domingo, 1 de janeiro de 2023

Merval Pereira - Um novo caminho

O Globo

O destino dá agora a Lula chance de fechar (?) seu ciclo político de maneira diferente daquela que o levou para a prisão

Começa hoje mais um capítulo da formidável saga de vida de um nordestino que chegou à presidência da República num país injusto e desigual graças a um senso político nato inigualável. Como toda saga, a de Lula teve necessariamente altos e baixos, e sua ação marcou a história do país, para o bem e para o mal. Por tramas do destino, que nem sempre lhe foi favorável, saiu da cadeia para voltar ao poder representando, mesmo para aqueles que nunca haviam votado nele, a alternativa viável para a defesa da democracia.

A mesma democracia que seu partido e as alianças que forjou, paradoxalmente, feriram ao permitir um ambiente de corrupção política na tentativa de controlar o Congresso. Ser a alternativa a um governante perverso e incompetente não seria em si grande coisa, mas o fato é que sua vitória para um terceiro mandato só ocorreu por ter sido ele o único candidato capaz de reunir em torno de si forças da sociedade que o tornaram majoritário sem que seu partido o fosse, e sem que muitos dos que votaram nele tenham superado restrições graves por conta do mensalão e do petrolão.

Míriam Leitão - O recomeço da democracia

O Globo

Bolsonaro já é passado, mas seus crimes ficarão como cicatrizes na democracia. Lula assume e ocupa posição inédita na história do país

Quando estiver hoje no Congresso sendo investido no cargo de presidente da República, pela terceira vez, Lula estará assumindo uma posição inédita na história do Brasil e estará atingindo o ápice de uma saga pessoal e política. Ninguém antes dele foi presidente três vezes. Ninguém no Brasil transpôs em tempo tão curto dois polos extremos que vão da prisão ao Planalto. Nenhuma história política brasileira tem tantos inesperados. Na primeira vez em que ele assumiu, a crônica da época destacava o impressionante trajeto da infância pobre ao posto mais alto da República. Desta vez, fica demonstrada a sua incrível capacidade de se reconstruir.

Não serão anos fáceis os que virão. O governo enfrentará o campo minado por armadilhas, rombos e conflitos espalhados pela administração que se encerrou. O último capítulo foi tão lamentável quanto o próprio governo. Jair Bolsonaro fez uma live cheia de ambiguidades em vez de um balanço formal de seu governo, falou apenas para seus seguidores e não para o país, pegou o avião presidencial e foi para Miami. O aparato que existe para apoiar viagens oficiais do presidente foi usado para a fuga dos seus deveres constitucionais. Antes de mais esse uso indevido dos recursos dos contribuintes ele deixou nova prova de que cometeu crime contra a democracia. “Como foi difícil ficar dois meses calado trabalhando para buscar alternativas”. Isso é confissão de que conspirou. Que alternativa constitucional existe para um derrotado nas eleições que entregar o poder ao vitorioso?

Bernardo Mello Franco – Desafios de volta

O Globo

Presidente enfrentará extrema direita organizada e Congresso mais hostil; ministério indica disposição de devolver país ao século XXI

Quando subir a rampa do Planalto pela terceira vez, na tarde deste domingo, Lula concluirá mais um capítulo de uma biografia marcada pelo improvável. Mas a volta ao poder, depois de 580 dias na cadeia, será apenas o ponto de partida para novos desafios.

O petista já reconheceu que herdará um país mais pobre e mais dividido do que em 2003. Aliados acrescentam que o período de lua de mel, que costuma facilitar o início de todo governo, deve durar menos que o habitual.

Além de enfrentar uma extrema direita organizada, Lula terá que lidar com um Congresso mais hostil — além de contrariado com o fim do orçamento secreto. Nesse cenário, a aposta na distribuição de ministérios pode não surtir os mesmos efeitos do passado.

Políticos próximos ao presidente alertam que a luta pela governabilidade não será travada só na Câmara e no Senado. Lula precisará cuidar da popularidade e cultivar o clima de frente ampla que impulsionou sua vitória no segundo turno. Para isso, a promessa de “união e reconstrução” não poderá se limitar a um slogan publicitário.

Dorrit Harazim - Sem réquiem

O Globo

O presidente em fuga jamais compreendeu que a política não é uma profissão — ela deveria ser, no mundo ideal, a dedicação temporária de alguém a sua comunidade

Uma fascinante obra-prima renascentista pintada há mais de 500 anos pelo holandês Hieronymus Bosch mora no segundo andar da ala Richelieu do Museu do Louvre, em Paris. Batizado de “Nau dos insensatos”, o quadro a óleo sobre madeira é parte original de um tríptico que acabou separado ao longo dos séculos. Dizem os estudiosos que a “Nau” de Bosch foi inspirada na pena satírica de um humanista alemão do mesmo período, Sebastian Brant, que escrevera em verso uma paródia da Arca de Noé. Na alegoria de Brant, o mundo era a nau, e seus habitantes/viajantes não se importavam para onde eram levados. Agiam desprovidos de razão, inclusive o capitão — se é que havia um a bordo.

