajetória com experiência em vários postos públicos - alguns são ex-governadores, foram ministros e até presidente da República -, o que se soma à aquisição de um mandato maior, de oito anos.

Rogério L. Furquim Werneck* - Precariedade e popularidade

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Atrasos inexplicáveis na vacinação tenderão a ser integralmente debitados à incompetência do governo

O terceiro ano do governo Bolsonaro continuará marcado pela persistência de um quadro de alarmante precariedade em áreas absolutamente cruciais para o país. Do combate à segunda onda da pandemia à vacinação tardia e desorganizada da população. Da condução improvisada da política fiscal a novas e reiteradas evidências de falta de compromisso efetivo do governo com a preservação do teto de gastos.

Tudo isso contribuirá para manter a economia em interminável clima de suspense, que dificultará a redução de risco que se faz necessária para uma recuperação vigorosa do nível de atividade, bem fundada na retomada dos investimentos. O país continuará restrito por um horizonte bem mais limitado do que seria possível e desejável.

Que planos tem Bolsonaro para a segunda metade do seu mandato? O que lhe sobra é 2021, ainda com pandemia e tudo, e o ano eleitoral de 2022. Sejam quais forem seus planos, sobram evidências de que já não há no Planalto qualquer disposição de levar adiante reformas fiscais necessárias. Todas as medidas de ajuste fiscal de mais fôlego vagamente aventadas pela equipe econômica no ano passado foram sistematicamente solapadas pelo Planalto no nascedouro (gatilhos, reforma administrativa, privatização).

O esforço de ajuste fiscal de 2020 redundou em nada. O Ministério da Economia alega que não ter havido prorrogação do auxílio emergencial ou criação de programa substituto (Renda Cidadã/Brasil) foi um sinal importante de compromisso com a consolidação fiscal. Mas a verdade é que é muito cedo para cantar vitória.

Celso Ming, - A invasão do Congresso dos EUA e nós aqui

- O Estado de S. Paulo

Tentativa de golpe produzirá desdobramentos que ainda não se podem prever

A invasão do Capitólio, em Washington, pelos extremistas seguidores do presidente Trump, nessa quarta-feira, produzirá desdobramentos que ainda não se podem prever.

desfecho desse 6 de janeiro segue a lógica da política isolacionista, xenófoba, populista e antidemocrática adotada pelo governo dos Estados Unidos nestes últimos quatro anos.

Se não pode levar pelo voto, a eleição não serve. É invariavelmente “roubada”, quando os da turma são vencidos nas urnas. Numa primeira tentativa, vale apelar para a guerra judicial e, se não adiantar, a saída é o golpe. Se as forças institucionais, como as polícias e os militares, não aderirem, a solução é apelar para os movimentos de massa, para os agrupamentos armados e, assim, arrancar o poder com a invasão dos centros de exercício da democracia. Foi assim no nazismo, foi assim no fascismo e será assim nos regimes totalitários.

O legado de Trump - a vergonha e a oportunidade | The Economist

A invasão do Capitólio e a vitória dos democratas na Geórgia mudarão o curso do mandato de Biden

-The Economist / O Estado de S.Paulo

Quatro anos atrás, Donald Trump estava em frente ao edifício do Capitólio para tomar posse e prometeu acabar com a “carnificina americana”. Seu mandato está terminando com um presidente em exercício incentivando uma multidão a marchar e invadir o Congresso - e então elogiando o movimento depois que ele recorreu à violência. Não tenha dúvidas de que Trump é o autor deste ataque letal ao coração da democracia americana. Suas mentiras alimentaram a situação danosa, seu desrespeito pela constituição concentrou-se no Congresso e sua demagogia acionou o detonador. Fotos da multidão invadindo o Capitólio, transmitidas alegremente em Moscou e Pequim, assim como foram lamentadas em Berlim e Paris, são as imagens definidoras da presidência não americana de Trump.

A violência no Capitólio fingiu ser uma demonstração de poder. Na verdade, ela mascava duas derrotas. Enquanto os apoiadores de Trump invadiam e entravam à força, o Congresso estava certificando os resultados da perda incontroversa do presidente em novembro. Ao mesmo tempo que a multidão quebrava janelas, os democratas comemoravam vitórias improváveis na Geórgia que lhes darão o controle do Senado. As ofensas da multidão repercutirão no Partido Republicano quando ele estiver na oposição. E isso terá consequências para o mandato de Joe Biden, que começa no dia 20 de janeiro.

Bruno Boghossian - Desinformar sem ser incomodado

- Folha de S. Paulo

Na condução delinquente do país durante a pandemia, Bolsonaro mentiu e deu dados falsos à população

No dia em que o Brasil bateu a marca calamitosa de 200 mil mortes pela Covid-19, o ministro da Saúde apontou o que realmente atormenta o governo. Não é a tragédia nacional, mas a divulgação de informações negativas sobre a negligência federal no combate à pandemia.