Elio Gaspari - A direita explosiva quis voltar

O Globo

Se o primeiro atentado da 'Direita explosiva' tivesse sido investigado e seus autores punidos na letra da lei e dos regulamentos, o Brasil, a Justiça e as Forças Armadas teriam lucrado

As delinquências confessadas por George Washington de Oliveira Sousa, gerente de um posto de gasolina no Pará, militante acampado diante do Quartel General do Exército, em Brasília, mostram que ele pretendia praticar um ato terrorista na capital. Pelo plano, explodiriam um caminhão de combustível nas proximidades do aeroporto. Outra bomba interromperia o fornecimento de energia de Taguatinga. Assim, dariam “início ao caos que levaria à decretação do estado de sítio”.

Bomba num pátio, corte de energia, caos... Mark Twain já ensinou: A História não se repete, mas rima.

Oliveira Sousa está preso e revelou ter articulado o crime com pelo menos três pessoas. Esse atentado, impedido pela ação da polícia civil de Brasília, bem como inúmeras ameaças, injetaram tensão na festa da posse do presidente Lula.

Nos anos 60 e 70 do século passado, o país teve um terrorismo de esquerda, com o sequestro de quatro diplomatas estrangeiros e a morte de dezenas de pessoas. Foram executados um empresário, um delegado, um capitão do exército americano e um major alemão, confundido com um capitão boliviano. A ditadura enfrentou esse surto com desproporcional violência. A tortura tomou-se política de Estado e foi seguida por uma diretriz de extermínio.

Em 1981, extinto o surto terrorista e dois anos depois da anistia, explodiu uma bomba no colo de um sargento do DOI do I Exército (atual Comando Militar do Leste). Ele acompanhava um capitão, seu superior. Era o atentado do Riocentro. Se as coisas corressem como se supõe que havia sido planejado, aquela bomba explodiria no estacionamento enquanto outra, jogada na estação de energia, cortaria a luz do show que se realizava no pavilhão. O episódio do Riocentro provocaria um caos e, quem sabe, levaria à decretação de medidas de emergência.

Celso Rocha de Barros* - PT é quem sobrou para resolver velhos problemas e os criados por Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Com Lula no Planalto, partido criado nos anos 80 terá agora como um dos desafios reorganizar a democracia brasileira

Partido dos Trabalhadores é o maior vencedor de eleições presidenciais da história do Brasil. Ganhou 5 das 8 eleições da Nova República. Ficou em segundo lugar em todas as que perdeu. Esteve em todos os segundos turnos.

Os outros dois maiores vencedores, o velho PSD (1945-1964) e o PSDB, somados, venceram 4 vezes.

Entre os partidos que disputaram com o PT até hoje, dois acabaram (o PRN de Collor e o PSL de Bolsonaro). O PSDB, maior rival dos petistas, é hoje uma sombra do que já foi: perdeu as fortalezas de São Paulo e Minas Gerais para direitistas mais radicais e sua bancada no Congresso tem o mesmo tamanho da do PSOL.

Depois de 1989, quando o PT iniciou seu processo de moderação programática, o partido só perdeu eleições presidenciais para o Plano Real, uma imensa realização tucana; e quando Sergio Moro, em um julgamento irregular, impediu Lula de concorrer em 2018.

A capacidade de sobrevivência do PT é ainda mais impressionante tendo em conta o tamanho da crise que atingiu o partido em 2015-2018.

Bruno Boghossian - O fracasso de Bolsonaro

Folha de S. Paulo

Depois de governo ruinoso, ele terá que enfrentar o futuro sem cargo pela primeira vez em décadas

Por quatro anos, Jair Bolsonaro se dedicou a um único projeto: permanecer no cargo com poderes ampliados. Em sua chorosa despedida do governo, o presidente em fuga se viu obrigado a fazer uma melancólica admissão de seu fracasso.

O ciclo de Bolsonaro tem a marca de um político que deixou de lado o papel de governante para trabalhar pela própria autoridade. Ele ignorou funções básicas da administração do país para transformar a máquina pública numa ferramenta a favor de seus desejos.

Bolsonaro só se interessou pela gestão da economia quando precisou evitar a deterioração de seu poder e ganhar sobrevida na disputa eleitoral. Levou adiante a política de armas porque pretendia intimidar opositores e só insistiu num discurso de liberdade para justificar seus delírios autoritários.

Hélio Schwartsman - O desastre bate à porta

Folha de S. Paulo

Livro enumera mega-ameaças à nossa espreita

Se você ficou patologicamente animado com o fim do governo Bolsonaro e a chegada de uma administração não extremista, um bom antídoto literário é "Megathreats" (mega-ameaças), de Nouriel Roubini.

Ainda que tenhamos escapado por um triz (1,8 ponto percentual dos votos) do pior, o Brasil é só um pedaço não muito importante de um mundo bastante interconectado que está, na visão do autor, profundamente encrencado.

Nos dez primeiros capítulos, Roubini identifica dez problemas e mostra por que são mega-ameaças. No caso de vários deles, como mudança climática, crises de endividamento, estagflação, guerra fria EUA-China, os perigos são mais ou menos autoevidentes, o que não impede Roubini de descrever, com riqueza de detalhes, algumas das piores implicações.

Muniz Sodré* - Reconstrução pessoal

Folha de S. Paulo

Eleição não é vitória partidária, e sim do voto contrário a um caráter negativo e favorável a outro

Suprema autoridade judiciária desculpou-se ao presidente eleito por não lhe ter permitido, quando ainda em detenção, despedir-se do irmão morto. Não foi gesto institucional, mas pessoal. Na melhor das hipóteses, repercussão moral de recomendação recente do papa Francisco sobre "vigilância do coração".

Entidade nenhuma é agente moral, isso é apanágio de pessoas, como salienta o linguista e ativista Noam Chomsky.

O mesmo juízo aplica-se a partido político: um programa de melhor distribuição de justiça social ou de retidão de conduta não lhe atribui disposição de alma. Instituições podem guiar-se por princípios equitativos, mas são constituídas por pessoas, às quais cabe agência moral.

Luiz Carlos Azedo - Lula toma posse com a responsabilidade de reforçar a democracia

Correio Braziliense

Em um país dividido e com profundos problemas sociais, presidente assume a responsabilidade de reforçar a democracia

Apesar de todas as tensões — e ainda as teremos por um tempo —, a vida do país mudou da água para o vinho desde 30 de outubro, quando foi eleito Luiz Inácio Lula da Silva, que assumirá a Presidência da República neste domingo de Ano-Novo. Faz parte do jogo a má vontade com Lula de formadores de opinião e de integrantes da elite econômica, cuja maioria apoiou e votou no presidente Jair Bolsonaro.

Entretanto, a justa comparação não é com suas expectativas, diante dos quatro anos de retrocesso político, obscurantismo, negacionismo e disparates; é entre um governante cuja reeleição nos levaria para um “regime iliberal”, na linha de Orban (Hungria), Putin (Rússia), Erdogan (Turquia) e outros presidentes autoritários, e o ambiente democrático proporcionado pela simples vitória de Lula, com apoio das forças democráticas do país.

Eliane Cantanhêde - O Brasil mudou, ou voltou

O Estado de S. Paulo

Hoje é dia de festa e volta à normalidade, com o que há de bom, ruim e incógnitas

O Brasil mudou. Fecha-se o capítulo da gestão indigna e criminosa na pandemia, ofensas estéreis entre os Poderes, confronto federativo sistemático, desastroso desmanche de políticas e órgãos públicos. Abre-se o capítulo da normalidade, com o que há de bom, ruim, incógnitas e a complexa busca de diálogo e consensos.

Ao sair do Alvorada pela porta dos fundos e abandonar o cargo, o País e seus próprios seguidores antes da posse do sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva, Jair Bolsonaro deixou no ar: valia a pena entrar com uma ação para impedir que você, leitor, leitora, pagasse avião, equipe e luxo na viagem pessoal de Bolsonaro a Orlando?

Melhor deixá-lo levar sua insignificância para bem longe, virar essa página e garantir uma festa alegre e colorida na posse. Passou, acabou, é recolher os escombros e reconstruir a administração pública, os princípios e relações republicanas. Com muita expectativa, mas condições adversas. Uma confluência perigosa.

Vera Rosa - Mesmo com guinada ao centro, petistas ainda serão mais influentes

O Estado de S. Paulo

Alexandre Padilha na articulação política e Fernando Haddad na chefia da Economia estão na restrita cota de confiança de Lula

Vinte anos após subir pela primeira vez a rampa do Palácio do Planalto, em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assume neste domingo, 1º, o terceiro mandato à frente do governo com desafios que vão além da economia. Do “Lulinha paz e amor” à “jararaca”, o presidente que chega agora ao poder diz ter passado por um “processo de ressurreição” e, munido de um discurso conciliador, chamou políticos de centro para compor o Ministério. Os nomes mais influentes da equipe, porém, ainda são do PT.