"Não queremos a interpretação dos fatos dos senhores", reclamou Eduardo Pazuello, inconformado com a imprensa. "Deixem a interpretação para o povo brasileiro."

A indignação do general mostra que o governo Jair Bolsonaro prefere desinformar e mentir sem ser incomodado. Na condução delinquente do país na pandemia, esses são alguns dos "fatos" que o presidente apresenta para o "povo brasileiro":

Míriam Leitão - A nossa dor multiplicada

- O Globo

O Brasil chegou ontem ao número impensável e inaceitável. Duzentos mil brasileiros perderam a vida na pandemia do Covid-19. O coronavírus mata no mundo inteiro, mata mais nos países cujos governantes desprezam a vida humana, a prudência e a ciência. É o caso aqui. Ontem, o presidente Bolsonaro, em defesa do assunto que ele acha importante, o voto impresso, referiu-se “a tal da pandemia”. A “tal”, que ele ainda subestima, enlutou lares, levou aflição a milhões de brasileiros, lotou os hospitais, os cemitérios e nos colocou no segundo lugar em mortes do mundo.

Ontem foi dia de uma boa notícia, pelo menos. Isso não é pouco no tempo de tanto luto. O Instituto Butantan anunciou que a vacina que desenvolve junto com a Sinovac chinesa completou a fase 3 dos testes clínicos. Segundo o governo de São Paulo, evita 100% dos casos graves e 78% dos casos leves. Ficaram faltando dados, na interpretação de alguns analistas. O mais importante deles é sobre o percentual dos que tomaram a vacina que não contraíram a doença. Não ficou claro para quem acompanhou a coletiva do governo paulista qual é, afinal, a taxa de eficácia na imunização, que é afinal o objetivo de qualquer vacina. Os testes no Brasil foram feitos com o grupo que está mais exposto: o pessoal da saúde. Isso foi realmente um teste bem mais robusto do que o feito na população em geral. O pedido de registro emergencial vai ser feito à Anvisa nesta sexta-feira e já estão no solo brasileiro mais de 10 milhões de doses. Foi o momento de alívio, num dia tenso e triste.

Yascha Mounk* - Conflito entre democracia e populismo só começou

- Folha de S. Paulo

Muitos outros populistas autoritários nutrem esperança de implementar mesmo roteiro de Trump

Como observou Aristóteles em “A Poética”, o final de um drama deve ser surpreendente, mas inevitável. Se isso é verdade, então os quatro anos de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos acabam de chegar a uma conclusão apropriada.

O Capitólio é o edifício mais imponente de Washington. Quando turistas chegam à cidade pela primeira vez, muitas vezes o confundem com a Casa Branca, por ele ser tão grande.

E, embora a democracia americana tenha passado por muitos dias turbulentos, deputados e senadores puderam realizar seu trabalho em segurança em seus salões majestosos por mais de dois séculos.

A última vez em que os inimigos da democracia conseguiram invadir o perímetro do Capitólio foi em 1814, quando tropas britânicas marcharam nas ruas de Washington. (Houve também uma vez, em 1954, quando terroristas lutando pela independência de Porto Rico entraram com armas na Câmara dos Representantes e começaram a disparar nos congressistas a partir da galeria dos visitantes.)

Isso ajuda a explicar por que os acontecimentos da quarta-feira (6) serão recordados por décadas, diferentemente de tantos incidentes sórdidos dos últimos quatro anos. Pela primeira vez na memória das pessoas, uma insurreição popular interrompeu as deliberações dos representantes livremente eleitos da população americana. E a pessoa responsável por reunir aquela turba e mobilizá-la para agir não foi um terrorista fanático nem o líder de alguma seita religiosa esdrúxula –foi o presidente dos Estados Unidos.

Quando Trump perdeu por 7 milhões de votos sua tentativa de ser reeleito, ele começou a disseminar teorias conspiratórias mais e mais desesperadas sobre suposta fraude eleitoral. Numa quebra chocante sem precedente, ele ainda se nega a admitir que Joe Biden o derrotou numa eleição livre e justa.

Na quarta, esse espetáculo sórdido finalmente estava prestes a chegar ao fim. O Congresso se preparava para certificar os resultados da eleição. Nada se colocaria no caminho de Biden para se tornar o 46º presidente dos EUA.

Hélio Schwartsman - O golpe de Trump

- Folha de S. Paulo

Em apenas quatro anos, ele transformou os EUA numa república de bananas

Em apenas quatro anos, Donald Trump transformou os EUA do que muitos descreviam (exageradamente) como farol da democracia numa república de bananas. As cenas de barbárie a que assistimos na quarta-feira deixarão marcas profundas na política e na autoimagem dos americanos.

A tentativa de golpe incitada pelo ainda presidente Trump também se destaca pela incompetência. O exército de Brancaleone que ele mobilizou para invadir o Capitólio nunca teve condições objetivas de tomar o poder e nem mesmo de impedir a certificação de Joe Biden como próximo mandatário.

Se Trump planejava apenas galvanizar sua base de apoiadores e posicionar-se para uma eventual volta em 2024, então ele errou escandalosamente na dose do discurso sedicioso. Ao cruzar a linha vermelha inscrita na cabeça da maioria dos americanos, o magnata virou contra si um número não desprezível de apoiadores e lideranças do Partido Republicano. Já há quem fale em impeachment ou em acionar a 25ª emenda para retirá-lo do poder. Existe a chance de que seja processado ao término do mandato e acabe preso.

Eliane Cantanhêde - ‘Efeito Orloff’

- O Estado de S. Paulo

Hoje, ataque à democracia nos Estados Unidos. E amanhã, nas eleições presidenciais no Brasil?

O “Mito”, ou “Trump do Brasil”, aderiu orgulhosamente à minoria extremista e violenta que vê “heróis” no lugar de terroristas naqueles que atacaram a maior democracia do mundo, vandalizaram o Capitólio e ocuparam o plenário e o gabinete da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, em nome de uma grande mentira: a de que houve fraudes na vitória do democrata Joe Biden, que assume a presidência dos Estados Unidos no dia 20.

O presidente Jair Bolsonaro, que desde 2018 joga desconfiança sobre o sistema eleitoral brasileiro, que depois de eleito insiste que houve “fraude” na própria eleição que ele venceu, que joga lama diariamente contra a mídia e que continua deslumbrado com o derrotado e absurdo Trump, gostou do caos em Washington e aproveitou para ameaçar também a democracia no Brasil e mobilizar desde já os extremistas antidemocráticos contra as eleições de 2022. Assim como loucos, que estão por toda parte, eles existem também aqui e podem ser contados aos milhares, talvez milhões.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Vândalos da democracia – Opinião | O Estado de S. Paulo

Que as declarações temerárias de Bolsonaro sirvam de alerta quanto ao risco de ele repetir no Brasil em dois anos a intentona de seu ídolo americano

Se ainda havia dúvidas, as inacreditáveis cenas do assalto ao Capitólio, sede do Poder Legislativo dos Estados Unidos, ocorrido na tarde de quarta-feira passada em Washington, confirmaram de forma cabal o perigo da política de ressentimento estimulada pelo chamado tecnopopulismo, do qual o presidente americano, Donald Trump, é o maior expoente.

Atônitos, milhões de pessoas em diversos países puderam acompanhar em tempo real os danos que vândalos da democracia como Trump e seus imitadores mundo afora são capazes de causar. Eles vão muito além do estímulo à polarização política e à subversão da verdade factual nas redes sociais, o que já seria grave por si só. O ódio que essas lideranças populistas promovem contra as instituições democráticas, o que chamam de “sistema”, a diversidade e todos que não pertençam ao “povo” encarnado pelo líder ungido, se traduz em violência e morte.

Enquanto o Congresso dos Estados Unidos realizava uma sessão conjunta para certificar a eleição de Joe Biden como o 46.º presidente americano, um ato que em condições normais seria meramente protocolar, o presidente Donald Trump proferia um de seus mais virulentos discursos contra o que chamou de “eleição roubada”. Furioso porque seu vice, Mike Pence, simplesmente decidiu cumprir a Constituição e se recusou a participar da sedição que o manteria no poder, Trump afirmou que “jamais aceitaria” a derrota e insuflou uma horda de extremistas a “lutar” de forma “patriótica” contra a “fraude” da qual diz ser vítima.

Não houve fraude alguma na eleição presidencial dos Estados Unidos. Trump não passa de um mau perdedor e, a partir de agora, de um golpista malsucedido. Sua manutenção no poder, ainda que por mais poucos dias, representa um enorme perigo. Donald Trump deve ser impedido ou retirado da presidência de acordo com a 25.ª Emenda à Constituição americana, que prevê que o presidente pode ser destituído por incapacidade de desempenhar suas funções após uma declaração conjunta de seu vice e da maioria dos membros de seu Gabinete.

Música | Chico César - À primeira vista

 

Poesia | Pablo Neruda - Pontes

Pontes: arcos de aço azul de onde vêm 
a dar sua despedida os caminhantes
— por cima os trens, 
embaixo as águas —,
enfermos de seguir tão grande viagem
que principia, que segue e nunca acaba.
Céus - acima  —, céus,
pássaros que passam
sem parar, caminhando sempre e como
os trens e as águas.

Que maldição caiu sobre vocês?
O que esperam na noite densa e larga
com os braços abertos de um menino
que morre na chegada de sua irmã?

Que voz de maldição passiva e negra
as asas estendeu sobre vocês,
para fazer seguir
sempre viajando
as paisagens, a vida, o sol, a terra,
os trens e as águas,
enquanto a angústia imóvel do puro aço
funde-se mais na terra e mais a afirma?