Em recente conversa com sindicalistas, Lula afirmou que, para ter governabilidade, precisa dialogar até com a extrema-direita. “Eu aprendi muito com o impeachment da Dilma”, argumentou ele, numa referência à presidente Dilma Rousseff, que teve o mandato cassado pelo Congresso, em 2016. “Fora da política não há solução. Quem não conversa, não governa”, emendou.

Celso Ming - O que esperar de 2023

O Estado de S. Paulo

Ano novo, governo novo, mas tendências da política econômica, nem tanto. Todos os indícios apontam para um crescimento medíocre em 2023. As economias líderes devem enfrentar recessão ou forte desaceleração, puxadas pela ressaca da covid e pela crise energética, que produziram inflação e obrigaram os maiores bancos centrais a puxar os juros para cima. As projeções do FMI são de crescimento de 1,0% do PIB dos Estados Unidos, de 0,5% da área do euro e de 4,4% da China. Aqui no Brasil, os analistas inquiridos pelo Boletim Focus não preveem mais do que avanço de 0,75%.

Em parte, esse passo lento está determinado pela música tocada no salão global. Mas há certas bolas de ferro que vêm tolhendo o avanço da economia brasileira. Como o Banco Central tanto alertou no último Relatório de Inflação, a principal delas é o rombo fiscal que vai sendo determinado pelo forte aumento das despesas públicas.

O Banco Central promete juros altos em boa parte do ano. É forte a pressão sobre o crédito e sobre a dívida pública que terá de incorporar mais despesas com juros no passivo total.

Cristovam Buarque* - A trégua Pelé

Blog do Noblat / Metrópoles

Na partida de Pelé, percebe-se a grandeza de um gênio da humanidade. Ao contrário, a partida de Bolsonaro mostra a mediocridade dele

Quis a história que coincidissem a partida de Pelé, um herói que nos orgulha, e a fuga de Bolsonaro, um calhorda que nos envergonha. Esta coincidência permite constatar a diferença entre grandeza e mediocridade.

Na partida de Pelé, percebe-se a grandeza de um gênio da humanidade. Ao longo de 65 anos, dos 17 aos 82 de idade, ele acumulou gestos, falas, comportamentos, genialidades em sua área de atuação, que lhe permitiram ser um símbolo de perfeição e excelência reconhecido mundialmente. Graças à sua grandeza, a história de Pelé permanece.

Ao contrário, a partida de Bolsonaro mostra a mediocridade de suas últimas falas e do voo de fuga em seguida. Mostra a covardia e a molecagem como tratou o povo brasileiro atè o final de seu mandato. Ao fugir, em avião da Força Aérea permite suspeita de que levou contrabando, protegido pelo manto da presidência no último dia do mandato.

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

O melhor que Lula pode fazer pela democracia

O Globo

Sua posse representa a vitória contra ameaças autoritárias, mas erros na economia podem realimentar os riscos

Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para o terceiro mandato empunhando a bandeira da democracia. Sua posse hoje marca a vitória inequívoca das instituições sobre as ameaças autoritárias dos últimos anos. Mas o governo Lula também começa sob a égide de preocupações graves, que terão impacto na própria estabilidade democrática se não forem levadas a sério.

A maior delas é a incerteza econômica. Os primeiros passos do novo governo, antes mesmo da posse, já resultaram num aumento de gastos públicos estimado em 2,5% do PIB. Como o Estado brasileiro tem funcionado com um déficit estrutural — receitas menos despesas recorrentes — na casa dos 2% do PIB, há necessidade premente de ajuste fiscal, do contrário a explosão inevitável da dívida pública porá em risco a estabilidade da moeda. O próprio Fernando Haddad, novo ministro da Fazenda, reconheceu ao GLOBO que será preciso “arrumar a casa” nos três primeiros meses de governo.

Lula sabe bem o significado da inflação para aqueles que mais defende, os pobres. Tanto que, na campanha eleitoral, falava o tempo todo em pôr o pobre no Orçamento. Por óbvio, ninguém pode ficar inerte diante do flagelo da pobreza. Mas os pobres foram apenas um pretexto usado na PEC da Transição para romper o teto de gastos. Financiar o programa de transferência de renda sofrível herdado do governo Jair Bolsonaro custaria R$ 52 bilhões além do já previsto no Orçamento. Só que a PEC autorizou até R$ 168 bilhões em gastos além do teto. Parte será consumida em aumentos salariais para a elite do funcionalismo, garantia de piso salarial a profissionais de enfermagem e outras despesas que nada têm a ver com a redução da miséria.

Poesia | Murilo Mendes - O Filho do Século

 

Música | Jorge Aragão - Reflexão